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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Mentira desbragada: 1964, uma cruel ditadura

    "Os profanadores da civilização não cansam e depois de massacrar corpos vivos regressam para tripudiar sobre a sua memória, a de seus familiares, mas também de toda a população brasileira", diz o colunista Roberto Bueno. "Estes corpos que habitam nossa história são incômodos insuperáveis para os assassinos", continua. "Ditadura, General, nunca mais!"

    Ministro da Defesa, Walter Braga Netto (Foto: Alan Santos/PR | Reprodução)

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    Servidor do Estado é profissional marcado por conduta pautada por inarredável dever com a esfera pública, com o seu povo, pelo respeito à sua dignidade e integridade. Como pode um alto servidor do Estado compatibilizar sua posição representativa com a passividade e condescendência com atos de tortura de seu povo, a quem deve profundo respeito e obsequiosa submissão? A qual espécie pertence o caráter daquele que extrai o seu sustento e de sua família do fruto do duro trabalho diário de gente que também lhe confia armas para que a proteja, mas que se compraz em utilizá-las para ameaçar? A qual espécie pertencem indivíduos que ao recordar a história pátria, falsificam-na, e ao fazê-lo, ofendem o país, a memória de sua gente torturada, estuprada, e também vilipendiada sob formas e meios que o próprio diabo duvidaria?  

    Na terça-feira, dia 17.08.2021, na qualidade de Ministro de Estado, um General, foi convidado e compareceu à Câmara de Deputados para prestar esclarecimentos em audiência sobre as mais recentes ameaças de golpe contra a democracia. Uma delas foi nota assinada em conjunto pelo Ministro e os comandantes da Marinha, Aeronáutica e do Exército, dentro de contexto político de sucessivas manifestações golpistas do próprio Presidente da República que, por certo, não recebeu qualquer desmentido das Forças Armadas quanto a sua utilização para esta finalidade inconstitucional, senão o contrário, a nota conjunta assinada deu suporte às pretensões golpistas transgressoras do acordo político fundante do povo brasileiro expresso no texto constitucional de 1988. Foi nesta oportunidade que o Ministro de Estado declarou que em 1964 não houve uma ditadura, nada disto, teria sido, insistiu, um “regime forte”, isto sim, e nada mais. Corpos dilacerados, animais introduzidos em partes de corpos humanos por outros classificáveis como animais em pele humana, amassamento de crânios, corpos estraçalhados, tudo isto somado ao quadro de indigência ética de indivíduos capazes de torturar crianças, sequestrar famílias inteiras, infligir maus-tratos a bebês, a idosos, também incluindo a destruição psicológica e incineração de corpos, além de perfurações, amputações e extrações, em suma, selvageria pura organizada pelo aparato do Estado e executada por gente que Lúcifer rechaçaria em sua morada por imoderada. Para o Ministro de Estado nada disto importa, tudo não passou de um “regime forte”. Segundo tão peculiar e ignominiosa gradação da violência, acaso segundo os critérios do reluzente estrelado político também seriam classificados como regimes fortes aqueles que mantiveram espaços de eliminação em massa de indivíduos? Acaso seria “regime forte” o nacional-socialismo? Acaso seria um “regime forte” o que sobrevive gozosa e lucrativamente com a morte de 800 mil de seus cidadãos?  Existe alguma fronteira ética clara na mente de gente que deveria ostentar a coragem como virtude mas que se oculta atrás da conveniência de estratosféricos vencimentos obtidos com a alteração ignominiosa da legislação, tramada sob o amargor da vida em estado famélico de milhões de brasileiros enquanto tão somente os estrelados de latão se deleitam como uísque 12 anos regando bacalhau temperado com potes de leite condensado? Haveria ainda algum espaço para o constrangimento em algum recôndito de gente que testemunhou o miserável esmagamento de tantos indivíduos sob a ditadura militar de 1964 colocados em posição de impossibilidade de defesa? Toda esta violência sob qual pretexto? A “defesa” do Estado brasileiro? Quem seria o perigoso inimigo? Aquele indicado pela ideologia impregnada na Doutrina de Segurança Nacional de concepção norte-americana? Eram os opositores do regime dotados de potencial capacidade de ataque e planejamento como o daquele tenente que projetou explodir um quartel inteiro? Tudo indica que não seria necessário proteger o Estado de figuras assim, pois um foi promovido e, futuramente, até mesmo abraçado, louvado, entronizado e conduzido à esfera de “mito” pela caserna até elevá-lo ao ápice dos postos públicos da República. Vergonha, constrangimento, rubor? Nem sinal.

