TV 247 logo
    Milton Alves avatar

    Milton Alves

    Jornalista e sociólogo

    195 artigos

    HOME > blog

    O ‘Almirante Negro’ ainda assombra a Marinha do Brasil

    "João Cândido já foi consagrado como herói popular, da autêntica nacionalidade dos de baixo, agora falta o reconhecimento do Estado brasileiro"

    Marcos Sampaio Olsen | João Cândido Felisberto (Foto: Pedro França/Agência Senado | Arquivo do Estado de SP)

    ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

    Filho de ex-escravos, João Cândido Felisberto nasceu em 24 de junho de 1880, na fazenda Coxilha Bonita, que ficava na cidade de Encruzilhada do Sul (RS), e morreu no município de São João de Meriti (RJ), em 06 de dezembro de 1969.

    João Cândido, aos 13 anos, em 1893, participou da Revolução Federalista e em agosto do ano seguinte estava alistado no Arsenal de Guerra do Exército Nacional, iniciando precocemente seu envolvimento com as atividades militares.

    Em 1895, ingressa na Escola de Aprendizes Marinheiros em Porto Alegre (RS) e no mesmo ano passa a compor a 16ª Companhia da Marinha do Brasil, já no Rio de Janeiro. Militar, com qualidades de liderança, foi elogiado e promovido como marinheiro de 1º classe, logo depois foi rebaixado por participar de brigas, comuns entre a marujada.

    A Marinha, nesse período, era a força militar mais oligárquica e reacionária, filhos de latifundiários do interior do país e de famílias ricas do Rio de Janeiro, então capital federal, integravam o alto oficialato e o comando naval, com práticas e regimentos funcionais ainda herdados da Armada Imperial. Em contraste, a base da força era integrada por uma maioria negra e cabocla, muitos ex-escravos, e pessoas oriundas das camadas mais pobres da população brasileira.

    Foi no ambiente dos porões e dos conveses das embarcações militares, transformadas em novos navios negreiros, que João Cândido forjou a sua personalidade e a conduta de liderança diante das adversidades.

    A vida nas embarcações da Marinha brasileira era dura, com oficiais autoritários e sádicos. A chibata, usada nas fazendas para punir os escravos, era o instrumento utilizado para punir os marujos, o regimento disciplinar era severo e a menor infração poderia custar a vida do embarcado. Humilhações diversas, racismo institucionalizado, a péssima alimentação e o trabalho penoso tornavam a vida do marinheiro infernal nos quartéis e navios. Além de soldos insignificantes e proibições draconianas para os marinheiros quando não embarcados: proibidos de casar, estudar e de exercer atividades associativas e políticas.

    A revolta da Chibata

    A resposta dos marinheiros, liderados por João Cândido, contra os maus tratos, castigos físicos medievais e os abusos dos oficiais, ocorreu na última semana do mês de novembro de 1910, por cinco dias, de 22 a 27, quando explodiu a insurgência no interior dos navios.

    Os marujos tomaram quatro navios militares, os mais modernos e bem equipados da época – o Minas Geraes [recém adquirido na Inglaterra], o São Paulo, Bahia e o Deodoro – ancorados na Baía da Guanabara, manobrando as embarcações com perícia ao longo da costa e apontando os canhões em direção ao centro da capital do país — durante a ocupação dos navios realizaram alguns disparos de advertência.

    Houve pânico e desespero entre as classes dominantes e no governo do presidente Hermes da Fonseca, que recebeu uma mensagem telegrafada por João Cândido exigindo o fim da chibata e dos códigos disciplinares autocráticos e degradantes.

    Os marinheiros revoltosos exibiam trapos com as inscrições: “Viva a liberdade e abaixo a chibata”. Houve casos de resistência de oficiais durante a tomada do comando dos navios e alguns foram mortos pela ira dos insurgentes, o que lembra um episódio histórico de motim naval ocorrido cinco anos antes na Rússia czarista, que ficou conhecido como a “Revolta do Encouraçado Potemkin”, embarcação militar que integrava a frota do Mar Negro, estratégica no desenrolar da Guerra Russo-Japonesa de 1905. As cenas da revolta dos marinheiros russos foi eternizada na obra do cineasta Sergei Eisenstein.

    O governo de Hermes da Fonseca aceitou parcialmente as reivindicações e a prática odiosa das chibatadas foi proscrita do rol de punições, porém a anistia aos 3000 mil marinheiros amotinados durou pouco e o alto comando da Marinha, que se considerava humilhado pelos revoltosos, preparou um ato inominável de revanchismo e covardia.

