O meu Getúlio
Tem o Getúlio da coragem de dar a vida pelo Brasil, oferecendo-se em holocausto como recurso heroico para livrar a Nação das garras da demagogia golpista
Muito se disse – e muito há ainda a dizer – a respeito de Getúlio.
Tem o Getúlio objetivo, o Getúlio dos fatos incontroversos, que seus inimigos de ontem e de hoje fingem não conhecer para não reconhecer. O Getúlio que dotou o Brasil dos fundamentos materiais e institucionais para o seu desenvolvimento. O Getúlio do DASP, da legislação social trabalhista e previdenciária, do voto da mulher, da Justiça Eleitoral, da Companhia Siderúrgica Nacional, da Companhia Vale do Rio Doce, da Petrobrás, da Eletrobras, do CNPq, do BNDES, do Museu Imperial, da descriminalização da capoeira e seu reconhecimento como joia cultural brasileira.
Tem o Getúlio amigo do presidente Roosevelt – que lhe reconheceu a primazia da política econômica e social que inspirou o estadunidense New Deal. Tem o Getúlio estratega que piscava para a Alemanha enquanto extraía dos EUA o que o Brasil necessitava: siderurgia para industrializar o país.
Tem o Getúlio primeiro presidente a conhecer pessoalmente a Amazônia, onde, às margens do grande rio, em 1940, profetizou em discurso “O destino brasileiro do Amazonas”. O Getúlio que no segundo mandato cumpriu a palavra empenhada no profético discurso, reservando 3% do orçamento nacional para financiar o primeiro plano regional da história, Plano de Valorização Econômica da Amazônia, coordenado por uma Superintendência (SPVEA), para que a região adquirisse margem de autonomia para decidir o seu próprio destino e se integrasse ao projeto nacional. O Getúlio que sabia que ser parte ativa do Brasil é e sempre há de ser o destino da Amazônia.
Tem o Getúlio gênio da política, que uniu o Brasil não entreguista (os entreguistas se aboletavam na União Democrática “Nacional”, a UDN), em torno de dois partidos, ambos instituídos em 1945, quando já se antevia a vitória dos Aliados e a hegemonia dos EUA. Um, por ele formalmente criado e do qual foi o primeiro presidente, o Partido Social Democrático (PSD), para que as oligarquias regionais, que assentavam suas raízes na República Velha, pudessem participar do projeto nacional inaugurado pela Revolução de 30 – a matriz do Brasil moderno.
Outro, por ele inspirado e apoiado por meio da máquina do Ministério do Trabalho, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), para que as massas trabalhadoras urbanas e rurais, libertadas pela Revolução de 30 do anonimato e da escuridão da não-cidadania para o protagonismo da luta política institucional, tivessem uma voz audível e respeitada, que não fosse o Partido Comunista do Brasil (embora PTB e PCB, em movimentos autônomos, viessem depois a apoiar a permanência de Getúlio no poder, por meio do movimento queremista – “Constituinte com Getúlio”, mas isso é uma outra e mesma história, a história da genialidade política do velho caudilho).
Tem o Getúlio da coragem de dar a vida pelo Brasil, oferecendo-se em holocausto como recurso heroico para livrar a Nação das garras da demagogia golpista de Carlos Lacerda, que hipnotizava as massas com a máquina de manipulação midiática do magnata das comunicações Assis Chateaubriand, a clamar contra um suposto “mar de lama”. Ele, o poderoso Chatô, que uma semana antes do ato extremo ofereceu a Getúlio uma saída “honrosa”: tiraria os microfones de Lacerda e daria a quem o presidente escolhesse. A “bondade” tinha um preço: o abandono da criação da Petrobrás. Getúlio disse não. É de nãos, mais do que sins, que se constroem as grandes biografias. A de Getúlio está eternizada em diamante na Carta Testamento.
Tem esse Getúlio, enfim, que é de todos os brasileiros, o “Guia Eterno dessa Gente”, como louvado pelo inesquecível Jackson do Pandeiro na insuperável “Ele Disse”.
Mas eu tenho o meu Getúlio. Que é o mesmo Getúlio de toda a gente, mas é meu próprio. O meu Getúlio é Vargas, como a minha avó, a gaúcha Cecília Vargas, nascida em Gravataí, em 1903, quando o são-borjense Getúlio tinha 20 anos. Ciloca, como viria a ser conhecida por toda a vida, casou-se em 1920 com o meu avô Alfredo Gomes, gaúcho de Vacaria, nascido em 1891, quando Getúlio era tenro menino de nove anos.