    Qual era a preocupação à “época histórica”, quais os (reais) inimigos, quais as ameaças que levariam a tão radical ação do Estado ditatorial militar contra a sua própria gente? Proviria da distante União Soviética ou da remota China, países que, à diferença dos EUA, nunca operaram militarmente na América Latina? Sob qual pretexto a “defesa” do Estado brasileiro poderia dedicar-se ao assassinato de sua gente? Acaso teria sido nada mais do que para obter os favores da detenção do poder para, adotando o eixo da política norte-americana, buscar recompensas junto ao império e suas grandes corporações sempre dispostas a apoiar os traidores de suas pátrias? Qual a preocupação com as virtudes da farda, dentre as quais a honradez e a honestidade? Há algum resquício, mesmo que longínquo, da alegada coragem de gente treinada para expor a sua vida a risco em defesa do país quando, em verdade, influentes escalões a dedicam a potencializar a obtenção de mais altos vencimentos – eventualmente à custa de falsas promoções por honrarias inexistentes – e a entrega do país inteiro para interesses de grandes corporações estrangeiras? É compreensível que as Forças Armadas não mais realizem desfiles de 7 de setembro, pois a independência do Brasil já não mais é motivo de orgulho para aqueles que a solapam, e cuja defesa já tampouco figura entre suas prioridades. 

    Para a autoridade militar responsável pela Defesa nacional tudo que ocorreu nos desdobramentos do golpe militar de 1964 foi uma “questão histórica”, que teria de ser analisado segundo os termos da “época”, e não sob os critérios de hoje, ideia perfeitamente compatível com o argumento das altas patentes nacional-socialistas no julgamento de Nuremberg, ao desconhecer o teor das acusações da promotoria, posto que a legalidade da Alemanha nacional-socialista não havia sido descumprida. Sob tão tortuoso pensar político inexistem direitos humanos, mas apenas força militar a determinar o que é ou não direito, que encarna recuo civilizacional do direito à força bruta, ângulo afim com a “teoria política” do General cujo horizonte prenuncia a perpetração de intensas misérias humanas, posto que passíveis de compreensão dentro de seu “contexto”. Tudo isto foi dito na Câmara dos Deputados, casa legislativa do povo brasileiro, uma vez mais desrespeitado em sua memória e dignidade.  

    A mentira desbragada ecoou pelos corredores da Câmara e suas paredes permaneceram indefesas e, tamanha ofensa, teriam reagido se pudessem. Ante aquele contexto da “guerra fria” do período do golpe militar de 1964 sobre o qual desliza o raciocínio do General, deduz-se da aplicação de sua lente “da época”, que tudo poderia ser permitido, posto que implicitamente admitidas as mortes e assassinatos, de todo o tipo, e quantidade, independentemente, inclusive, da apuração de responsabilidades, bastando que o regime considerasse indesejáveis ou criminosos. Foram cassados mandatos de políticos eleitos sob a legislação vigente, outros tantos foram presos, outros ainda precisaram partir imediatamente para o exílio, sindicalistas foram perseguidos, professores foram demitidos, magistrados e servidores públicos afastados e perseguidos assim como estudantes, e muitos, assim como Gregório Bezerra, foram torturados por homens do regime, do alto de seus 64 anos de idade, que amarrado pelo pescoço foi arrastado pelas ruas do bairro de Casa Forte, no Recife, deixando bastante claro os evidentes sinais da “ordem” e da civilização inerente aos golpistas condutores da “Redentora”. Segundo o General, este ato bárbaro também não passou de mero “excessos”, assim como tantos atos de terror de Estado planejados pelos militares. 

    Ações homicidas em massa foram organizadas por militares, a exemplo da colocação de várias bombas no Riocentro durante show multitudinário em 30.04.1981, capaz de provocar a morte de alto número de pessoas. Nesta mesma listagem o gravíssimo caso Para-Sar (1968) – também conhecido como Atentado do Gasômetro –, planejado pelo então Brigadeiro João Paulo Burnier. Haveria duas fases, uma de explosões de bombas nas ruas do Rio de Janeiro e, na segunda, o ápice, com a colocação de potentes bombas, simultaneamente, no Gasômetro de São Cristóvão e também na Represa de Ribeirão das Lajes, ambas devendo ser acionadas por controle remoto, tendo esta última o objetivo de assassinar o maior número possível de civis. Sim, o objetivo dos militares era assassinar o maior número possível de civis brasileiros, e a este regime é que o General ora em causa classifica como não ditatorial, sendo este plano nada mais do que um dos atos que classifica como “excessos” do regime. O gravíssimo ataque apenas não foi concretizado em face de insistente denúncia interna do oficial Sérgio Ribeiro “Macaco” Miranda de Carvalho, posteriormente perseguido nas Forças Armadas, enquanto os planejadores do golpe ascendiam na carreira. 

