Marechal Lott e a defesa da posse do presidente eleito
O Brasil tem reiteradas vezes incidido em sério equívoco de não priorizar os seus grandes fatos históricos e analisar a contribuição de suas mais relevantes personalidades que atravessaram e definiram os mais importantes eventos de nossa história. Uma destas notáveis figuras é Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (16.11.1894-19.05.1984) ou, simplesmente, Marechal Lott, como ficaria conhecido e entraria para a história brasileira pela porta das grandes figuras que asseguraram a prevalência do poder popular e, por conseguinte, os traços de democracia que a elite nacional traiu em diversos momentos de nossa turbulenta história.
Eternizado por seu grande respeito à hierarquia militar e à ordem política legitimamente eleita, Lott alcançou o posto de Marechal e Ministro da Guerra, tendo ainda concorrido às eleições presidenciais no auge de sua popularidade no ano de 1960, nas quais seria derrotado pela errática figura de Jânio Quadros. Lott manteve sua posição legalista após as turbulências da primeira parte da década que desembocariam no suicídio de Getúlio Vargas em 24.08.1954 à raiz da pressão sofrida por setores da elite nacional e dos militares por consequência do atentado na Rua Toneleros (05.08.1954) que vitimou o Tenente Rubens Vaz, que teria como alvo o então Vereador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, em 1964 as mesmas forças viriam a compor o quadro que interveio no golpe de Estado contra João Goulart.
Em seus dias finais Vargas ouviu de seu Vice-Presidente João Café Filho que não lhe manteria obediência acaso negasse renunciar, explicitando assim estar a participar da trama da deposição do Presidente que resultaria em que o poder recaísse em suas mãos. Ao assumir o poder após o suicídio de Vargas, Café Filho escolheu o Marechal Lott para ocupar o Ministério da Guerra em face de suas conhecidas posições de defesa da legalidade, defesa das instituições e da disciplina militar, tão importante em um país onde a caserna representava risco permanente e não hesitara historicamente em atribuir-se as posições de poder, patrocinando toda sorte de violências. Café Filho ocupou a Presidência entre 24.08.1954 e 08.11.1955, quando foi afastado por motivos de saúde, finalmente confirmado pelo Congresso Nacional em 22.11.1955, assumindo em seu lugar o Presidente da Câmara Federal, Carlos Luz.
Era o ano de 1956 quando o Marechal Lott, já aos seus 62 anos e próximo à reserva, interveio de forma decisiva para garantir a posse do então Presidente eleito Juscelino Kubitschek e de seu Vice-Presidente, João Goulart, legitimamente escolhidos pelo crivo popular à 03.10.1955. Neste episódio Lott revelaria uma vez mais sua têmpera anti-golpista, nacionalista e legalista, virtudes típicas de real servidor das armas nacionais que coloca o seu dever de ofício acima dos riscos e conveniências pessoais, à diferença da tradição militar que lhe sucederia, muito especialmente após o ano de 1964, quando o golpismo e a deslealdade se tornaram a pauta do comportamento e do adestramento na formação da oficialidade, fato propiciado pelos gravíssimos expurgos de militares de todas as patentes das Forças Armadas, quando não assassinados, como foi o caso da primeira vítima do regime, o corajoso Tenente-Coronel Alfeu de Alcântara Monteiro (31.03.1922-04.04.1964), assassinado em Canoas (RS).
Foi no dia 11.11.1955 quando Lott interveio na liderança do Movimento 11 de Novembro ou Movimento de Retorno aos Quadros Vigentes, cujo objetivo era garantir a posse de Juscelino, na prática, a defesa da legalidade constitucional e dos ideais de defesa da soberania e dos interesses nacionais. Mantido o grupo, em junho de 1956 o Movimento deixava claro que os seus objetivos eram os de propiciar a garantia de trabalho para os homens e mulheres (especialmente os desempregados), o monopólio nacional dos recursos naturais do país, a realização da reforma agrária, controle do capital estrangeiro, assim como a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, conjunto de objetivos que historicamente estiveram dentre aqueles tomados como alvo de duro combate pela elite nacional e seus associados estrangeiros. Lott também assumiria publicamente em 1957 a defesa do voto dos analfabetos proposta pelo PTB, mas logo derrotada em agosto do mesmo ano na Câmara dos Deputados e, sobretudo, a defesa do petróleo como riqueza nacional intocável. Com estes objetivos e por sua liderança do Movimento, Lott tornou-se símbolo da luta nacionalista e figura a ser perseguida pelos setores da extrema-direita das Forças Armadas.
