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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    O enigma do “acordo de paz” do Afeganistão

    No que se trata do Afeganistão da realpolitik, as forças armadas dos Estados Unidos, com ou sem acordo, querem permanecer nessa valiosíssima base do Grande Oriente Médio, a partir da qual elas poderão empregar suas técnicas de guerra híbrida

    Jovens e militantes do movimento pacifista reúnem-se para celebrar a redução da violência em Kandahar (Foto: AFP / Javed Tanveer)

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    Por Pepe Escobar, para o Asia Times

    Tradução de Patricia Zimbres para o 247

    Quase duas décadas depois da invasão e ocupação do Afeganistão na esteira do 11 de setembro, e após uma guerra interminável que custou mais de dois trilhões de dólares, há muito pouco de "histórico" no possível acordo de paz entre Washington e o Talibã, que talvez seja assinado em Doha no próximo sábado. 

    Para começar, devemos ressaltar três pontos: 

    1- O Talibã queria a retirada da totalidade das tropas dos Estados Unidos. Washington recusou. 

    2- O possível acordo apenas reduz as tropas norte-americanas de 13.000 para 8.600, que já era o número de antes do governo Trump.

    3- A redução só irá acontecer daqui a um ano e meio - supondo-se que isso que está sendo descrito como uma trégua consiga se sustentar.

    Para que não haja mal-entendidos, o Segundo em Comando do Talibã, Sirajuddin Haqqani, em um artigo assinado que certamente foi lido por todo o Beltway, detalhou sua inequívoca linha vermelha: a retirada total das tropas dos Estados Unidos.E Haqqani é enfático: não haverá acordo de paz se as tropas americanas permanecerem.  Entretanto, um acordo ainda paira no ar. Como? É simples: entra em cena uma série de "anexos" secretos.

    O principal negociador norte-americano, o aparentemente eterno Zalmay Khalilzad, um remanescente das eras Clinton e Bush, passou meses codificando esses anexos - como confirmado por uma fonte de Cabul, atualmente fora do governo, mas bem informada sobre as negociações. 

    Vamos subdividir esses anexos em quatro pontos. 

    1- As forças de contra-terrorismo dos Estados Unidos teriam permissão para permanecer. Mesmo se conseguir a aprovação das lideranças do Talibã, isso seria anátema para as massas de combatentes talibanis.

    2- O Talibã teria que denunciar o terrorismo e o extremismo violento. Trata-se apenas de retórica, e não seria um problema.

    3- Haverá um esquema montado para monitorar a suposta trégua enquanto as diferentes facções afegãs que guerreiam entre si discutem o futuro, no que o Departamento de Estado dos Estados Unidos descreve como "negociações intra-afegãs". Em termos culturais, como veremos a seguir, afegãos de diferentes origens étnicas terão tremenda dificuldade para monitorar suas próprias guerras. 

    4- A CIA teria permissão para fazer negócios nas áreas controladas pelo Talibã. Esse é um anátema ainda mais pesado. Qualquer um que esteja familiarizado com o Afeganistão do pós 11 de setembro sabe que a principal razão para a CIA manter negócios no país são as rotas de contrabando (ratlines) de heroína que financiam as operações clandestinas (black-ops) da Langley, como revelado em 2017.

    Fora isso, todos os outros aspectos desse acordo "histórico" permanecem bastante vagos. Até mesmo o Secretário de Defesa Mark Esper foi forçado a admitir que a guerra no Afeganistão estava "ainda" em um estado de impasse estratégico.

    Quanto ao nada estratégico desastre financeiro, temos apenas que examinar o último relatório  SIGAR . SIGAR é a sigla para Special Inspector General for Afghanistan Reconstruction (Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão). Na verdade, praticamente nada foi "reconstruído" no Afeganistão. 

    Nenhum acordo sem o Irã 

    A confusão "intra-afegã" começa com o fato de que Ashraf Ghani acabou por ser declarado vencedor nas eleições presidenciais realizadas em setembro do ano passado. Mas ele não é reconhecido praticamente por ninguém.

