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Marcelo Zero

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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O Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova “Guerra Fria”?

"As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar", afirma o especialista em relações internacionais

Lula e Celso Amorim (Foto: Fabio Pozzebom / Agência Brasil)

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O caso da Venezuela vem provocando críticas internas à política externa do Brasil. 

No plano mundial, está tudo indo bem. O Brasil vem recuperando celeremente o protagonismo regional e internacional perdido com Bolsonaro. Nosso papel de mediador é muito elogiado por diversos países e até mesmo pela oposição venezuelana.

No plano interno, não obstante, às velhas críticas da direita se somam, agora, críticas de alguns setores da esquerda. Esses setores consideram que o Brasil deveria ser mais assertivo na luta contra o “imperialismo”, o que implicaria escolher alinhar-se ao “polo oposto”, na luta pelo poder mundial.

Acredito que isso seria um erro estratégico.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o que se chama de nova “Guerra Fria” é uma invenção e uma imposição do EUA e aliados.

Esses países querem a volta da antiga ordem mundial, que predominava até o início deste século, caracterizada pela hegemonia praticamente absoluta dos EUA e por um unilateralismo agressivo, que corroía, e ainda corrói, as instituições multilaterais.

Nesse sentido, os EUA e aliados pressionam o denominado Sul Global para que “escolha” entre o lado das “democracias” e o lado das “autocracias”.  

Pude testemunhar pessoalmente essa pressão na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do Brasil, quando da visita de uma delegação da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu ao nosso país.

Na conversa, um parlamentar estoniano, do grupo de direita “Identidade e Democracia”, afirmou, a respeito do conflito na Ucrânia e da geopolítica em geral, que o Brasil “teria de decidir” entre ficar do lado das “democracias”, isto é, o lado da Europa, dos EUA e aliados, ou do lado das “ditaduras”, a saber, Rússia, China e outros países. Não haveria meio-termo e equidistância possíveis.

Outro parlamentar europeu afirmou que a China tende a “escravizar” outros países, por meio de empréstimos e dívidas. Um parlamentar espanhol classificou o conflito da Ucrânia como uma “guerra imperialista” promovida unilateralmente pela Rússia, que, segundo ele, quer impor seu domínio autocrático em toda a Europa.

Essa é a mentalidade binária, simplista e obsoleta que predomina nos EUA e seus aliados. Não apenas isso. É uma mentalidade profundamente antidemocrática, que considera que democracia, a democracia segundo o modelo ocidental, é algo a ser imposto via sanções, golpes e intervenções militares.

Por outro lado, não há nenhuma pressão por parte de China, Rússia, Irã ou de nenhuma outra “autocracia” para que o Brasil se alinhe automaticamente aos seus interesses.

Tome-se o exemplo das estratégicas relações bilaterais Brasil-China, que completam, neste ano, meio século de grandes realizações.

Neste longo período, o único momento de alguma tensão se deu quando Bolsonaro et caterva passaram a agredir a China sistematicamente. Em nenhum momento, Beijing pressionou o Brasil a se tornar “socialista” ou a se afastar dos EUA e da Europa para cooperar ativamente com o nosso país. O mesmo se dá com a Rússia, Irã, Turquia etc.

A construção do BRICS, fundamental para a afirmação de um mundo multipolar, também obedece à mesma lógica não-excludente. Com efeito, esse bloco geopolítico incorpora países que têm boas relações com EUA e aliados, como Brasil, África do Sul, Índia, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes. Observe-se que a Argentina de Milei só não entrou porque não quis. Não foi o Brics que vetou a Argentina. Foi a Argentina de Milei que vetou o BRICS, por alinhamento ideológico aos falsos dilemas da nova “Guerra Fria”.

A questão essencial, contudo, tange ao fato de que quaisquer alinhamentos desse tipo limitariam, a priori, o protagonismo do Brasil. Uma política externa realista, racional, profícua e realmente soberana tem de ser sustentada essencialmente com base nos interesses nacionais, não com base em interesses de terceiros países, por mais “amigáveis” que possam ser.

É claro que, no atual cenário mundial, muito mais diverso do que aquele que prevalecia até o início deste século, as oportunidades maiores para a expansão do protagonismo do Brasil estão no Sul Global e, em especial, na sua própria região.

Isso não significa, porém, investir em uma política externa confrontacionista com os EUA, a União Europeia etc. Com esses países, as oportunidades de cooperação são mais estreitas e sujeitas a maiores assimetrias e, muitas vezes, a imposições políticas inaceitáveis. Mas estão longe de serem inexistentes.

Nos dois primeiros governos Lula e nos governos Dilma, a política externa ativa e altiva aumentou muito o protagonismo brasileiro, mediante a estratégia da “autonomia pela diversificação”. Naquela época, o Brasil sem abandonar seus parceiros mais tradicionais (EUA e Europa), expandiu-se no mundo mediante parcerias estratégicas com países como China e Rússia, mediante a aproximação à África e ao Oriente Médio, e por meio de um grande investimento na integração regional soberana.

É verdade que o cenário mundial de hoje é bem mais complicado e conflitivo que o quadro daquela época. O superciclo das commodities encerrou-se, tivemos uma crise econômica profunda, a emergência de uma extrema-direita internacional bastante ativa, a desaparição paulatina, mas constante, da complementariedade entre as economias chinesa e estadunidense, a reação da Rússia à continua expansão da Otan em direção às suas fronteiras, a centralidade da política externa dos EUA na “disputa pelo poder mundial” com China, Rússia e as “autocracias” etc. etc.

Mas é justamente esse quadro mais conflitivo que recomenda, á luz dos interesses do Brasil, a insistência e o aprofundamento de uma política externa universalista, pacifista e não-alinhada.

Não se trata de neutralismo ingênuo, como avaliam alguns.

Na realidade, é a melhor maneira de propugnar por uma ordem mundial multipolar e simétrica, mais permeável aos interesses de países como o Brasil. As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar. 

Há de se considerar, ademais, nessa avaliação, uma questão de estratégia geoeconômica absolutamente fundamental para o futuro do Brasil.

Nosso país precisa muito se “reindustrializar”, com base em novas tecnologias limpas e “descarbonizadas”. O Brasil tem imenso potencial nesse campo, mas precisa de parcerias tecnológicas e de investimentos para concretizar esse potencial. Dessa maneira, a nova dimensão criada pela necessidade da “neoindustrialização” tem de ter absoluta centralidade na política externa do Brasil, em sua dimensão econômica, comercial e tecnológica.

Temos se fazer um grande esforço, em política externa, para dar sustentáculo a um esforço interno vital. Por conseguinte, não podemos rejeitar, a priori, por motivos geopolíticos, nenhuma oportunidade de cooperação.  Esse seria um erro crasso, um bolsonarismo com sinais invertidos. 

E teremos de revisar as prioridades nas relações com alguns países que têm maior capacidade tecnológica e de investimentos que o nosso, independentemente de que “lado” da nova “Guerra Fria” estejam. Afinal, se permanecermos como exportadores de commodities e de produtos industriais de baixo valor agregado nosso protagonismo internacional será sempre limitado.

Já escrevi, alhures, que entre um e outro lado da “Guerra Fria”, o Brasil, rejeitando as imposições e as pressões de EUA e aliados, escolhe o Brasil. Não se trata de frase vazia e retórica ingênua.

É simplesmente a melhor estratégia para promover nossos interesses próprios. Sempre será.

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