O Movimento liderado pelo Marechal Lott impôs-se no plano político e militar ante a organização de segmentos de oficiais das três armas cujo objetivo era impedir a posse do Presidente eleito, Juscelino Kubitschek, que deveria ocorrer no dia 31.01.1956, que logo o escolheria para Ministro da Guerra, pasta à frente da qual permaneceu entre 31.01.1956 e 15.02.1960. O cenário político de final do ano de 1955 a partir do resultado da eleição presidencial e inícios do ano de 1956 configurava a derrota das forças políticas antigetulistas encarnadas principalmente pela UDN (União Democrática Nacional), que contavam no âmbito militar com a liderança de dois Ministros, o da Aeronáutica, Eduardo Gomes, e da Marinha, Amorim do Vale. Desde sua posição de Ministro da Guerra, Lott pressionou o Congresso para proceder ao afastamento de ambos ministros militares assim como do Presidente interino, Carlos Luz, logo ocupada por Nereu Ramos, o terceiro na linha sucessória, entre 11.11.1955 e 31.01.1956. Este trio aliara forças para tentar impedir a posse de Juscelino Kubitschek (PSD/ Partido Social Democrático) e de João Goulart (PTB/Partido Trabalhista Brasileiro) como Vice-Presidente, fraudando, portanto, o resultado da vontade popular expressa de forma inequívoca nas urnas, dada a vitória eleitoral com 36% dos votos, tendo o segundo colocado, Juarez Távora, da UDN, obtido 30%.
Estava em causa o revivescer da típica e violenta visão militar brasileira em sua falsa condição de tutela dos destinos políticos da nação, em aberto desrespeito pela soberania popular. A garantia da posse dos eleitos foi apenas o primeiro movimento legalista do Marechal Lott em sucessivas mostras de sua lealdade institucional. Escolhido por Juscelino para ocupar o posto de Ministro da Guerra, sua turbulenta administração teve de enfrentar as tentativas da UDN de desestabilizar o Governo com vistas a derrubá-lo desde os seus primeiros dias, contando para isto com importantes segmentos na área militar, que em franco desrespeito à vontade popular traduzida pelas urnas, realizaram diversos movimentos militares de desestabilização do Governo que reputavam indesejável.
Durante a administração Juscelino, Lott teve de dar respostas difíceis como à Revolta de Jacareacanga. Ocorrida no dia 10.02.1956, à escassíssimos dias da posse dos eleitos, Juscelino e João Goulart realizada no dia 31.01.1956, era fato revelador das dificuldades que se colocavam no horizonte e seriam enfrentadas pela administração e, em especial, pelo titular da pasta da Guerra, o Marechal Lott, indicando a sobrevivência das forças refratárias à Constituição e ao regime democrático, que não haviam sido de todo debeladas no seio das Forças Armadas, senão o contrário, dada a opção pela anistia, que assim servira como combustível para militares arredios à submissão ao seu dever de atuar nos limites de suas atribuições constitucionais.
A Revolta de Jacareacanga foi deflagrada quando um par de oficiais da Aeronáutica – Major-aviador Haroldo Veloso e Capitão-aviador José Chaves Lameirão – sequestrou aeronave que decolara do Campo de Afonsos, Rio de Janeiro, e a desviou para a longínqua base militar paraense, de Jacareacanga, que emprestaria nome ao caso, alegadamente insatisfeitos com o Ministro da Aeronáutica, Vasco Alves Seco, temendo que os vitoriosos do movimento de 11 de novembro viessem punir os vencidos, como se a legalidade e as normas militares assim não impusessem aos seus transgressores, corajosos para a empresa mas não para assumir suas consequências. Lott empenhou-se na resolução da questão militar que se agravara quando os rebeldes passaram a controlar cidades da região, inclusive Aragarças e Santarém. Controlada a rebelião, os aprisionados responsabilizados pelos “atos revolucionários” cometidos entre 10.11.1955 e 01.03.1956 foram anistiados “ampla e irrestritamente” pelo Congresso Nacional a pedido do Presidente Juscelino Kubitschek, incidindo em grave erro que voltaria a repetir-se na história brasileira, posto que a deslealdade com a institucionalidade não deve ser alvo de perdão, senão de duras e irremissíveis punições, dada a gravidade da ofensa contra a íntegra da ordem estabelecida em nome do povo brasileiro.
