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Jorge Folena

Advogado, jurista e doutor em ciência política.

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O direito das mulheres à vida e a luta contra o patriarcado

"É mera retórica tentar equiparar o aborto ao homicídio, deixando de lado a preocupação com a vida e a dignidade das mulheres", diz Jorge Folena

Manifestação de protesto contra o PL 1904/24 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

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Ao longo dos séculos, a maior luta das mulheres no mundo tem sido sempre contra o patriarcado, que impõe todo tipo de violência e opressão contra elas. Nos contos que integram a obra Mulheres, apresentados a partir de lendas dos povos indígenas, Eduardo Galeano narra as tentativas de subjugação do matriarcado e de eliminação do sistema comunal, que vigorava nos tempos em que as mulheres, além da importante atribuição de caçar e pescar para alimentar a todos, tinham plena e total liberdade, pois “saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam”, ratificando a sua autonomia.

No conto “A autoridade”, o autor narra que “Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.” Porém, insatisfeitos com sua posição, decidiram usar sua força para destruir aquele sistema, subjugar as mulheres e tomar para si as atribuições que antes a elas pertenciam.

Essa violenta superação do matriarcado, que tem sido transmitida geração após geração, é assim narrada no conto: “Até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los. Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.”

É uma narrativa trágica, porém reproduzida no cotidiano da vida brasileira, onde os “senhores” da classe dominante e da elite abusam desde sempre das mulheres e meninas. Quem bem retratou esta realidade foi Jorge Amado, em seus diversos romances: Cacau, Terras do sem-fim, Gabriela cravo e canela, Tieta e, principalmente, em Teresa Batista cansada de guerra.

A reintrodução da criminalização do aborto no Brasil, por meio de senhores que se dizem defensores da família, mas que seguem sendo apontados como suspeitos de violências diversas contra as mulheres, se faz sob o viés falso moralista religioso, que não encontra amparo na Constituição brasileira de 1988; além de ser um tema ultrapassado, que somente é retomado no debate político porque propicia a imposição de constrangimento ao governo do Presidente Lula.

O PL 1904/2024 é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (do Partido Liberal, liderado pelo fascista ex-presidente do “deus acima de tudo, família acima de todos”), que se diz representante do neopentecostalismo e foi figura de frente no indevido impeachment contra a primeira e única mulher a presidir a República Federativa do Brasil, mulher que não cometeu nenhum delito de ordem política ou jurídica. 

Ou seja, estamos falando de um deputado que se coloca sistematicamente contra os avanços sociais e desenvolvimentistas que buscam melhorias para o país; representando o seu projeto, sem dúvida, o ápice da violência contra todas as mulheres.

Em seu projeto de lei oportunista, ele tenta justificar em dezenove páginas, com uma retórica supostamente jurídica, os intoleráveis casos de abusos sexuais praticados por homens contra mulheres e meninas no país.  

Com efeito, é mera retórica tentar equiparar o aborto ao homicídio, deixando de lado a preocupação fundamental com a vida e a dignidade das mulheres vitimadas por essa horrenda violência. O foco central do debate tem sido dominado pela questão religiosa, por meio da qual se tenta impor ao Estado e às suas instituições a prevalência da crença de uns sobre todos os demais brasileiros, o que é injustificável e inaceitável em sociedades republicanas e democráticas.

Nesse ponto, é importante registrar que a República Federativa do Brasil é um Estado laico e, por isso, não se pode admitir que uma determinada concepção religiosa tente se impor sobre toda a estrutura estatal.

O tema não é novo no Brasil e já foi debatido em audiências públicas e enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal. A primeira vez foi quando o STF apreciou a constitucionalidade da lei que trata do emprego científico de células-tronco; o tribunal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, manifestou-se pela “inexistência de violação do direito à vida” e decidiu pela “descaracterização do aborto”, uma vez que o debate introduzido por instituições religiosas era de que o aborto representa uma violência ao direito à vida do feto, sendo esquecido o direito da mulher à vida.

O STF, porém, avançou ainda mais por ocasião do julgamento da ADPF 54, quando se pronunciou sobre a interrupção da gravidez de feto com anencefalia. Nessa oportunidade, o tribunal manifestou que “o Brasil é uma República laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões”, que tentam impor sua ideologia de proteção exclusiva do feto, desprezando a vida do ser humano mulher, muitas vezes crianças, inclusive abusadas por pais, avôs, irmãos, religiosos etc.

A interpretação dada pelo STF levou em consideração o direito fundamental assegurado a toda mulher, de liberdade sexual e reprodutiva, preservação da dignidade humana e proteção à saúde pública sanitária como dever do Estado.

O deputado proponente da oportunista proposição legislativa, encampada de forma abusiva pelo presidente da Câmara dos Deputados, que deu caráter de urgência para um tema extremamente sensível, tem consciência de que a sua iniciativa atenta diretamente contra os princípios fundamentais da Constituição, acima reconhecidos pelo STF, de tal forma que uma alteração da lei penal não poderá se sobrepor à Constituição Federal. 

Então, todo esse debate, provocado pela extrema direita, orientada pelos neoliberais, e instrumentalizado pelos oportunistas na liderança da condução dos trabalhos no parlamento, visa tirar o foco dos avanços econômicos promovidos pelo atual governo e criar embaraços diretamente contra a atuação do Presidente Lula, que está tendo o seu programa de governo, aprovado eleitoralmente pelo povo, sabotado por meio de uma radicalização promovida pela classe dominante para tentar acuá-lo.

Pois, caso o projeto seja aprovado nas duas casas legislativas (o que considero difícil), será submetido ao Presidente para sanção ou veto; e, caso Lula venha a vetá-lo, poderá ser acusado de simpatizante do aborto pelos condutores da pauta do moralismo de fachada, que, na verdade, não estão preocupados nem com o princípio fundamental do direito das mulheres à vida nem com o direito à vida em si. Até porque são defensores da pauta do Estado mínimo, que retira direitos e dignidade e só produz fome, miséria, violência, destruição e morte.

Por fim, é de se registrar que o direito das mulheres ao aborto foi conquistado em sociedades nas quais foi reconhecida a igualdade de direito e de fato entre homens e mulheres, como fizeram as revoluções russa (em 1920) e cubana (1959) e o Vietnã (1989), que garantiram às mulheres o direito fundamental à saúde e à escolha de métodos contraceptivos, ginecológicos e sanitários. 

Diante dos retrocessos sugeridos por essas pautas reacionárias, de cunho falso moralista, com preocupação religiosa de fachada e objetivo eleitoreiro, está a se delinear o alvo principal dos seus condutores, que pode ser, inicialmente, tentar impedir que as mulheres usufruam de direitos pré-estabelecidos e, num segundo momento, partir para a retirada da legislação de quaisquer direitos inerentes às mulheres.

Começam pela pauta de costumes e depois, quem sabe, mulheres proibidas de ter acesso à educação, de trabalhar, de gerir patrimônio etc. O inferno é o limite. Por isso, é de suma importância que as mulheres acompanhem atentamente esses movimentos, que saiam às ruas, ocupem os espaços públicos do país e se manifestem contra este nefasto e inconstitucional projeto de lei.

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