O meu Getúlio pacificou e uniu o Rio Grande, mas só em 1928, depois do muito sangue derramado na Revolução de 1923, na qual meu bisavô, Arthur, e meu avô, Alfredo, maragatos de quatro costados, lutaram nas mesmas fileiras que José Brizola, o pai do menino Leonel, bebê ainda. O pai de Leonel foi assassinado pelos ximangos de Borges de Medeiros. O Pacto de Pedras Altas pôs fim à guerra fraticida e pretendeu pavimentar a reunião dos irmãos gaúchos, mas no chão quente dos grotões as escaramuças continuavam febris aqui e acolá. Na Revolução de 1923 ainda se praticava a degola dos inimigos. Viver por ali naqueles tempos era perigoso. Meus antepassados fizeram então o que os seus antepassados nunca imaginaram fazer. Para sobreviver, deixaram o amado Rio Grande.
Foi assim. 1925. Lagoa Vermelha. Um grupo de gaúchos, das famílias Vargas e Gomes, percorrem a cavalo o Caminho do Viamão em direção a Santa Catarina. Para alcançar o território do estado vizinho têm que atravessar o Rio Pelotas. Uma travessia perigosa, que exige conhecimento do leito do rio. Precisam contar com a orientação de batedores ribeirinhos que com seus cavalos seguem à frente dos tropeiros mostrando o caminho exato em que o rio é menos fundo.
No grupo de viajantes, uma cena se destaca. Uma jovem leva um bebê no ventre. A jovem era Cecília, minha avó. O bebê era Janira, minha mãe, em sua viagem inaugural neste Vale de Lágrimas. A necessidade fez os Vargas e os Gomes submeterem Ciloca, grávida de Janira, à tormentosa viagem em lombo de cavalo pelos Caminhos das Tropas. Era preciso chegar, e rápido, em Santa Catarina.
Exaustos de tensão e chão, os Vargas Gomes finalmente alcançaram a outra margem do rio que separa os dois estados. E Janira nasceu catarinense em Lages, juntando-se aos gauchinhos Hery, nascida em 1922, mesmo ano que Leonel, filho do falecido maragato José Brizola, e Darci, que veio ao mundo no conturbado 1923 da Revolução.
Tem mais história dentro desta história, mas é outra (embora a mesma) história. Por ora, é dizer que o meu Getúlio era Vargas, como a minha avó Cecilia, e que da luta por terra, trabalho e pão no chão quente do Rio Grande veio a herança que trago no peito, menino nascido da bela mulher em que se transformou o bebê que balangandava no ventre de Ciloca nas conflitivas terras gaúchas a caminho das pacíficas aragens catarinenses. Cheguei ao Brasil na fria e bela Curitiba, mais especificamente no bairro operário do Capão Raso, do encontro da catarinense de Lages com o carpinteiro Antônio, catarinense de Guaramirim, que, embora (ou porque) iletrado, fabricou uns banquinhos de madeira para que eu e os filhos dos vizinhos tomássemos de Janira as primeiras letras. Daí que comecei a estudar no Grupo Escolar Professor João Loyola já alfabetizado.
Vamos terminando por aqui. Não sem antes dizer que o legado dos meus antepassados fez brilhar de intensa curiosidade (e intuitiva indignação!) os meus olhinhos de menino de sete anos quando, em 1968, fazia eu o segundo ano do curso primário, uma professora (de vaguíssima lembrança, gordinha, baixinha, nada mais), em sua mesinha ao lado de um janelão, na fria e ensolarada manhã curitibana, soltou uma frase que movimentou minhas placas tectônicas: “Quando o presidente renunciou, o vice estava vendendo o Brasil na China!”. Eram os inimigos do destino do Brasil, os mesmos que Vargas derrotou com o ato extremo de 24 de agosto de 1954, voltando à carga maldita pela cartilha de inocente professorinha num bairro operário qualquer para vilipendiar a memória de Jango! Mas a perfídia descaradamente assacada naquela gélida manhã de inverno curitibano contra o digno presidente deposto pelo Golpe de 64 teve que confrontar-se com um menino de olhos abertos e ouvidos atentos, ígneo descendente político de Getúlio. O meu Getúlio. No pasarán!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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