    A Marinha expulsou os participantes do motim, desonrou a conduta militar dos marujos, não pagou os seus soldos, conforme o acordo acertado, e aprisionou João Cândido e outras 20 lideranças do movimento na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara. A maioria morreu, João Cândido sobreviveu, após anos de prisão, caiu num profundo ostracismo e ganhava o pão de cada dia vendendo peixe fresco nas imediações da Praça XV, no centro do Rio de Janeiro.

    O “Almirante Negro” reaparece em março de 1964

    A figura envelhecida e a voz de comando mais fraca, mas ainda ostentando certo carisma e brilho nos olhos quando falava da Revolta de 1910, empolgou os marinheiros liderados pela Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), uma espécie de organização sindical e assistencial dos praças e marujos, em uma nova revolta na Marinha.

    Em março de 1964, o país governado pelo presidente João Goulart enfrentava forte oposição, de tipo golpista, da direita e do alto comando das Forças Armadas, principalmente do Exército.

    Nesse contexto, de radicalização política, explode a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, entre os dias 25 e 27 de março de 1964, como um fio de continuidade histórica com a Revolta da Chibata de 1910, que reivindicava mudanças na Marinha: direito de associação, melhores salários, direito ao voto e ao casamento, melhora da alimentação nos navios e quartéis e o fim das discriminações e arbitrariedades dos oficiais.

    A revolta dos marinheiros de 1964 levantava praticamente as mesmas reivindicações de 1910, sem as chibatas, abolidas pelo movimento liderado por João Cândido. Por isso, a sua presença, como convidado de honra, na festa de aniversário da Associação dos Marinheiros, no dia 25 de março, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.

    O evento dos marinheiros acabou gerando uma crise política, que enfraqueceu o governo de Jango Goulart, e forneceu uma narrativa para os militares golpistas sobre a quebra da hierarquia militar e a escalada da esquerdização entre os praças, cabos e sargentos nas Forças Armadas — cinco semanas depois, em 1º de abril, o governo democrático era derrubado por um golpe militar, que promoveu um amplo expurgo no conjunto das forças militares.

    Em 2024, um novo açoite na memória de João Cândido

    Um projeto de Lei – PL4046/2021- de autoria do deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), que tramita na Comissão de Cultura, da Câmara dos Deputados, foi o motivo de uma nova polêmica em torno o legado de João Cândido e da repercussão histórica da Revolta da Chibata.

    O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, em carta oficial enviada na segunda-feira passada (22) ao presidente da comissão, deputado Aliel Machado (PV-PR), criticou raivosamente a proposta de inclusão do “Almirante Negro” no livro de aço dos Heróis e Heroínas da Pátria, uma homenagem prestada aos brasileiros que deram contribuições importantes ao país.

    A honraria, criada em 1992, já homenageou figuras históricas e relevantes para a construção da identidade nacional como Anita Garibaldi, Chico Mendes, Machado de Assis, Santos Dumont e Tiradentes. A inclusão do nome no Livro de Aço de Heróis e Heroínas da Pátria, depende de aprovação do Congresso Nacional. O livro fica guardado no monumento do Panteão da Pátria, em Brasília.

    Na carta, o comandante da Marinha revela uma postura rancorosa contra João Cândido e os marinheiros que participaram da Revolta da Chibata: “A Força Naval não vislumbra aderência da atuação de João Cândido Felisberto na Revolta dos Marinheiros com os valores de heroísmo e patriotismo; e sim, flagrante que qualifica reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro”.

    O comandante Olsen acrescenta ainda que a rebelião de 1910 foi um ato de “subversão” e de “ruptura de preceitos constitucionais organizadores das Forças Armadas”. Ele menciona também que o episódio desrespeitou a disciplina militar e causou mortes.

    Ou seja, 114 anos após a insurreição dos marinheiros, a Marinha do Brasil prossegue com os ataques e o vilipêndio ao consagrado herói do povo brasileiro, cantado em prosa e verso nas ruas, praças e no Carnaval, a maior festa popular do Brasil.

    João Cândido já foi consagrado como herói popular, da autêntica nacionalidade dos de baixo, agora falta o reconhecimento do Estado brasileiro, como reparação histórica e ato de Justiça.

    Além disso, a Marinha deve uma retratação ao “Almirante Negro”, concedendo a patente máxima da força naval ao ilustre marinheiro, que tem uma estátua em sua homenagem na Praça XV, na área do antigo cais do porto do Rio, que na canção composta por Aldir Blanc e João Bosco foi retratado com perfeição e lirismo o seu feito histórico: “Glória à farofa/À cachaça, às baleias/Glória a todas as lutas inglórias/Que através da nossa história não esquecemos jamais/Salve o navegante negro/Que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. Desde então, a rebeldia de João Cândido ainda assombra a oligárquica corte do Almirantado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

    iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

    Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

    Relacionados