A anistia “ampla e irrestrita” concedida por Juscelino aos revoltosos de Jacareacanga serviria como combustível para a Revolta de Aragarças, mais um dos movimentos antidemocráticos patrocinados por setores das Forças Armadas que eclodiu em 02.12.1959, mas que começara a ser urdido ainda em 1957. A nova conspiração teve a participação decisiva do anistiado ex-líder de Jacareacanga, Tenente-Coronel-aviador Haroldo Veloso, e de dezenas de outros militares e civis, entre os quais o Tenente-Coronel João Paulo Moreira Burnier (18.10.1919-13.06.2000), que foi o seu principal líder. Sem ter sofrido punições, durante a ditadura militar de 1964 o mesmo Burnier ocupou posto de destaque, sendo diretamente responsável pelo assassinato brutal de Stuart Angel ocorrido nas dependências da III Zona Aérea (RJ) sob seu comando, assim como sua decisiva participação no Caso Para-Sar, cuja consequência seria a produção milhares de mortos. Manifestamente a Revolta de Aragarças tinha objetivos muito conhecidos da tradição golpista, a saber, criar um movimento renovador, “verdadeiramente revolucionário”, visando destituir do poder o
“grupo” que o controlava, acusando-o de corrupto e ligado ao comunismo. Os militares golpistas de Aragarças partiram do Rio de Janeiro com 3 aviões Douglas C-47 ademais de avião comercial sequestrado de propriedade da Panair com o objetivo de preparar em Aragarças (GO) o bombardeio de palácios situados no Rio de Janeiro, no caso, o de Laranjeiras e do Catete, e também de ocupar bases militares em diversas localidades do país. Frustrado o movimento rebelde com o decurso de nada mais do que um dia e meio, suas lideranças fugiram para o exílio nos aviões rumo a países vizinhos. Uma vez mais, a resposta institucional típica: nenhuma punição.
Já estava na reserva desde janeiro de 1959, quando era chegado o ano de 1961, ante mais uma tentativa de golpe militar, desta feita contra a posse de João Goulart, Vice-Presidente, quando da renúncia de Jânio Quadros, novamente o Marechal Lott interveio na vida pública para manifestar apoio à legalidade constitucional, com vistas a adensar as forças políticas em apoio à posse de Goulart. Enquanto colegas de farda de extrema-direita articulavam o assassinato do então Vice-Presidente João Goulart, tendo o Tenente-Coronel Paulo Costa emitido ordem no âmbito da “Operação Mosquito” para que o Coronel-aviador Roberto Baere – que por desobedecê-la seria punido 3 anos depois já sob o regime de 1964 – preparasse os caças para abater o avião que transportava o Vice-Presidente Goulart de sua viagem de regresso da China, o Marechal Lott resistia como podia aos preparativos golpistas. No dia seguinte à renúncia de Quadros, no dia 26.08.1961, ciente do movimento militar, Lott fez discurso endereçado às Forças Armadas que lhe rendeu prisão de 30 dias nas dependências do Exército. No documento Lott se contrapunha a posição do Ministro da Guerra do então ex-Presidente Jânio Quadros, o Marechal Odylio Denys (17.02.1892-05.11.1985), mas não sem contar com gritos populares de “Vivas ao Marechal da Legalidade”.
Odylio Denys, nomeado Ministro da Guerra em 15.02.1960, compreensivelmente considerava subversiva a carta pública de Lott, pois estava permeada, novamente, pela defesa da legalidade constitucional, enquanto Denys era um dos articuladores da tentativa de impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart juntamente com o Ministro da Marinha, Sílvio Heck, e o Ministro da Aeronáutica, Gabriel Grün Moss, sob a argumentação de que o passado de Goulart não o recomendava, que suas relações com o sindicalismo tampouco eram desejáveis, como se recaísse sobre o juízo dos militares e não no resultado expresso das urnas a responsabilidade da escolha sobre os mandatários políticos da nação. O teor da carta do Marechal Lott considerada “subversiva” pelos militares golpistas conclamava à defesa da legalidade:
Aos meus camaradas das Forças Armadas e ao povo brasileiro.
Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do Senhor Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denis, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual Presidente da República, Sr. João Goulart, entre no exercício de suas funções, e ainda, de detê-lo no momento em que pise o território nacional.
Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho um compromisso de honra com a minha classe, com a minha pátria e as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação.
Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, dos operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que os meus camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria.
A conclamação à defesa da legalidade de Lott é primorosa manifestação da virtude militar em seu inarredável compromisso com a ordem constitucional, teor que teima em não perder atualidade ante as reiteradas opções das Forças Armadas brasileiras, que parecem requerer imperiosamente a reeducação de quadros até aqui formados em instituição que expressa, geração após geração, seu desapreço pela legalidade constitucional e o compromisso tão profundamente assumido por Lott com a sua pátria e suas instituições, e nunca com potências estrangeiras e seus interesses econômicos.
O que os generais que hoje ocupam o espaço um dia honrado por Lott na caserna preservam de sua herança na defesa da soberania nacional e das regras constitucionais? Certamente não recordam nem apreciam o velho e virtuoso Marechal que defendeu os mais altos interesses nacionais em agosto de 1957 ao responder ao Secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles, que em visita ao Brasil pressionou para que o estatuto da Petrobrás fosse alterado. A resposta lapidar do Marechal Lott: “A Petrobras é intocável”. O que as atuais altas patentes militares aprenderam com o perfil de um homem íntegro e militar exemplar como Lott quando apoiam e diretamente intervém na concretização do esquartejamento da grande empresa nacional e das riquezas que controla em nome do povo brasileiro?
Hoje o Brasil vive momento crucial de sua história, contando com figuras de proa da vida política que têm confiança não apenas na realização do processo eleitoral para a Presidência da República ao final do ano como também que os seus resultados serão respeitados e as condições de governabilidade mantidas, preservando expectativa do reconhecimento militar de suas atribuições constitucionais e, assim, exercendo autocontenção. Dubitável, no mínimo, que a tradição de Lott esteja a inspirar a alta oficialidade, pois esta é a via apta para resgatar a soberania nacional que foi historicamente atacada sobretudo nos tempos correntes. Será de extrema dificuldade, mas não inviável sob a pressão popular, a empresa política de reverter o processo de alienação a que foi submetido o país em face da nova forma de execução da dominação capitalista-imperial, a guerra híbrida, da qual as altas patentes militares não permaneceram alheias, senão que com ela compactuaram.
Ulisses Guimarães repetia ter nojo da ditadura, tendo o Marechal Lott advertido ainda no dia 1º de abril de 1964 em nota pública aos seus colegas de armas que o movimento golpista era “completamente antidemocrático e contrário aos interesses nacionais procurar depor um presidente da República mediante uma insurreição”. Os fatos demonstraram exaustivamente que assistia toda a razão às precauções de Lott quanto a implementação de regimes antidemocráticos assim como ao nojo de Ulisses Guimarães, e se ainda algum de maior intensidade cabe a este sentimento, diz respeito aos ditadores e seus asseclas, gente que parabeniza e elogia os seus assassinos e torturadores, minúsculos sempre dispostos a apropriar-se de corpos e sacrificá-los em benefício de seus interesses econômicos, pois, verdadeiramente, nunca se tratou de ideologia. Cabe perguntar pela posição das Forças Armadas no cenário político que se apresenta no futuro próximo, ou seja, se apoiarão o pretendido golpe de Estado ou se, então, honrarão o espírito e o exemplo prático de homens verticais como Lott que em seu discurso em meio às tentativas militares por assestar golpe militar em 1961 conclamava todas as forças vivas do país “para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro”, expressando ainda a firme esperança de que seus “camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria”. Quais setores das Forças Armadas estão dispostos hoje a ouvir o discurso do Marechal Lott?
Nos dias que correm compartilhamos da esperança de Lott tantas vezes defraudada pelas opções políticas efetivamente adotadas pelas Forças Armadas, que se distanciaram de fazer valer o seu dever de proteger a soberania nacional e manter-se desconectados da vida política nacional. O desafio aos militares está posto na escolha entre proteger os interesses econômicos e políticos diretos daqueles alocados em milhares de postos no Estado brasileiro ou respeitar os seus deveres de ofício perante a Constituição e de honra perante o Estado e o povo brasileiro. Será a oportunidade de prestar as honras militares que Lott não recebeu do Estado em seu enterro e demonstração inequívoca de mudança de rumos da oficialidade quanto ao respeito à legalidade constitucional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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