O mito e o mistificador: Bolsonaro e Olavo de Carvalho destruindo o Brasil
Para Marcia Tiburi, "Bolsonaro e Olavo foram um par místico. Juntos, eles compunham uma espécie de 'duplo corpo do rei'"
Por Marcia Tiburi
Uma catarse coletiva tomou conta do país nos últimos dias com o falecimento de um personagem fundamental no processo de fascistização nacional, o mentor intelectual do atual presidente da República.
Em 1o. de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro exibiu um exemplar de um livro de Olavo de Carvalho sobre a mesa em seu discurso de posse. “Tudo o que você precisa saber para não ser um idiota” (Record, 2013) estava junto à Memórias da Segunda Guerra de W. Churchill, à Constituição e à Bíblia, o que prova, apesar de todos os problemas ético-cognitivos de que Bolsonaro possa ser acusado, que ele sempre soube do poder que tem um livro. Seu desdém a tais objetos da cultura é menos inveja e mais estratégia de uma inescrupulosa guerra cultural anti-cultura.
Aparato de mistificação ou simples merchandising editorial, fato é que o livro de Olavo de Carvalho marcava de maneira ritual, algo mais do que o tom ideológico e delirante assumido pelo governo. Era o triunfo do “mito” junto com o “mistificador” o que surgia para o Brasil inteiro ver no pior estilo da política na era do espetáculo. Agora, com a morte de Olavo, visto como “guru”, muitos se perguntam que destino terá Bolsonaro, na posição de seu discípulo. Essas categorias, contudo, não definem o teor mais profundo dessa relação.
Bolsonaro e Olavo foram um par místico. Juntos, eles compunham uma espécie de “duplo corpo do rei”, ou de Titã platônico do extremismo de direita. A veleidade intelectual nunca foi uma questão de Bolsonaro, ao contrário. Mas sem o “verniz” intelectual, providenciado por Olavo, a “elite” econômica não teria aceito tão bem a presença chinelona de Bolsonaro.
Na verdade, Olavo não servia muito como “verniz”, no sentido de melhorar a imagem do seu parceiro ideial. Ele cumpria bem melhor o papel da efígie, uma espécie de duplo, um Golem na posição de “autoridade intelectual” para um governo autoritário. Olavo era a efígie bolsonarista sempre em cena e, como Bolsonaro, ativamente falante. Difícil separar o ventríloquo do boneco. Se a esquerda, intelectuais e militância, desprezava Olavo, vendo nele um facínora delirante e absolutamente desqualificado, a direita e a extrema-direita viam nele o intelectual público necessário. Tão necessário como Jair Bolsonaro para o projeto neoliberal de Guedes, ele mesmo um rico imoral não carismático.
Não se deve deixar de lado que a unidade entre Bolsonaro e Olavo não foi de modo algum “intelectual”, senão pela via negationis (pela falta da própria coisa), mas uma unidade baseada na mistificação. Bolsonaro é o mistificador político, onde Olavo foi o mistificador ideológico. Juntos são uma bomba proto-teológica que chegou ao poder amparada evidentemente por todos os espertos capitalistas, crentes ou não, que perceberam sua potência.
A colaboração do falecido nessa unidade mística é gigantesca. A manutenção da hegemonia cultural da extrema-direita pelo culto da ignorância, da enganação, da desinformação, não seria possível sem o simulacro de erudição praticado por Olavo. Discutir a profunda dissociação de sua consciência é assunto para um outro momento. Agora basta ver que ele usava a cultura para destruir a cultura, a linguagem para destruir a linguagem, assim como tantos usam hoje a política para destruir a política.
Se o fascismo é um jogo de linguagem, Olavo foi dos seus mais expressivos estrategistas, cujo método conduziria à morte da linguagem, através da destruição da lógica que dá base ao pensamento humano em nome de vencer um debate sem precisar ter razão. É provável que Olavo de Carvalho nem quisesse simplesmente vencer um debate, mas que desejasse aniquilar a própria chance de existir um debate pela destruição completa da linguagem.
O caso de Olavo não era o de uma burrice simples, mas de uma oligofrenia próxima a de Bolsonaro, temperada pela terminologia de quem havia lido alguma coisa que, bem utilizado, até poderia ser interessante.
Críticos do fascismo de cem anos atrás analisavam a burrice dos fascistas, e nos ajudam hoje a entender que a burrice é um sintoma que passa a ter validade de estratégia nos momentos em que a política é jogada como farsa.
A morte de Olavo não deve enfraquecer muito Bolsonaro, até porque certamente aparecerá um substituto em breve para ocupar o espaço, talvez diáfano, da efígie. Não sabemos até que ponto, as massas bolsonaristas se interessavam por Olavo. Certo é que ele servia como professor para jovens identificados com o mestre por veleidades intelectuais comuns. O desejo de ser um intelectual é uma constante entre homens jovens de classe média ou alta que herdam as veleidades de poder da própria classe. É esse desejo que move os adeptos dos discursos de ódio nas redes, o de fazer parte de uma classe intelectual pela via do antissistema. Além de um prazer mórbido, o discurso de ódio é um capital cultural e social poderoso. Quem odeia não se sente imbecil.
Olavo encantava aqueles que se auto-compreenderam como “elite” e que odiavam a esquerda e, sobretudo, o PT. Junto a Bolsonaro, ele era o foco de adoração que as massas manipuladas dedicam ao líder autoritário e cruel, numa atitude típica de adulação entre personalidades fascistas. A adulação das massas é sempre levada ao limite no fascismo em um jogo sadomasoquista que não nos cabe analisar agora.
Resta saber se seguidores e discípulos terão a mesma competência que Olavo tinha para arrebanhar ingênuos, bem como vaidosos para o seu projeto de destruição das subjetividades submetidas ao grande guia.
Certamente surgirão novos proto-intelectuais de direita e extrema-direita mais ou menos envernizados que buscarão um lugar no céu neoliberal onde, para sorte do planeta, crescem os quasares. Os candidatos a Olavo terão que falar sem nenhum vergonha, como ele fazia ao praticar a sua retórica do grotesco. O consultório dos coaches de direita que despontam no mundo psi terão muitos clientes em busca de liberação das tensões e inibições de homens tímidos e loucos para aparecer como intelectuais.
Infelizmente, tudo isso é ainda mais complicado e será muito, mas muitíssimo mais complicado, superar a destruição da linguagem (da cultura e da política) no Brasil que, esperamos, possa renascer dos escombros em 2023 através do voto.
Sigamos tentando entender esse fenômeno se quisermos nos livrar do sistema político autoritário, ele mesmo um sistema de pensamento delirante, que governa o país.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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