Negacionismo e tolerância com o extremismo
"Tolerar os atos violentos e equiparar 'terroristas' a 'opositores' são exemplos que apontam para uma via ideológico-negacionista", diz Flávio de Leão Bastos
Em artigo publicado na obra coletiva organizada por Marcelo Zelic, Ana Carolina Zema e Elaine Moreira, “Genocídio Indígena e Políticas Integracionistas: Demarcando a Escrita no Campo da Memória” (Selo da Rua/Instituto de Políticas Relacionais, 2021), o Professor Felipe Tuxá escreveu que o fenômeno do negacionismo científico e histórico...associado a ideologias políticas, pode gerar consequências catastróficas para as sociedades contemporâneas.
Muito embora o autor aborde de forma crítica em seu texto aspectos estruturais sobre o crime de genocídio cometido contra os povos indígenas do Brasil, visão que temos defendido há anos, a afirmação acima é perfeitamente aplicável ao atual contexto global e à democracia que enfrentam como a maior ameaça à sua segurança as ações dos grupos de extrema-direita, assim reconhecido, por exemplo, pelo Estado alemão (https://www.dw.com/pt-br/extrema-direita-%C3%A9-principal-amea%C3%A7a-%C3%A0-seguran%C3%A7a-na-alemanha-afirma-governo/a-54111163).
No início de dezembro de 2022, operação composta por cerca de três mil policiais desencadeou a prisão de vinte e cinco membros do grupo radical Reichsbürger (Cidadãos do Reich), grupo extremista que acredita que as fronteiras do império alemão de 1871 ainda estão em vigor e, assim, organizam-se para eliminar o atual Estado democrático e suas instituições.
Seu objetivo era atacar o Parlamento alemão (Bundestag) por meio de um putsch (golpe de Estado) e declarar uma nova ordem no país.
Um dos envolvidos, Rüdiger Von P., mantém empresas em seu nome no Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, foi comandante do batalhão de pára-quedistas 251, expulso do Exército alemão por vender armas dos estoques do antigo exército da Alemanha Oriental.
Entre outras autoridades envolvidas, constatou-se, ainda, o envolvimento de militares e de Birgit Malsack-Winkemann, ex-membro do parlamento federal pelo partido neonazista Alternativa para a Alemanha (AfD) e Juíza da Câmara Cível de Berlim.
A situação chama a atenção uma vez que, poucos dias após, também o Brasil se vê diante de uma tentativa de ato terrorista em sua capital, não sem antes a sociedade brasileira assistir, atônita, atos golpistas de violência e vandalismo cometidos em Brasília, sem que qualquer prisão tivesse sido efetuada, embora tenham causado inúmeros prejuízos para a capital federal.
Mais ainda, a vice-procuradora-geral da República opinou, junto ao STF, pela não inclusão de tais atos nas investigações a cargo da Corte Suprema, alegando que seria necessário estabelecer filtragens a petições com claro viés político, que pretendem causar confusão jurídica e incriminar opositores por meio de conjecturas e abstrações desprovidas de elementos mínimos.
O confronto entre as situações é inevitável.
No Brasil, foi necessária a descoberta de uma bomba que deveria ter explodido junto a um caminhão de combustível, apta a matar e ferir centenas de pessoas inocentes, para que o primeiro terrorista (que frequentou o Senado Federal dias antes), fosse preso, enquanto, na Alemanha, mais de três mil policiais foram mobilizados no país, bem como em outros países, uma vez que prisões foram realizadas, por exemplo, na Itália.
O extremismo de direita se tornou a maior ameaça à paz hoje no mundo e se trata de um movimento global que requer o compromisso das nações democráticas em combatê-lo. Não se pode admitir que ideologias da morte como o fascismo, o neonazismo e o nacionalismo racista voltem a ter qualquer espaço nas sociedades contemporâneas.
Ao Estado democrático cabe o dever de agir preventivamente, uma vez que não é obrigado a esperar um dano real e concreto a partir de ações terroristas, inclusive conforme precedentes da Justiça brasileira (TRF4, ACR 5046863-67.2016.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA).
