O BRICS faz história – será possível manter o ímpeto?
As guinadas do destino sempre permitem que certas cidades deixem sua marca na História de maneiras inefáveis. Yalta. Bretton Woods. E agora Kazan
Kazan não mudou o mundo – ainda. Mas a cúpula deve ser vista como a estação de partida de uma viagem em trem de alta-velocidade rumo à nova ordem multinodal que vem surgindo. A metáfora foi também espacial: a “estação” dos pavilhões do centro de exposições de Kazan onde a cúpula foi realizada conectava-se simultaneamente ao aeroporto e ao aerotrem expresso que leva à cidade.
Os efeitos deixados na esteira do BRICS 2024, em Kazan, serão sentidos por semanas, meses e anos. Comecemos com as grandes mudanças.
O Manifesto de Kazan
1. A Declaração de Kazan. Trata-se de nada menos que um manifesto diplomático detalhado. Mas como os BRICS não são um agente revolucionário – já que seus membros não têm uma ideologia em comum – seria possível afirmar que a segunda melhor estratégia seria propor reformas reais, desde a Agenda de 2030 da ONU até o FMI, o Banco Mundial, a OIT, a OMS e o G-20 (cuja cúpula acontecerá no próximo mês, no Rio).
O cerne da Declaração de Kazan – debatido durante meses – é avançar na prática rumo a profundas mudanças institucionais e rejeitar a Hegemonia. A Declaração será apresentada ao Conselho de Segurança da ONU. O Hegêmona, sem dúvida alguma, irá rejeitá-la.
Este parágrafo resume a iniciativa das reformas: “Condenamos as tentativas de sujeitar o desenvolvimento a práticas discriminatórias com motivação política, incluindo, embora não se limitando a medidas coercitivas unilaterais incompatíveis com os cinco princípios da Carta das Nações Unidas, e condicionalidades explícita ou implicitamente impostas à ajuda ao desenvolvimento com o fim de comprometer a multiplicidade dos fornecedores de ajuda internacional ao desenvolvimento”.
2. A sessão de Expansão dos BRICS, que foi um Bandung 1955 turbinado a esteróides: um microcosmo de como o novo mundo descolonizado e não-unilateral vem nascendo.
O Presidente Putin abriu a sessão e passou a palavra aos líderes e chefes de delegação de outras 35 nações, a maioria deles de primeiro escalão, inclusive o representante da Palestina, como também ao Secretário-Geral das Nações Unidas. Diversas dessas falas foram nada menos que épicas. A sessão teve duração de três horas e vinte e cinco minutos. Sua transcrição irá circular por toda a Maioria Global por anos a fio.
A sessão foi concluída com o anúncio dos 13 novos parceiros dos BRICS: Argélia, Belarus, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. Um tour de force estratégico incluindo quatro potências do Sudeste Asiático, os dois principais “istãos” da Ásia Central, três africanas, duas latino-americanas e a Turquia, membro da OTAN.
3. A própria presidência russa dos BRICS. Pode-se dizer que nenhum outro país teria sido capaz de montar uma cúpula tão complexa e impecavelmente bem-organizada, realizada após mais de 200 reuniões relacionadas aos BRICS por toda a Rússia e durante todo o ano, conduzidas por sherpas anônimos, integrantes de grupos de trabalho e do Conselho Empresarial dos BRICS. A segurança foi maciça - por razões óbvias, considerando os riscos de uma falsa bandeira ou ataque terrorista.
4. Os corredores de conectividade. Esse é o principal tema geoeconômico da integração eurasiana, e também da integração afro-eurasiana. Putin, mais de uma vez, citou explicitamente os novos motores do crescimento de um futuro próximo: o Sudeste Asiático e a África. Ambos são parceiros importantes de diversos projetos da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) chinesa. Além disso, Putin citou os dois principais corredores de conectividade do futuro: a Rota Marítima do Norte – que os chineses descrevem como a Rota da Seda do Ártico – e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS) no qual os três principais motores são os membros dos BRICS Rússia, Irã e Índia.
Isso se traduz, portanto, com a China dos BRICS cruzando a Eurásia de leste a oeste, enquanto Rússia/Irã/Índia, também dos BRICS, a cruzam de norte a sul, com ramificações em todas as latitudes. E com todos os acréscimos de energia, com o Irã se posicionando como um nó energético de importância crucial, abrindo a finalmente factível possibilidade de construção do gasoduto Irã-Paquistão-Índia (IPI), uma das sagas inacabadas daquilo que descrevi em inícios dos anos 2000 como o Gasodutistão.
A Volta do Triângulo Primakov
Toda a Maioria Global tinha imensas expectativas de que Kazan viesse a representar um espetacular divisor de águas quanto a sistemas de pagamento alternativos. Especialistas em tecnologia financeira russos e chineses foram mais realistas, comentando que “não esperavam absolutamente nada exceto uma outra rodada de iniciativas sobre trocas de grãos, trocas de metais preciosos e sobre uma plataforma de investimento. O BRICS Clear vem sendo desenvolvido, mas o restante não irá funcionar sem uma infraestrutura soberana adequada”.
