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    Ricardo Nêggo Tom

    Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

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    No carnaval de Yeshua, o santíssimo trisal de Pomerode quebra o coco e arrebenta a Sapucaí

    "Alguém avisa a Alcione que o samba ainda não morreu, mas a branquitude quer queimá-lo vivo na fogueira da santa apropriação cultural", escreve Nêggo Tom

    Desfile da escola de samba Salgueiro, do Grupo Especial do carnaval carioca, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

    Uma influenciadora digital chamada Débora Peixoto se recusou a desfilar pelo Salgueiro porque os seus valores cristãos não permitem que ela cante um samba-enredo que fale da religiosidade africana. Segundo ela, a letra do samba lhe causou crises de ansiedade, disparou gatilhos horríveis e a fez recordar traumas de infância. Essa parte dos gatilhos eu até entendo. Principalmente depois que o padre da paróquia onde eu era músico me pediu para não cantar mais a tradicional "Glória, Glória, Aleluia!" na missa, porque essa música era utilizada pela Ku Klux Klan quando eles queimavam negros vivos. Aliás, a KKK foi fundada por protestantes evangélicos. Você sabia? Não? Procure saber.

    O curioso é que a formação evangélica da influenciadora não a impede de viver matrimonialmente com duas pessoas (um homem e uma mulher) e de vender conteúdo sexual em plataformas digitais. A propósito, ela protagoniza o corte de um podcast chamado “Pagode da Ofensa”, disponível no YouTube, onde a chamada para a sua participação diz: “Levo minhas amigas para o meu marido comer”. Não que isso seja crime ou ofensa à honra de alguém, pelo menos na minha visão. Afinal, cada um come o que quiser e divide com quem achar que deve. Porém, se levarmos em conta que a formação evangélica defende a família tradicional e os “bons costumes", é meio paradoxal esse bilhete, não? A não ser que o Jesus que Débora conheceu abençoe o trisal e a pornografia. Ô, glory hole!

    Em outro episódio do mesmo podcast, cuja chamada é: “O cara foi instalar internet em casa e me comeu”, a influenciadora diz: “Ele me viu, eu fiquei com tesão e dei pra ele”, demonstrando que sua formação cristã também passa pelos ensinamentos de São Francisco de Assis, que disse que é dando que se recebe. Talvez seja esta a saída para resolver o problema do péssimo serviço prestado pelas operadoras de internet no Brasil: dar alguma coisa para receber um bom sinal. Espero não precisar chegar a esse ponto para resolver a constante instabilidade no serviço que tenho contratado com a Claro Net. Tá repreendido, em nome de Claudia Leitte!

    Alguns dirão que estou dando palco para a santa padroeira do swing destilar seu preconceito e ganhar visibilidade. Pode ser. Mas considero importante sempre nos contrapormos ao domínio da narrativa que a branquitude historicamente tenta impor, sobretudo do ponto de vista cultural. E religião, antes de tudo, é cultura até se converter na fé de cada um. Com o advento das redes sociais, essa narrativa está cada vez mais disputada, até chegarmos ao ponto de reverter padrões impostos como verdades absolutas. O racismo religioso é um instrumento crucial no processo de epistemicídio sistêmico que, por muito tempo, tornou a produção de conhecimentos e saberes da negritude invisível aos olhos da história da humanidade.

    O carnaval, que é a festa mais popular do país, através dos enredos das escolas de samba, promove esse resgate cultural e valoriza a ancestralidade africana e a herança cultural que ela nos deixou. Muitas das histórias contadas nesses enredos jamais serão aprendidas em sala de aula, seja em qualquer nível de ensino, pois a nossa sociedade ainda é “educada” a partir de um padrão branco de produção de conhecimento, onde o Kemet é primitivo e a Grécia é vanguarda. Não pode ser admissível que pessoas brancas convidadas a participar desta festa sabotem esse resgate e demonizem a cultura preta sob a defesa de seus “princípios” religiosos. Isso é racismo. Já não basta a capoeira ter um segmento gospel, a umbanda ter uma vertente cristianizada e o acarajé virar “bolinho de Jesus” para agradar ao projeto de poder neopentecostal?

    Como já disse o “velho guerreiro” Chacrinha: a branquitude nada cria, tudo ela copia. E se apropria, não por falta de noção ou criticidade, mas por saber que detém o privilégio institucional de fazê-lo. O pacto da branquitude explica. Bem feito para este mundo das escolas de samba, cada vez mais distante das mulheres pretas da comunidade e mais próximo da nociva influência estética e financeira de uma branquitude preconceituosa e neocolonizadora. Só faltou a musa da G.R.E.S. Branquitude de Pomerode exigir que a letra do samba fosse alterada para que ela aceitasse desfilar na Sapucaí com a cor da pele que o governador de Santa Catarina mais gosta. Alguém avisa a Alcione que o samba ainda não morreu, mas a branquitude quer queimá-lo vivo na fogueira da santa apropriação cultural.

    Alô, bateria! Se liga, que essa oferenda é de grego.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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