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Milton Blay

Formado em Direito e Jornalismo, já passou por veículos como Jovem Pan, Jornal da Tarde, revista Visão, Folha de S.Paulo, rádios Capital, Excelsior (futura CBN), Eldorado, Bandeirantes e TV Democracia, além da Radio France Internationale

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O capitão é racista, o general é racista e o Brasil é racista

Do seu ponto de vista, o presidente tem razão, já que para ele não apenas inexiste racismo no Brasil como tudo não passa de uma montagem com o objetivo de desestabilizá-lo. Obra de comunista, claro

(Foto: REUTERS/Adriano Machado | Mídia NINJA)

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Racismo? Não existe, é pura invenção. 

Na visão do capitão-presidente e de seu vice, que obviamente só poderia ser um general, a existência de racismo no Brasil é uma falácia criada por traidores da pátria. Jair Bolsonaro deixou isso muito claro na reunião dos líderes do G20, no final de novembro, ao comentar os protestos contra a discriminação racial  após o assassinato do negro João Alberto Freitas, por seguranças de um supermercado Carrefour no Rio Grande do Sul. Espancado até a morte, Beto Freitas ficou como triste exemplo, na véspera do Dia da Consciência Negra, de como os negros continuam a ser os maiores alvos da violência no Brasil.

Como de hábito, o capitão não achou necessário prestar solidariedade à família da vítima, ignorando assim, pela enésima vez, o papel de um chefe de Estado. 

Desavergonhadamente, jogou a responsabilidade dos protestos sobre aqueles que querem "colocar a divisão entre raças" no Brasil. "Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e provocando conflitos, atentam contra a nação e contra a nossa própria história". 

Do seu ponto de vista, o presidente tem razão, já que para ele não apenas inexiste racismo no Brasil como tudo não passa de uma montagem com o objetivo de desestabilizá-lo. Obra de comunista, claro. Numa publicação no Facebook defendeu que “o Brasil tem uma cultura diversa”, um “povo miscigenado”, “uma única família”, mas “há quem queira destruí-la e colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre classes”.

Para o chefe de Estado brasileiro, “problemas como o da violência são vivenciados por todos, de todas as formas” e quem pretende dividir “o sofrimento do povo brasileiro” com questões de raça, apenas quer jogar uns contra os outros, porque “um povo vulnerável é mais fácil de ser controlado”.

“Como homem e como Presidente, sou daltónico: todos têm a mesma cor. Não existe uma cor de pele melhor do que as outras. Existem homens bons e homens maus”, garantiu.

Jair Bolsonaro pode ser acusado de todos os males do mundo, mas não de ser opaco. Foi, é e sempre será transparente. Ninguém tem a desculpa de dizer que não sabia quem era o personagem ao apertar a tecla 17 da urna eletrônica. Durante uma entrevista no programa Roda Vida, da TV Cultura, o então candidato, num caso exemplar de revisionismo histórico, chegou a negar a responsabilidade do homem branco no passado escravocrata do país; amenizou o papel de Portugal e responsabilizou os próprios negros pelo tráfico negreiro que perdurou do século 16 ao 19, levando de forma forçada cerca de 12 milhões de africanos às Américas, mais de 4,8 milhões dos quais para o Brasil.

"O português nem pisava na África,  disse Bolsonaro. Foram os próprios negros que entregavam os escravos".

Ao ser indagado pelo diretor da ONG Educafro, Frei David, sobre a política de cotas raciais, o candidato se declarou contra, argumentando que as cotas visavam "dividir o Brasil entre brancos e negros". Foi questionado sobre de que forma pretendia reparar a dívida histórica existente diante da escravidão, no que respondeu: "Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida". 

Dias antes da entrevista, Jair Bolsonaro comparou os negros que vivem nos quilombos a gado e disse que eles não servem nem para procriar.

Ao contrário do presidente, o vice Hamilton Mourão chegou a lamentar a morte de  Beto Freitas, mas atribuiu-a apenas ao despreparo dos seguranças e não ao fato da vítima ser negra, até porque, como ele próprio sublinha, não há racismo no Brasil. “Eu digo para você com toda a tranquilidade: não tem racismo aqui”, sublinhou o general em declarações à imprensa. "Não, para mim no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui." 

O vice continuou então dizendo que racismo existe em outros países, como nos Estados Unidos. Acrescentou ter morado naquele país na década de 1960 e, com base nessa experiência, pode concluir que não existe um problema racial no Brasil.

Acontece que Mourão, a exemplo de seu chefe, é racista. 

Após conversar com jornalistas ao desembarcar no aeroporto de Brasília, às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, o general elogiou seu neto, afirmou que ele representava o "branqueamento da raça". "Gente, deixa eu ir lá que meus filhos estão me esperando. Meu neto é um cara bonito, viu ali. "Branqueamento da raça", afirmou no fim da conversa, dando gargalhada.

É salutar abrirmos um parêntese: A tese do "branqueamento" teve origem na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX, quando vigoraram em várias partes do globo as teses eugenistas, que defendiam um padrão genético superior para a “raça” humana. Argumentava-se que o homem branco europeu tinha o melhor padrão de saúde, beleza e maior "competência civilizacional" em comparação às demais “raças”: amarela, referindo-se aos asiáticos, vermelha, relativa aos povos indígenas, e a negra, africana.