O que nos traz de volta ao projeto UNIT – uma forma de “dinheiro apolítico” ancorado em ouro e nas moedas dos BRICS+. O projeto foi exaustivamente discutido pelos grupos de trabalho, tendo chegado ao Ministério das Finanças russo. O passo seguinte é um teste de desempenho conduzido por um grande conglomerado empresarial, que pode vir a acontecer em um futuro próximo e, caso tenha êxito, sirva de estímulo para que outras grandes empresas dos países BRICS sigam pelo mesmo caminho.
Quanto à plataforma de investimentos digitais dos BRICS, ela já está pronta para entrar em funcionamento. Juntamente com o NDB – o Banco dos BRICS, presidido pela ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff, cujo mandato o Presidente Putin quer ver renovado – essa plataforma irá facilitar o acesso do Sul Global a financiamentos sem as tão temidas condicionalidades de “ajustes estruturais” impostas pelo FMI/Banco Mundial. As trocas de grãos dos BRICS, estabelecendo regras claras e transparentes, serão essenciais para assegurar a segurança alimentar do Sul Global.
Os BRICS deixaram claro que o complexo ímpeto rumo uma nova infraestrutura de pagamentos e liquidação é inevitável, sendo, entretanto, um trabalho em andamento, em especial por que o G-7 – que, para todos os fins práticos vem sequestrando a agenda do G20 a ser realizado no próximo mês, no Rio – quer financiar ao menos 20 bilhões de um pacote de 50 bilhões com os rendimentos dos ativos russos roubados.
O que nos leva ao problema mais flagrante dos BRICS. Chegar a um consenso em questões espinhosas é extremamente difícil – podendo levar, no longo prazo, a que os BRICS adotem um mecanismo de maioria absoluta para chegar a alguma resolução.
O caso brasileiro – que vetou a Venezuela como parceira dos BRICS – não foi de modo algum bem visto entre os países do Sul Global. O atual governo Lula talvez esteja sob pressões tremendas partindo do establishment do Partido Democrata do Hegêmona, mas isso, em si, não explica a decisão.
Há um maciço lobby anti-BRICS no do primeiro escalão do governo brasileiro, “facilitado”, como de costume, por ONGs americanas, e também da Comissão Europeia, fortemente infiltradas nas proverbiais elites compradoras. Brasília, este ano, privilegiou o G-20 em detrimento dos BRICS. O que faz antever problemas para o ano que vem, quando o Brasil assumirá a presidência dos BRICS.
As perspectivas não são exatamente brilhantes. A cúpula dos BRICS do próximo ano está marcada para julho – e a decisão parece ser final. Isso não faz nenhum sentido – fazer um apanhado geral de uma agenda de trabalhos em meados do ano. A desculpa oficial é que o Brasil precisa também organizar a conferência Cop-30, marcada para novembro. Uma sugestão será apresentada pelo importantíssimo economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr., no sentido de realizar uma sessão dos BRICS paralela no decorrer da cúpula do G-20 em 2025, a ter lugar na África do Sul, onde seriam apresentadas as recomendações finais.
O Presidente Putin vem sendo extremamente maleável – chegando mesmo a propor que Dilma Rousseff permaneça no comando do Banco dos BRICS. No entanto, tecnicamente, a presidência russa do Banco começaria no próximo ano. Um candidato mais adequado para a presidência do NDB seria Aleksei Mozhin, até recentemente o representante russo no FMI.
Há uma grande lição a ser extraída de tudo o que foi dito acima. Kazan provou que a força motriz dos BRICS é, na verdade, o famoso Triângulo de Primakov – ou RIC (Rússia, Índia, China). Hoje seria possível acrescentar o Irã, o que transformaria a sigla em RIIC. Tudo o que tenha alguma substância nos processos interconectados da integração dos BRICS e da integração afro-eurasiana depende do RIIC.
A Arábia Saudita permanece como uma possibilidade em aberto. Nem sequer Putin respondeu se Riad está dentro, fora ou em cima do muro. Fontes diplomáticas insinuam que MbS está esperando pelo resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Se muito da riqueza saudita está investida na esfera anglo-americana – podendo ser surrupiada de uma hora para outra – as relações de alto-nível com a parceria estratégica Rússia-China são excelentes.
O RIC marcou um gol de placa logo antes da cúpula de Kazan, quando Pequim e Nova Delhi anunciaram a normalização de sua questão de Ladakh. Esse resultado foi alcançado com a mediação da Rússia. Então, há a Turquia. Erdogan foi peremptório em sua declaração de entusiasmo pelos BRICS nas poucas horas que passou em Kazan. Mais tarde, em Istambul, analistas confirmaram que ele vê com a maior seriedade a condição da Turquia como parceira e sua possível admissão como membro pleno.
Na linguagem dos símbolos, os minaretes da mesquita de Kul Sharif, no Kremlin de Kazan, foram a real marca registrada da cúpula: a ilustração gráfica da multipolaridade em funcionamento. As terras do Islã captaram a mensagem – com sérias e auspiciosas repercussões futuras. No momento em que o trem multinodal de alta velocidade deixa a estação, toda a atenção dos condutores deve estar focada nos RIICs. Que todo o Sul Global tenha uma boa viagem.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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