Natal não é sobre Papai Noel ou Menino Jesus: é sobre uma menina palestina
"Além do desrespeito ao estado laico, a oração não poderia estar mais fora de contexto: Maria, mãe de Jesus, foi uma jovem palestina", escreve Sara Goes
A reza de Ave Maria foi entoada com agressividade em uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados (27/11) durante a discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, que busca proibir o aborto legal em todos os casos. A deputada Simone Marquetto (MDB-SP) recitou a oração sem ser interrompida, enquanto sua colega Lídice da Mata (PSB-BA) teve a fala desrespeitada diversas vezes pela presidenta da Comissão, Caroline de Toni (PL-SC). No corredor do auditório manifestantes foram acuados pela Polícia Legislativa. Eles gritavam palavras de ordem como "Criança não é mãe/Estuprador não é pai" e "Retira a PEC". Os bordões dialogavam diretamente com o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro. Brasil, 2024.
Além do desrespeito ao estado laico, a oração não poderia estar mais fora de contexto: Maria, mãe de Jesus, foi uma jovem palestina que viveu sob a opressão e a violência estatal, uma realidade que ainda marca a vida das mulheres de sua terra. Na narrativa bíblica, Maria não é uma figura passiva: ao aceitar o anúncio do anjo Gabriel, demonstra coragem e consciência, assumindo um papel central na história do nascimento de Jesus. Segundo a tradição abraâmica, seu sim não foi fruto de submissão, mas de uma escolha feita com plena agência, desafiando as normas de sua época. O nascimento de Jesus é também a história de Maria, uma jovem refugiada que enfrentou exclusão e adversidades. Longe de casa, foi obrigada a viajar para Belém devido a um decreto imperial, carregando seu filho no ventre em meio à opressão do poder colonial e à falta de acolhimento. Ela encontrou portas fechadas e deu à luz em uma manjedoura, sem condições básicas ou apoio médico. Sua força diante da marginalização é um lembrete da dignidade das mulheres que enfrentam desafios extremos. Assim como tantas mães palestinas, Maria viveu a tragédia de ver seu filho morto pelas mãos de um Estado colonial e opressor.
No Brasil, o mito de Maria assumiu contornos específicos com a figura de Nossa Senhora Aparecida. Como demonstrou a historiadora Jessica Maria Marques Rabello, a Igreja Católica transformou Aparecida em símbolo nacional no início do século XX, em um esforço para reforçar sua presença em uma República Laica. Negra e mestiça, Aparecida foi coroada Rainha do Brasil em 1904, consolidando-se como uma mãe que acolhe e protege uma nação marcada pela desigualdade e violência estrutural. O culto de Maria no Brasil reflete uma dualidade que tanto exalta quanto aprisiona a figura feminina: por um lado, Maria é celebrada como mãe protetora e acolhedora; por outro lado, essa veneração muitas vezes reforça uma narrativa que valoriza o sacrifício e a abnegação feminina em detrimento de sua autonomia e protagonismo.
Essa realidade não se aplica apenas à mãe Maria: Metade das mulheres beatificadas no Brasil foram vítimas de feminicídio. Entre elas destaco minha conterrânea, Benigna Cardoso da Silva, a Menina Benigna, assassinada aos 13 anos no sertão do Ceará por rejeitar os avanços de um jovem. Conhecida como a "heroína da castidade", sua história foi transformada em símbolo de resistência contra a violência de gênero no estado do Ceará. Infelizmente a beatificação de Benigna reflete uma sociedade que tende a valorizar essas mulheres apenas depois de suas mortes, ignorando as condições que poderiam ter evitado tais tragédias. Assim, o culto à figura feminina frequentemente desvia o olhar da necessidade urgente de enfrentar as estruturas que perpetuam a violência contra as mulheres em vida.
É nesse cenário de desigualdade e opressão que surge uma mensagem profundamente simbólica e transformadora no mesmo fim de semana em que Israel intensificou suas operações militares na Síria: Papa Francisco ofereceu uma poderosa reflexão ao inaugurar no Vaticano um presépio onde o Menino Jesus aparece envolto em um keffiyeh, o característico lenço palestino. Esse gesto vai além da homenagem simbólica. Ele resgata a identidade histórica de Jesus e de sua família, colocando em evidência o sofrimento dos palestinos contemporâneos, que como Maria, enfrentam a opressão, a mais profunda violência estatal e a marginalização.