Foi então que intelectuais brasileiros incorporaram essas teses e delas derivaram outra, aplicável ao contexto do continente americano: a “tese do branqueamento”, que partia da ideia de que, dada a realidade do processo de miscigenação na história brasileira, os descendentes de negros passariam a ficar progressivamente cada dia mais brancos.

O antropólogo e médico carioca João Baptista de Lacerda foi um dos expoentes da tese do branqueamento, tendo participado, em 1911, do Congresso Universal das Raças, em Londres. Esse congresso reuniu intelectuais do mundo todo para debater o tema do racialismo e da relação das raças com o progresso das civilizações. Baptista levou ao evento o artigo “Sur les métis au Brésil” - Sobre os mestiços no Brasil, em que defendia o fator da miscigenação como algo positivo no caso brasileiro, por conta da sobreposição dos traços da raça branca sobre as outras, a negra e a indígena.

Em um trecho do artigo, ele afirmava: “A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro.”

A partir dessa teoria, felizmente desmentida, temos condições de saber quem é de fato o general Hamilton Mourão.

O Brasil é racista. Talvez, como disse a ex-consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, em debate na Flip de Paraty com a antropóloga Lilia Schwarcz, seja um dos países mais racistas do mundo. Ela conta que nas recepções dadas em sua casa, os convidados sistematicamente a confundiam com a empregada doméstica. 

A realidade se apresenta em números. De acordo com os dados do Atlas da Violência 2020, os assassinatos de negros no Brasil aumentaram 11,5% na última década, enquanto as de não negros caíram 12,9%. Em 2018, 75,7% das pessoas assassinadas no Brasil eram negras.

Na pandemia, a cada dez brancos que morrem vítimas da Covid-19 no Brasil, morrem 14 pretos e pardos, que representam a categoria de brasileiros negros. Os dados são resultados de uma análise da reportagem da CNN com base nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde. No caso das internações pela doença, há um equilíbrio: negros representam 49,1% dos internados, enquanto brancos representam 49%. Mas na análise das mortes, o descompasso aparece, pretos e pardos representam 57% dos mortos pela doença enquanto brancos são 41% dos mortos.

"As pessoas negras são maioria no mercado de trabalho informal, tendo muito mais dificuldade de procurar os serviços de saúde no tempo adequado, já chegando em condições piores. São pessoas que também têm uma localização geográfica que não favorece a busca por hospitais, ficando geralmente em pronto socorros e serviços de saúde periféricos, que vão ter o maior tempo de espera para a transferência para uma vaga de UTI, por exemplo, além desses serviços serem serviços de qualidade inferior", segundo a médica Denize Ornelas.

Outro fator que os especialistas afirmam poder explicar esses números é o perfil de quem está na linha de frente e tem contato direto com os infectados pela doença. "Dentre os profissionais de saúde, com exceção  dos médicos, os auxiliares de enfermagem e técnicos de enfermagem  são majoritariamente pessoas negras e isso também os coloca em maior risco de contaminação, adoecimento e óbito", diz Alexandre da Silva, professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí.

Entre os profissionais de enfermagem brasileiros, 42,3% são brancos e 53% pretos e pardos, de acordo com a Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, de 2013, feita pela Fiocruz em parceria com o Conselho Federal de Enfermagem. 

Em São Paulo, apenas um em cada dez alunos de escolas privadas (via de regra melhores que as públicas) é negro.

E a diferença salarial entre brancos e negros é de 45%, de acordo com a Pnad, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2019. 

Essa diferença não pode ser atribuída apenas à falta de oportunidade de formação para pessoas negras. Segundo cálculo do Instituto Locomotiva, a diferença continua a ser significativa, de 31%, mesmo quando comparados os salários de brancos e negros com ensino superior. Sobra apenas a cor da pele; diz um artigo do jornal Folha de S. Paulo, de 6 de janeiro de 2020. 

“Trata-se de uma desigualdade persistente que só pode ser explicada pelo racismo estrutural. Por um lado, ele se expressa no preconceito racial. Por outro, no maior capital social dos brancos: o famoso ‘quem indica’ um branco é outro branco que está em um cargo alto”, afirma Renato Meirelles, presidente do Locomotiva.

Apesar da realidade fria dos números, apenas 5% dos brasileiros consideram que o racismo é um problema no país. Entre estes não estão os membros do governo civil-militar liderado pelo capitão.

Como escreveu Fernanda Mena, mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais, “os protestos antirracistas em algumas capitais do país indicam que, assim como muitos americanos diante do caso George Floyd, muitos brasileiros não estão mais dispostos a se calar sobre as violências que ceifam vidas negras no país. Se os protestos são o início de uma onda, só o tempo o dirá, mas parece cada vez mais difícil fechar os olhos para o fato de que o racismo finalmente caminha para ser compreendido como um problema de todos.”

Ou quase todos, com exceção do Planalto.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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