É também interessante destacar a Resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, à qual o Brasil aderiu desde sua fundação em 1945, que impõe aos Estados-membros que reprimam e previnam o financiamento do terrorismo, inclusive com o congelamento dos fundos e demais ativos financeiros ou recursos econômicos das pessoas que cometam, ou tentem cometer, atos de terrorismo, neles participem ou os facilitem; das entidades que sejam propriedade dessas pessoas ou que estejam sob o seu controle direto ou indireto; e das pessoas e entidades que atuem em nome ou sob instruções dessas pessoas e entidades
Não sem razão, Flávio Dino, que assume o Ministério da Justiça a partir de 1º de janeiro de 2023, já anunciou que solicitará à Procuradoria Geral da República e ao Conselho Nacional do Ministério Público a criação de grupos especiais para combate ao terrorismo e ao armamentismo irresponsável, medida bem-vinda.
A Constituição da República de 1988 consagra, em seu artigo 4º, o repúdio ao terrorismo sob o status de princípio que rege a República brasileira em suas relações internacionais.
A legislação infraconstitucional brasileira prevê alguns instrumentos interessantes de combate ao crime de terrorismo, como a inafiançabilidade e a imprescritibilidade dos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e contra o Estado de Direito (CF/88, artigo 5º, inciso LXIV); além dos tipos penais previstos nos artigos 359-M, 359-R e 359-L, todos do Código Penal e que têm como objeto tutelado a ordem constitucional, as instituições democráticas, os meios de comunicação, as instalações e os serviços destinados à defesa nacional, quando atacados com a específica intenção de abolir o Estado Democrático de Direito.
A Lei n° 13.260, de 16 de março de 2016 e que tipifica o crime de terrorismo, define em seu artigo 2º que o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
Assim, a ausência de motivação para o crime imposta por radicalismos políticos, pode gerar discussões, lacuna que deveria ser corrigida, ao nosso ver, embora com os cuidados necessários para que seja respeitado o disposto pelo §2°, do próprio artigo 2º e que preserva o direito humano fundamental à manifestação política com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais.
Interessante observar, ainda, que a Lei n° 10.744, de 9 de outubro 2003, que dispõe sobre a assunção, pela União, de responsabilidades civis perante terceiros no caso de atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo, define ato terrorista em seu artigo 1º, §4°, como qualquer ato de uma ou mais pessoas, sendo ou não agentes de um poder soberano, com fins políticos ou terroristas, seja a perda ou dano dele resultante acidental ou intencional. Como dito, referida definição deve ser aplicável com fins a se apurar responsabilidades civis (patrimoniais) da União, perante empresas de transporte aéreo.
Neste sentido, o Projeto de Código Penal (Projeto de Lei n° 236/2012 – Senado Federal) prevê expressamente a motivação política para a configuração do crime de terrorismo em seu artigo 239, inciso III (...causar terror na população mediante as condutas descritas nos parágrafos deste artigo, quando....III – forem motivadas por...,razões politicas... – ver https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3515262&ts=1645029382318&disposition=inline).
É preciso que seja observado o Princípio da Legalidade, garantia constitucional fundamental, bem como previsto pelas normas internacionais, sob pena de abrirmos precedentes para uma via rumo à famigerada “Teoria do Direito Penal do Inimigo” (1985), proposta por Günter Jakobs e pela qual aqueles considerados “inimigos do Estado” devem ser privados das garantias processuais e materiais fundamentais, visão própria de regimes ditatoriais e totalitários.
De qualquer modo, todos os indivíduos que bloquearam estradas; queimaram pneus; realizaram postagens golpistas articuladas; que vandalizaram Brasília; que planejaram ataques com bombas no final do atual governo (fato que lembra outro acontecimento histórico: a tentativa de atentados no Riocentro, por militares radicais, durante as celebrações do dia do trabalho em 1º de maio de 1981 - http://memorialdademocracia.com.br/card/bomba-no-riocentro-implode-terror-militar), já durante o ocaso do regime ditatorial militar; sobretudo aqueles que financiaram tais atos terroristas, podem ser denunciados com base nas condutas acima previstas pelo Código Penal brasileiro. No que tange ao seu enquadramento por prática de terrorismo, cujas penas podem atingir trinta anos de reclusão, certamente haverá discussões de ordem jurídica.
Sobretudo, tolerar os atos violentos de Brasília e equiparar “terroristas” a “opositores” são exemplos que apontam para uma via ideológico-negacionista que pode se revelar trágica, como alertou o pensador indígena Felipe Tuxá, acima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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