    Mas se para o reluzente General o regime de mortes de 1964 não passou de “excessos”, acaso não subsistiria qualquer problema de consciência com a exposição à morte de milhares de jovens no Riocentro? Nada? Algum problema com a impunidade das altas patentes que planejaram a explosão do Gasômetro e a morte de milhares de civis brasileiros? Nada? Ao General caberia ainda perguntar se todos os assassinatos perpetrados de forma documentada pelo regime terão sido um mero “excesso”? Teriam sido as violências meras “excentricidades”? Terão sido os atos violentos, praticados ou falidos, ações realizadas por subordinados sem expressa ordem de superiores? Mas em qual tipo de mundo paralelo tal raciocínio habita quando é da conduta de militares pautados pela hierarquia do que se trata? Particularmente descreio que a lógica que permeia tal mundo difira essencialmente daquela típica do mundo doentio das mentes que conceberam o plano e executaram as ordens de extermínio de milhões de vidas nos campos de concentração nazistas. 

    Das tortuosas linhas da “teoria política” do General sobressai a conclusão de que uma ditadura não merece a “honraria” desta classificação senão a custas de caminho pavimentado sob pilhas de corpos gélidos, muito mais sendo os mortos necessários para tanto do que os engendrados pelo regime militar de 1964, realidade abordada em conhecida entrevista para a televisão, e com todas as palavras, pelo Comandante-em-Chefe do General, que na oportunidade verbalizou ter sido uma “pena” o tão baixo número de mortos, pois o regime deveria ter assassinado “pelo menos uns 30 mil”, sinistra contagem que foi preenchida pela ditadura Argentina instaurada em 24.03.1976, além dos vizinhos Uruguai, Bolívia, Chile... E hoje, de aplicarmos a torcida gramática política do General, acaso seria classificável como ditadura um regime que contempla – entre calculista de lucros econômicos e benefícios políticos – a cotidiana produção de cadáveres de seus cidadãos contados na casa de centenas de milhares? 

    A sede de sangue humano somado a voracidade por cargos menores e assombrosas quantidades do vil metal por parte dos especialistas em matar – além de falsas distinções de latão no peito não impostas pela coragem mas pela vilania – parece não ter limites. Um dos desafios destes tempos, e do horizonte próximo, é (re)conhecer quais são os reais móveis desta gente cuja conduta margeia a humanidade, dando início à travessia rumo ao pantanoso terreno dos líderes do Holocausto e seus perpetradores nos campos da morte. É gente que transborda Tanatos, até a medula, à última célula de seus corpos, odor típico das salas de tortura; não foi apresentada a Eros, mas o repele porque teme o prazer que lhe incógnito por seu brilho, luz e pulso vital. No limite, deprimidos e depressores, cuja raiz do mal exala e envenena perigosa e letalmente o ambiente humano. O seu regime é imagem do grande necrotério. 

    Considerado o “argumento” do General de que o regime de 1964 não foi uma ditadura, mas que tão somente “excessos” foram cometidos, então, está a assumir que não se tratou mais do que “desvios de rota”, ou seja, que não havia planejamento. Mas e se tivéssemos a prova objetiva de que não se tratou de “excessos” por parte de chacais descontrolados a serviço do Estado mas sim de efetivo planejamento do Estado? E se tivéssemos a confirmação de ordens provenientes da própria Presidência da República para que assassinatos de opositores fossem perpetrados por seus subordinados e assim ficasse clara a cadeia de comando? Neste caso, segundo a “teoria política” do General, teríamos a classificação daquele regime militar de 1964 como ditadura, pois não haveria “excessos”, mas sistematização da prática dos assassinatos e, por conseguinte, ficaria confirmado o caráter ditatorial do regime de 1964.  