No entanto, poucos dias após a inauguração, o keffiyeh foi removido do presépio sem explicações oficiais, gerando debates sobre a decisão e seu impacto. A retirada do lenço palestino não enfraquece o simbolismo inicial do gesto. Pelo contrário, o gesto interrompido acentua as tensões em torno da representatividade cultural e política no contexto religioso.
Ao inserir — e depois retirar — a identidade palestina no centro da narrativa do nascimento de Cristo, o episódio não só denuncia as injustiças de ontem e de hoje, mas também nos convida a refletir sobre os desafios de sustentar uma mensagem de fé como instrumento de justiça, solidariedade e resistência. Esse presépio, mesmo alterado, permanece como um manifesto que nos lembra que o Natal não é apenas uma celebração da paz, mas um chamado à ação pela paz, contra as estruturas que perpetuam desigualdades e violência
Ao olharmos para o simbolismo do lenço palestino no presépio, somos instigados a pensar nas Marias de outros contextos. No Brasil, as Marias - negras, indígenas, mães periféricas, trabalhadoras invisibilizadas - também carregam seus filhos em meio a sistemas que as violentam, abandonam e silenciam. Elas enfrentam o ódio do Estado, que lhes nega políticas públicas básicas, e do mercado de trabalho, que lhes impõe jornadas extenuantes e salários insuficientes. Essas mulheres são desumanizadas em vida, apenas para serem glorificadas postumamente quando se tornam mártires de feminicídios, violência policial ou acidentes evitáveis.
A graça que recebem, assim como Maria aos pés da cruz, não é fruto do reconhecimento de suas lutas em vida. São elas que, ao morrerem tragicamente como Marielle, passam a ser chamadas de guerreiras ou santas, quando na verdade deveriam ser honradas, valorizadas e sobretudo protegidas enquanto ainda estão vivas. No país que odeia mulheres mas ama o sacrifício delas, as mães que perdem seus filhos para a violência estatal e estrutural tornam-se símbolos de resistência após tragédias irreparáveis: Sílvia Aparecida da Silva, mãe de Gabriel Renan, morto com 11 tiros por um policial militar em São Paulo, e Maria de Lourdes Fernandes, que viu seu filho Thiago, motociclista de aplicativo, ser executado por outro policial em Camaragibe, ilustram a face mais cruel desse ciclo. Beatriz da Silva Rosa, que perdeu o pequeno Ryan, de apenas 4 anos, em uma ação da Polícia Militar em Santos, e as Mães do Curió, que lutam por justiça após a chacina de 11 jovens em Fortaleza; da mesma forma, Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel Otávio, morto em Recife ao cair do 8º andar enquanto sua mãe trabalhava, Leidiane Rodrigues, mãe de Mizael, adolescente de 13 anos foi morto pela PM enquanto dormia, em Chorozinho; as anônimas mães da escala 6x1, exaustas por jornadas desumanas e as meninas-mães, vítimas de violência sexual, forçadas a gerar os filhos de seus abusadores por parlamentares que berram Ave Maria ao invés de protegê-las; todas elas também carregam no corpo e na alma as marcas de um Estado que mata a melhor parte delas e depois as transformam em mártires.
Neste Natal pense em Maria, a menina palestina mãe de Jesus. Pense que ela também enfrentou a dor da violência do estado e a perda violenta de seu filho. Como essas mães brasileiras, Maria foi elevada como símbolo de amor e força, mas teve sua humanidade e sua luta apagadas pela idealização do sacrifício. O gesto do Papa Francisco nos lembra que o Natal é também sobre essas mulheres: ao vermos o Menino Jesus envolto no lenço palestino, somos chamados a enxergar as conexões entre as lutas da Virgem Maria e as Marias brasileiras e palestinas, que resistem diariamente contra forças que insistem em apagá-las.
Eu sou ateia, filha de uma mulher ateia, neta de uma mulher ateia e bisneta de uma mulher ateia, mas Maria é meu Papai Noel. Foi no mito dela que encontrei conforto quando a vida me tirou de forma violenta o amor de um filho e quando nenhuma medicina fez parar de doer. Porque, no fim, quem nunca precisou de uma mãe que nos acolhesse nas horas mais difíceis? Que este Natal seja um momento não apenas de celebração, mas de compromisso com a transformação dessa realidade, para que a graça alcance as mulheres em vida, e não apenas como epitáfio de sua resistência.
Amém.
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