    O Talibã não conversa com Ghani. Apenas com algumas pessoas que fazem parte do governo de Cabul. E eles descrevem essas conversas, na melhor das hipóteses, como sendo "entre afegãos comuns".  

    Qualquer um que tenha algum conhecimento da estratégia do Talibã sabe que as tropas dos Estados Unidos/OTAN jamais terão permissão para permanecer. O que talvez aconteça é o Talibã permitir algum tipo de expediente salva-face, como a permanência de um contingente por alguns meses, e a partir daí apenas um contingente bem reduzido para fazer a segurança da embaixada dos Estados Unidos em Cabul.

    Washington, obviamente, irá rejeitar essa possibilidade. A suposta "trégua" será quebrada. Trump, pressionado pelo Pentágono, enviará novas tropas. E a espiral dos infernos voltará a girar.    

    Uma outra falha importante do possível acordo é os americanos terem ignorado por completo o Irã em suas negociações em Doha. 

    Isso é patentemente absurdo. Teerã é um parceiro estratégico da maior importância para Cabul. Além das milenares conexões histórico-culturais-sociais, há no mínimo 3,5 milhões de refugiados afegãos no Irã. 

    Posteriormente ao 11 de setembro, Teerã, de forma lenta mas segura, começou a cultivar relações com o Talibã - mas não de nível militar-armamentista, segundo os diplomatas iranianos. Em Beirute, em setembro, e em Nur-Sultan em novembro do ano passado, obtive um panorama claro da situação atual das discussões sobre o Afeganistão.

    A conexão russa com o Talibã passa por Teerã. As lideranças talibani mantêm contatos frequentes com o Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos. Apenas no ano passado, a Rússia realizou duas conferências em Moscou entre as lideranças políticas  do talibã e os mujahideen. Os russos estavam interessados em trazer os uzbeques para as negociações. Ao mesmo tempo, algumas lideranças do Talibã, por quatro vezes, se reuniram secretamente com agentes do Serviço Federal de Segurança russo em Teerã.

    O ponto central dessas discussões foi "chegar a uma resolução de conflitos fora dos padrões ocidentais", nas palavras de um diplomata iraniano. O objetivo era algum tipo de federalismo: o Talibã mais os mujahideen no comando da administração de alguns vilayets.  

    A verdade é que o Irã tem melhores contatos no Afeganistão do que a Rússia ou a China. E tudo isso se encaixa no contexto muito mais amplo da Organização da Cooperação de Xangai (OCX). A parceria estratégica Rússia-China quer uma solução para a questão afegã vinda da interior da OCX, da qual tanto o Irã quanto o Afeganistão são observadores. O Irã pode vir a se tornar membro pleno caso o país permaneça no acordo nuclear - o Plano de Ação Conjunto Global - até outubro, não ficando portanto sujeito a sanções da ONU. 

    Todos esses atores querem a saída - definitiva - das tropas dos Estados Unidos. A solução, portanto, aponta para uma federação descentralizada. Segundo um diplomata afegão, o Talibã parece estar pronto para dividir o poder com a Aliança do Norte. Quem atrapalha tudo, entretanto, é o Hezb-e-Islami, com um tal de Jome Khan Hamdard, um comandante aliado ao notório mujahid Gulbudiin Hekmatyar, baseado em Mazar-i-Sharif e apoiado pela Arábia Saudita e pelo Paquistão, que estão mais interessados em recomeçar a guerra civil. 

    Para entender o Pashtunistão

    Aqui vai uma explosão de tempos passados, uma recordação do contexto da visita do Talibã a Houston, que mostra como as coisas não mudaram muito desde o primeiro mandato de Clinton. Trata-se sempre da questão de os Talibãs receberem sua parte - naquela época, o assunto era o  Oleodutistão, e agora, sua reafirmação do que pode ser descrito como o Pashunistão. Nem todo pashtun é um talibani, mas a maioria esmagadora dos talibanis são pashtun. 

    O establishment de Washington nunca seguiu a recomendação de "conhece teu inimigo", para tentar entender como pashtuns de grupos extremamente diversos são ligados por um sistema de valores em comum, que estabelece sua base étnica e as regras sociais necessárias. Essa é a essência de seu código de conduta - o fascinante e complexo Pashtunwali. Embora incorporando inúmeros elementos islâmicos, o Pashtunwali, em muitos pontos, está em contradição direta com a lei islâmica.