    A prova cabal desta cadeia de comando cujas ordens foram obcecada e doentiamente cumpridas com requintes de perversidade se encontra em reunião mantida entre o Presidente Geisel, o General Milton Tavares de Souza, o General Confucio Danton de Paula Avelino e o General João Baptista Figueiredo, narrada em documento da inteligência norte-americana. Nela restava clara a autorização do Presidente Geisel para que fosse dada sequência à “política” de assassinatos já levada à prática pelo Presidente Médici, informando ainda que 104 pessoas tinham sido assassinadas devido ao seu caráter “perigoso e subversivo”. De forma direta e inequívoca, quando eram cumpridos exatos dez anos do golpe de Estado, no dia 1º de abril de 1974, o General João Figueiredo, na qualidade de Chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), segundo relatório da inteligência norte-americana, recebeu ordens diretas do Presidente Geisel para que os assassinatos continuassem, tomando “cuidado”, isto sim, para que fossem tomados como alvos “apenas” os “perigosos subversivos”, revelando assim “grande” cuidado, revelador de singular “caráter”, inadjetivável compromisso com princípios ademais de tormentoso requinte ético. Há Estados que presumem ser democráticos e dispõem da previsão de pena de morte em seus respectivos ordenamentos jurídicos, mas em todo caso, nenhum deixa de prever a mediação do devido processo legal e sentença do Poder Judiciário. No oblíquo conceito de “Estado forte” do General não há qualquer obstáculo em praticar assassinatos para além de qualquer mediação de processo e decisão judicial, senão que basta a autoridade militar assim decidir. Se isto não for uma ditadura, então, o que é uma? Quando um regime não protege a vida senão que toma como missão matar os seus cidadãos, então, o que ele é? Se não é uma ditadura, é exatamente o que? A qual tipologia pertence, afinal, um regime cujo aparato coercitivo do Estado é mobilizado para matar seus cidadãos sob diversos meios que vão da tortura ao envenenamento, do fuzilamento ao homicídio em massa por omissão sanitária? 

    Sob a ditadura militar o executor de “tão alta missão” de avaliar a quem assassinar assim como ordenar o extermínio dos “perigosos subversivos” foi João Figueiredo enquanto Chefe do SNI, que logo seria ungido à Presidência em 1979 com o devido apoio de seus camaradas de farda. Nenhum problema para quem está acostumado à morte. Ele, como os demais planejadores de assassinatos, desprezavam solenemente o “detalhe” de que a subversão à ordem constitucional fora de fato praticada pelas Forças Armadas em 1964 ao assestar golpe de Estado contra João Goulart e a íntegra do povo brasileiro. Falsificar a verdade nunca foi um problema para quem se ocupou de ocultar corpos gélidos cujo último olhar fixou eternamente em seus algozes. Ditadura em 1964, General, sim, ocorreu, e foi sangrenta, crudelíssima, e não apenas eventualmente assassina, mas irmã de alma de genocidas como as demais latino-americanas, a exemplo da ditadura argentina, cujos militares não escaparam à justiça dos homens foram devidamente condenados por crimes contra a humanidade ademais de destituídos de todas as falsas honrarias militares, afinal, roubar bebês e estuprar nunca foram motivos para sustentar a honra e a coragem militar. 

    Os regimes que organizam a morte transpõem à célere galope o umbral da vilania, ascendendo à crua barbárie, transformando a semântica quando fazem da coragem a covardia, e da solidariedade um crime típico do inimigo do Estado. Relembremos a força do poema de Ferreira Gullar, “História de um valente”, escrito em homenagem a Gregório Bezerra: “Valentes, conheci muito / e valentões, muito mais / uns só valente no nome / uns outros só de cartaz / uns valentes pela fome / outros para comer demais / sem falar dos que são homens / só com capangas atrás. / Mas existe nesta terra / muito homem de valor que é bravo sem matar gente / mas não teme matador / que gosta da sua gente / e que luta ao seu favor / como Gregório Bezerra / feito de ferro e de flor”. Onde está a real coragem dos valentões com capangas? Onde está a coragem do homem armado que impõe a fome aos depauperados? Onde, mesmo, está a coragem do rico e armado que suprime trabalho e remuneração ao indivíduo em estado famélico? Onde está a coragem senão em lutar pela promoção da vida ao invés de organizar o seu extermínio? Onde está a genuína versão da coragem senão em dedicar-se a proliferar as condições materiais de vida de sua gente ao invés de ameaçar cotidianamente com a expropriação de bens da vida? 

    Os profanadores da civilização não cansam e depois de massacrar corpos vivos regressam para tripudiar sobre a sua memória, a de seus familiares, mas também de toda a população brasileira. Os corpos que tombaram no combate ao regime ditatorial que organizou e ordenou assassinatos merecem tão intenso respeito quanto desprezo os seus perpetradores, e não menos aqueles que prestam honrarias vis à memória dos que convalidam o assassinato do povo brasileiro. Estes corpos que habitam nossa história são incômodos insuperáveis para os assassinos, e recordarão, sempre, para todas as gerações, que a liberdade tem preço, e pagá-lo é a única via para garanti-la. Em nome da vida, há que resistir, sempre. Ditadura, General, nunca mais!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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