Mujica, Lucía e Manuela
Vida, legado e despedida
Por Marcia Carmo - Mujica disse que quer ser sepultado no quintal de seu sítio onde já está enterrada sua cachorra Manuela. A cadela de três patas morreu em 2018. Ela sempre esteve perto dele. No cotidiano de sua casa, no seu fusca azul e durante suas entrevistas à imprensa.
A decisão de Mujica, de 89 anos, sobre sua morada final é mais um gesto da sua fidelidade às suas próprias atitudes e pensamentos. Mujica costuma dizer que as pessoas o admiram, mas não fazem o que ele defende e propaga: a simplicidade.
O entrevistei duas vezes. Na primeira, logo depois que ele foi eleito presidente em 2009. Ele visitava Buenos Aires e liguei para o quarto do hotel onde ele estava. Ele atendeu. ‘Você já tomou seu café da manhã?’, perguntou. Respondi que não. ‘Então, venha tomar café comigo’. Foram duas horas de conversa. Só os dois, entre goles de café, de água e algumas ‘medialunas’ (croissants). Com seu tom tranquilo, falou sobre o Uruguai, o Brasil, a América Latina. Enfatizou sua defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo: ‘O mundo caminhou pra trás. A união entre pessoas do mesmo sexo era algo natural no passado’. O Uruguai e a Argentina foram os primeiros países da região a permitir o casamento igualitário. Mujica falou sobre sua admiração pelo Brasil. Um país diverso, potente. Detalhou ainda sua amizade de longa data com o presidente Lula. ‘É um irmão para mim’. Ex-guerrilheiro do Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros, Mujica já teve sua história contada em livros e filmes. Sempre bom lembrar o imperdível ‘Uma noite de 12 anos’.
Antes de ser presidente, ele foi ministro da Agricultura do governo de outro líder fundamental para a história recente do Uruguai, Tabaré Vázquez. Médico, Tabaré continuou atendendo seus pacientes nos fins de semana enquanto foi presidente. A história dos dois têm pontos em comum, como o combate à desigualdade social e à ditadura militar no país, entre 1973-1985.
Tabaré foi o primeiro presidente a romper a histórica rotatividade entre os políticos ‘blancos’ (Partido Nacional) e ‘colorados’ (Partido Colorado). Os dois partidos estão entre os mais antigos do mundo e fazem parte da especial democracia uruguaia. Tabaré, que morreu em 2020, abriu caminho para Mujica na Presidência.
A segunda vez que entrevistei Mujica foi em abril de 2024 aqui para o nosso canal Brasil 247. Mujica voltou a falar sobre o Brasil. Um país gigante, mas que será ainda mais forte unido a outros, disse. Fez questão de ressaltar sua amizade sólida com o presidente Lula. Sua admiração por Lula e sua preocupação com o futuro do PT e do lulismo. “Temos que pensar sempre no longo prazo e o lulismo não pode acabar nunca”, disse. Na entrevista, na cozinha da sua casa, no sítio onde quer ser sepultado, perto de Manuela, Mujica falou sobre suas preocupações com a América Latina, sobre a importância de se aprender a respeitar os que pensam diferente. Do seu repúdio aos discursos de ódio, da sua surpresa com a eleição de Milei na Argentina. Ele explicou sua inquietação com os jovens - os excluídos, os que não estudam e não trabalham e aqueles que têm o consumo como principal objetivo. “A vida precisa de ideal”, costuma dizer.
Chovia muito quando chegamos (o cinegrafista Victor Fernandes e eu) ao rancho de Mujica e de sua companheira, ex-senadora e ex-guerrilheira Lucía Topolansky, de 80 anos. Eles se amam há mais de 60 anos. No lugar, vimos ovelhas soltas e as flores que Mujica cultiva. Quem nos recebeu na entrada do corredor de arbustos que leva à casa simplória foi ela, a companheira de vida de Mujica, Topolansky. Cabelos brancos, sorriso suave e sotaque tipicamente uruguaio, nos levou até a cozinha, onde Mujica nos esperava, e disse: ‘Deixo vocês sozinhos’. No pequeno espaço da entrevista, Mujica nos mostrou os presentes que ganhou e que guarda e que dali espera que não tirem. Deseja que fiquem talvez como um lugar para visitação futura, quando ele já não estiver presente. Ele e Lucía se conheceram nos tempos da guerrilha, da luta contra a ditadura uruguaia. Não tiveram filhos. Mas têm um legado infinito para o Uruguai e para a América Latina. O apoio deles foi fundamental para a recente eleição presidencial de Yamandu Orsi, que como ele é da Frente Ampla. Quando a entrevista já chegava ao fim (só porque tínhamos que pegar a estrada até chegar ao aeroporto), Mujica disse: ‘Estou vivo por causa dela. Ela cuida de mim’. No dia seguinte da entrevista, sua médica anunciou que ele sofre de um câncer no esôfago. À saída da casa deles, Lucía nos despediu com um beijo no rosto. Comentei que vi quando ela discursou, anos atrás, na universidade dos porteiros (Universidade Metropolitana para a Educação e o Trabalho - UMET), em Buenos Aires, sobre a importância da educação. Ela sorriu. E disse apenas: ‘Você gostou?’. Muito, respondi. Na semana passada, Mujica disse que sua hora da partida está chegando. Que o câncer no esôfago se espalhou para o fígado. E ele não quer continuar o tratamento. Que não dará mais entrevistas. ‘O guerreiro também tem direito ao descanso’, disse ao Búsqueda, de Montevidéu. Mujica não acredita na vida além da morte. E tem a certeza de uma vida dignamente vivida. Quem duvida?
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