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      Sara Goes

      Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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      Mangar é método

      Entre o autoritarismo disfarçado de opinião e a mentira embalada como liberdade de expressão, há um caminho possível de resistência: mangar

      (Foto: Arquivo pessoal)

      Por Sara Goes e Reynaldo Aragon - Rir com método. Zombar com inteligência. Expor ao ridículo o que, por demais tempo, tem sido tratado com uma seriedade indevida. A extrema direita não deve ser apenas combatida - ela precisa ser mangada até perder a pose.

      Este texto foi escrito a quatro mãos, unindo experiências distintas, mas complementares. Eu, Sara, cearense, trago comigo a tradição popular do riso como linguagem política. Eu, Reynaldo, pesquisador fluminense, trago a base conceitual das ciências cognitivas e da comunicação. Compartilhamos a mesma urgência: combater o fascismo. Não apenas até as eleições de 2026, mas pensando em formas de resistência duradouras, enraizadas na disputa simbólica e afetiva.

      Eu, Sara, sou cearense, e isso me dá uma certa autoridade afetiva e cultural para falar do assunto. Venho de uma terra onde o humor é tão antigo quanto a política e tão político quanto necessário. O Ceará elegeu um bode vereador para mangar da elite, vaiou o sol em praça pública como protesto contra a seca, revelou Chico Anysio como gênio da sátira nacional e, mais recentemente, viu humoristas entrarem em cena no segundo turno das eleições de Fortaleza em 2024, usando o riso como ferramenta de mobilização contra a extrema direita. Aqui, rir nunca foi fuga: sempre foi forma de luta.

      E isso não é só desabafo cultural, é estratégia cognitiva. O enfrentamento à radicalização política e à desinformação não se faz apenas com dados, desmentidos ou denúncias. Se fosse assim, já teríamos vencido. A luta é no campo simbólico, afetivo e cognitivo, onde se formam os atalhos mentais que moldam o que cada um entende por verdade. E é aí que entra o humor.

      Segundo a psicologia social — campo que eu, Rey, venho estudando com atenção —, nosso cérebro tende a operar por heurísticas cognitivas: atalhos mentais que ajudam a tomar decisões rápidas, mas que também nos expõem a erros sistemáticos, os chamados vieses. Entre eles, o viés de confirmação se destaca como um dos mais perigosos, especialmente no cenário atual de polarização. Trata-se da tendência de buscar, interpretar e lembrar informações de maneira a reforçar crenças pré-existentes, ignorando ou rejeitando aquilo que as contraria. É justamente esse viés que se apresenta como o maior inimigo das estratégias mais comuns de combate à desinformação. Técnicas de letramento midiático e checagem de fatos frequentemente fracassam diante de um sujeito que já decidiu o que quer acreditar. Nessas circunstâncias, o diálogo racional se torna quase inviável, não por falta de dados, mas pela recusa em aceitá-los.

      A tentativa de corrigir uma mentira, aliás, pode reforçá-la. É o chamado efeito bumerangue. Por isso, surgem abordagens como o prebunking, ou inoculação cognitiva: uma espécie de “vacina” contra a desinformação. A ideia é simples: apresentar versões enfraquecidas de falsidades, junto com estratégias para refutá-las, antes que ganhem força. Assim como o corpo reage melhor a um vírus se já tiver sido exposto a ele em versão branda, a mente reage melhor a uma mentira se já tiver visto aquilo desmontado com antecedência.

      E é aí que o deboche entra como heurística afetiva de reorientação. Quando feito com precisão e dentro de certos limites éticos, mangar de uma crença absurda pode ser mais eficaz que tentar refutá-la diretamente. Isso porque o humor desarma. Ele não entra pela porta da razão, mas pela da vergonha alheia, do constrangimento social, do incômodo público.

      Trata-se de uma forma de constrangimento social controlado. Usar o riso não para humilhar a pessoa, mas para mostrar o ridículo do discurso. Quando o sujeito percebe que o grupo ao redor ri daquilo que ele repetia com orgulho, começa um deslocamento. Não é automático, nem garantido — mas é um começo. Um ruído no sistema. Um passo rumo à autocensura de ideias fascistas que antes circulavam à vontade.

      Isso é especialmente poderoso em tempos de redes sociais, onde o humor virou linguagem dominante. A extrema direita soube usar isso com perfeição: memes, vídeos, personagens, paródias — tudo serviu para criar um senso de pertencimento, mobilização e identidade. O erro da esquerda, por vezes, foi tentar responder com gravidade a uma estética do caos.

      Um exemplo claro veio neste domingo (7), quando Bolsonaro viralizou com um inglês grotesco, propositalmente grotesco, e as redes sociais de esquerda, junto com o jornalismo progressista, reagiram como ele queria. Em vez de virar deboche, virou pauta. Em vez de rirmos, discutimos os limites morais do humor, o uso do inglês, até a tipografia de bonés. Uma armadilha perfeita. Ao invés de mangar, ficamos presos no ciclo da reverência estética, como se o fascismo fosse vencido com indignação controlada. O boné “Brasil dos brasileiros” não precisa de exegese, precisa de riso.

      Mas há quem esteja virando esse jogo: memes que desmontam o moralismo religioso, vídeos curtos que expõem o grotesco do autoritarismo, sátiras que ridicularizam a retórica conspiratória.

      A cultura cearense tem um saber antigo sobre isso. O povo que vaiou o sol em protesto, elegeu um bode para a câmara, e inventou personagens que diziam verdades rindo, sabe que rir também é fazer política. O humor popular cearense — mordaz, ágil, insolente — sempre soube derrubar reis com uma piada. Hoje, esse saber precisa ser traduzido para o ambiente digital. Mangar, agora, é também produzir sentido. É disputar o frame. É atacar o delírio com ironia.

      Mas isso exige régua fina. Não se trata de humilhar o outro, mas de cortar o verniz do discurso de ódio. O humor que funciona como técnica política precisa ser calibrado. Se vira escárnio ofensivo, reforça o ressentimento. Se acerta o tom, provoca dissonância cognitiva e possibilita o deslocamento.

      Em tempos de guerra informacional, rir não é só resistência — é também reumanização. É a chance de recuperar o afeto crítico, de desmontar as armaduras da crença cega e de reconectar linguagem e vida. Mangar, nesse sentido, é um gesto de lucidez compartilhada. É a coragem de rir da loucura quando ela tenta se passar por razão.E como todo cearense e fluminense sabem, mangar, quando bem feito, dói mais do que censura.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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