    O Islã introduziu elementos de moralidade de importância fundamental para a sociedade pashtun. Mas há também normas jurídicas, impostas por uma nobreza hereditária, que dão sustentação a todo o edifício, e que são de origem  turco-mongol.

    Os pashtuns - uma sociedade tribal - têm uma profunda aversão ao conceito ocidental de estado. O poder centralizado só tem uma única maneira de tentar neutralizá-los: o suborno. É isso que passa por uma espécie de sistema de governo no Afeganistão. O que coloca a questão de com quanto - e com quê - os Estados Unidos estão agora subornando o Talibã.

    A vida política afegã, na prática, opera com atores  que são facções, sub-tribos, "coalizões islâmicas" ou grupos regionais. 

    De 1996 até o 11 de setembro, o Talibã encarnou o retorno legítimo dos pashtuns como elemento dominante do Afeganistão. Foi por essa razão que eles instauraram um emirado, e não uma república, o que era mais apropriado a uma comunidade muçulmana governada apenas por legislação religiosa. A desconfiança com relação às cidades, particularmente Cabul, expressa também o sentimento de que os pashtuns são superiores aos demais grupos étnicos afegãos.

    O Talibã representa um processo de superar a identidade tribal e a afirmação do Pashtunistão. O Beltway nunca entendeu essa poderosa dinâmica - e essa é uma das razões cruciais da derrocada americana.   

    O corredor do Lápis Lázuli 

    O Afeganistão está no centro da nova estratégia americana para a Ásia Central, que é a de "expandir e manter o apoio à estabilidade no Afeganistão", acoplada à ênfase em "incentivar a conectividade entre a Ásia Central e o Afeganistão".  

    Na prática, o governo Trump quer que os cinco "istãos" da Ásia Central apostem em projetos de integração tais como o projeto de eletricidade CASA-1000 e o corredor comercial do Lápis Lázuli, que de fato é uma tentativa de reinicializar a Antiga Rota da Seda, ligando o Afeganistão ao Turcomenistão, ao Azerbaijão e à Geórgia, antes de cruzar o Mar Negro até a Turquia, e então seguindo até a União Europeia.  

    Mas o problema é que o Lápis Lázuli fatalmente irá se integrar ao Corredor Médio da Turquia, que faz parte das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa do Cinturão e Rota, e também do Corredor Econômico China-Paquistão Plus, que também faz parte da Cinturão e Rota. Pequim planejou essa integração muito antes de Washington.

    O governo Trump está apenas enfatizando o óbvio: um Afeganistão pacífico é de importância essencial para o processo de integração.

    Andrew Korybko está correto ao afirmar que "a Rússia e a China, a essa época, poderiam avançar mais na construção do Anel de Ouro unindo os dois países ao Paquistão, ao Irã e à Turquia, "abraçando" assim a Ásia Central, com oportunidades potencialmente ilimitadas que superariam em muito a perspectiva estratégica de soma-zero dos Estados Unidos, 'forçando' sua expulsão". 

    O desejo otimista do falecido Zbigniew "Grande Tabuleiro" Brzezinski talvez esteja morto, mas as miríades de jogadas de dividir-para-governar impostas à Ásia Central agora se transmutaram em guerra híbrida dirigida explicitamente contra a China, a Rússia e o Irã - os três grandes nós da integração da Eurásia. 

    E isso significa que, no que se trata do Afeganistão da realpolitik, com ou sem acordo, as forças armadas dos Estados Unidos não têm a menor intenção de ir embora. Elas querem ficar - a qualquer custo. O Afeganistão é uma valiosíssima base do Grande Oriente Médio, a partir da qual os Estados Unidos poderão empregar suas técnicas de guerra híbrida.

    Os pashtuns, certamente, entenderam a mensagem enviada pelos principais atores da Organização de Cooperação de Xangai. A questão é como eles planejam  ganhar de lavada o jogo contra a Equipe Trump.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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