Nelson, a esquerda não treme e nem teme o mrs. burns
Uma resposta ao artigo do vereador Nelson Hossri: “A vitória de Trump é um recado para o mundo”, no jornal diário aqui de Campinas
Me animei a escrever depois de ler o artigo do vereador Nelson Hossri: “A vitória de Trump é um recado para o mundo”, no jornal diário aqui de Campinas e também porque um cliente me perguntou: “o senhor ainda é de esquerda? ” (acho que ele pensava que ser de direita hoje é “estar na moda” e ser de esquerda é démodé).
Quando meu cliente me fez a tal pergunta eu pedi que a Luciana, nossa assistente, trouxesse mais um café São Joaquim (que tomo sem açúcar, como aprendi com o Doutor Isolino Siqueira) e me propus a explicar o meu ponto de vista, explicação que serve ao nobre Edil.
Expliquei a ele que comecei a me interessar por política muito cedo, acompanhava meu avô Pedro nos comícios do Chico Amaral, membro dos “autênticos do MDB”; contei a ele que meu avô recebia amigos e eu ouvia o que eles conversavam; ouvia com atenção e interesse, incomuns para uma criança do ensino fundamental; que as reuniões eram regadas a café, bolo e refrigerante da Vanucci; hoje sei que esses encontros reuniam amigos que, em sofrimento cívico, se opunham à ditadura militar; eles não eram militantes, eram pessoas comuns, que tinham medo e que se reuniam para conversar e trocar impressões sobre o que o meu avô chamava de “incapacidade da elite comportar-se democraticamente”.
Como nasci em 1964, toda a minha infância e adolescência foi vivida sob a lógica da ditadura e sua estética cafona, tão cafona quanto a da extrema-direita de hoje.
Quando cheguei à universidade em 1982, a ditadura estava nos seus momentos derradeiros, afinal, fracassou na economia; não fez reformas de base necessárias (chamadas hoje de reformas estruturantes); modernizou o sistema financeiro, é verdade, não por seus méritos, mas para atender os interesses do mercado financeiro que a apoiava; estávamos pendurados no FMI e buscava “sair de cena” de forma honrosa, o temor deles era sair do poder para as prisões.
E, por falar em estética, os anos 1980 trouxeram uma estética cultural nova. O mundo estava cansado de ditaduras e a América Latina precisava respirar democracia; nesse contexto o rock nacional dos anos 1980 representou essa nova estética, tanto que é considerado uma das mais ricas e importantes da nossa cultura, pois, dialogava diretamente com um contexto histórico efervescente.
A mais genial banda do rock brasileiro, a Legião Urbana, abordou os militares e a ditadura sempre de forma muito negativa. A letra da música “Que país é esse” é de 1978 e o seu refrão é inspirado na indagação do então presidente da ARENA, Francelino Pereira (que me lembra o Mrs. Burns dos Simpsons), que disse em 1976: “Que país é esse em que o povo não acredita no calendário eleitoral estabelecido pelo próprio presidente? ” (Geisel prometeu que ocorreriam eleições diretas para governadores em 1978, mas as eleições para governadores ocorreram apenas em 1982, o povo estava certo).
Enquanto digeríamos os senadores biônicos criados por Geisel em 1977, defendíamos a convocação de uma constituinte exclusiva; anistia aos perseguidos políticos; eleições diretas para governadores, prefeitos de todas as cidades e para a presidência da república; participávamos de reuniões nos diretórios acadêmicos e dos congressos da UEE e UNE.
Eu, “pobre, pobre, pobre de marré deci”, me obrigava a fazer tudo isso trabalhando durante do dia, estudando a noite, num tempo em que o meu dinheiro para o transporte coletivo “durava” uns dez ou quinze dias no máximo e a minha “conta corrente” nas livrarias Julex e na Papirus parecia não ter fim.
Na faculdade de Direito da PUCC ser de esquerda era tolerado, pois, o pessoal do PCdoB já havia conquistado o respeito necessário da direção, dos professores e dos alunos, mas ser petista, como era o meu caso e o do meu colega Eduardo Surian, era quase um sacrilégio, passível de excomunhão, sem direito a recurso.
Ou seja, éramos a minoria dentro da minoria; éramos vistos como “coisas exóticas”, mesmo assim não trememos.
Fato é que em 1985, através de um acordo bem costurado pelos próceres da ditadura, tem fim o regime militar e começa a chamada “transição democrática”, tendo à frente um presidente eleito indiretamente, frustrando milhões de pessoas que foram às ruas em 1984; em 1989 eleições diretas levaram um farsante à presidência, tendo a esquerda (PT e PSB) ficado em segundo lugar, assim como em 1994, 1998 e 2018, ou seja, não somos mais uma minoria exótica e irrelevante, pois, as militâncias de esquerda e do centro democrático venceram as eleições em 2002, 2006, 2010, 2014 e 2022.
Em 1991 deixei o PT e caminhei com PSB, PT novamente, PPS, PCdoB, até voltar ao PSB, que reputo o partido capaz de abrigar companheiros de alma democrática e inquieta.
Nelsinho, na minha vida militante sempre andei sozinho e nunca tremi, sendo assim nobre Edil, estar praticamente sozinho e defender uma posição à esquerda, pois, ela me parece a mais justa, não é novidade, nem incômodo para mim.
Por isso vereador, o assanhamento com a vitória de Trump (a qual evidencia o fortalecimento da extrema-direita no mundo todo, inclusive no Brasil) não me constrange, nem me assusta, afinal, se estar sozinho, ou em minoria, não assustou um menino dezessete ou dezoito anos, sem dinheiro para o ônibus, não será aos sessenta anos que que vou tremer.
O meu “recado” ao pessoal que não teve um avô como o meu, que não sabe o que são os “autênticos do MDB”, que teima em negar fatos históricos e que acha “bacana” ser de direita, uma dica: esse pessoal que vocês apoiam são meros fantoches que, se apresentando como antissistema, são, na realidade, próceres ou serviçais do próprio sistema.
Essas são as reflexões.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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