O paradoxo europeu: de "colonizadores" a "reemigradores"
Se a Europa quer manter seu compromisso com os direitos humanos e com os valores democráticos, precisa urgentemente confrontar seu passado — e seu presente
Em pleno século XXI, o continente europeu, berço de movimentos iluministas e da ideia moderna de direitos humanos, ainda enfrenta um paradoxo perturbador: o avanço da xenofobia. A hostilidade contra imigrantes — sobretudo vindos da África, do Oriente Médio e da América Latina — contrasta com o legado colonial europeu, marcado pela invasão, dominação e destruição de culturas em quase todos os continentes. A Europa, que historicamente se impôs sobre povos originários com violência e expropriação, hoje fecha suas fronteiras e ergue muros físicos e simbólicos contra aqueles que buscam refúgio ou melhores condições de vida.
A contradição histórica é evidente. Durante séculos, impérios europeus como o português, o espanhol, o britânico, o francês e o holandês lançaram-se ao mar em busca de riquezas, impondo sua língua, religião e costumes a povos da África, da Ásia e das Américas. A colonização foi sustentada por guerras, escravização, estupros, catequese forçada e pilhagem de recursos naturais. Povos inteiros foram desestruturados em nome do progresso europeu. E agora, diante das crises migratórias provocadas — em parte, por essas heranças coloniais —, a Europa responde com intolerância, racismo institucional e políticas de exclusão.
A ideia de direitos universais, tão celebrada nas revoluções europeias, também revela seu viés seletivo. A própria Revolução Francesa — marco da modernidade ocidental — proclamava liberdade, igualdade e fraternidade, mas essas palavras não atravessaram o Atlântico com a mesma força. Quando os escravizados da colônia de Saint-Domingue (atual Haiti) se levantaram inspirados por esses ideais, a reação da França tentou sufocar a revolta com extrema violência. A Revolução Haitiana (1791–1804), a única revolta de escravizados que resultou na fundação de um Estado independente, expôs de forma brutal o limite racial e colonial do projeto iluminista europeu.
A liberdade era para os franceses — não para os povos colonizados. O Haiti, punido por sua ousadia, jamais foi perdoado pela ordem colonial: até hoje não se recuperou completamente da audácia de ter rompido as correntes da escravidão. A insubordinação negra, quando bem-sucedida, foi transformada em exemplo a ser contido — por sanções econômicas, isolamento diplomático e o silenciamento de sua história.
O novo inimigo: o imigrante muçulmano e o velho discurso do medo - O Velho Continente, que durante a Idade Moderna impôs a ideia de “civilização” ao mundo, agora recusa-se a reconhecer a humanidade daqueles que fogem de guerras — muitas vezes alimentadas por interesses europeus — ou da miséria — frequentemente agravada pela exploração colonial. Sírios, afegãos, sudaneses e outros grupos muçulmanos são os alvos preferenciais da nova onda de intolerância. O discurso é sempre o mesmo: “são perigosos”, “não respeitam os valores europeus”, “ameaçam nossas mulheres”.
A ironia, no entanto, é gritante. A Europa, que hoje projeta sobre o imigrante a imagem de ameaça à sua estabilidade, é marcada por uma longa tradição de conflitos internos e externos. Desde as Guerras Púnicas na Roma Antiga, passando pelas invasões bárbaras, as Cruzadas, as guerras de religião, as disputas territoriais medievais, as guerras napoleônicas e, já no século XX, as Guerras Mundiais, o continente foi palco de sucessivos episódios de violência, dominação e controle de corpos e territórios. A guerra sempre foi legitimada em nome do poder, da fé ou da civilização. Ao transformar o imigrante em inimigo, a Europa nega sua própria história — uma história profundamente entrelaçada à violência que hoje ela julga no outro.
Ainda assim, essa mesma Europa aponta o dedo para religiões como o islamismo, usando o tratamento das mulheres como justificativa moral para a exclusão. A acusação de que os homens muçulmanos “não respeitam as mulheres” encobre, muitas vezes, o racismo e a islamofobia latentes. O feminicídio, por exemplo, está longe de ser uma exclusividade do “outro”: países europeus apresentam números alarmantes de violência de gênero, e muitos deles carecem de uma legislação tão abrangente e integrada quanto a Lei Maria da Penha. Reconhecida internacionalmente como uma das mais avançadas do mundo, a lei brasileira articula medidas protetivas, políticas públicas, atendimento especializado e reconhecimento da violência de gênero como fenômeno estrutural — o que raramente se encontra reunido em um único instrumento jurídico na Europa.
A história mostra que, em tempos de crise, é comum a construção de um inimigo simbólico. Na Europa atual, esse inimigo é o imigrante. No século XX, foram os judeus, os ciganos, os homossexuais e os comunistas — perseguidos sistematicamente pelo nazismo e outros regimes totalitários. Antes disso, foram os próprios cristãos, perseguidos pelo Império Romano, e os muçulmanos, durante as Cruzadas e a Reconquista Ibérica. A lógica da exclusão é cíclica, e o medo do diferente se alimenta da ignorância histórica.
Mas afinal, quando os imigrantes foram realmente bem-vindos na Europa? Mesmo quando chamados por necessidade econômica, como no caso dos Gastarbeiter (trabalhadores estrangeiros contratados temporariamente pela Alemanha no pós-guerra) na Alemanha Ocidental no pós-guerra, os estrangeiros nunca foram plenamente integrados. Vindos em sua maioria da Turquia, Itália, Iugoslávia, Grécia, Portugal e Espanha, esses trabalhadores foram tolerados enquanto úteis à reconstrução, mas raramente vistos como parte da comunidade nacional. Seus filhos e netos ainda hoje enfrentam discriminação, exclusão e dificuldade de acesso às mesmas oportunidades dos cidadãos nativos. Isso mostra que a xenofobia não é apenas reação a crises, mas parte estrutural de uma Europa que se vê como homogênea — e se assusta com a diversidade que ela mesma gerou ao longo da história.
Essa exclusão, que sempre existiu em silêncio, agora ganha forma política explícita. Um exemplo recente é a proposta de “remigração” defendida por lideranças do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). O termo, com aparência técnica e neutra, esconde um projeto de expulsão em massa de estrangeiros — inclusive de pessoas com cidadania alemã, mas com ascendência imigrante. A ideia é que esses indivíduos “voltem” para lugares com os quais muitas vezes não têm mais nenhuma relação. Trata-se de uma reedição moderna das políticas de “pureza racial”, desta vez embalada em discursos de preservação cultural e segurança nacional. O fato de tais propostas ganharem eco nas urnas mostra o quanto a xenofobia não é apenas um sentimento difuso, mas uma ameaça real à democracia europeia.
Brasileiros que migram para a Europa — independentemente da cor da pele ou condição financeira — já passaram, em maior ou menor grau, por experiências de discriminação, preconceito linguístico, xenofobia e racismo. Ser brasileiro fora do país é, muitas vezes, carregar um estigma: o da hipersexualização — especialmente no caso de mulheres —, da informalidade ou da baixa escolaridade. Embora existam exceções, a regra é clara: o “outro” não é, muitas vezes, bem-vindo.
A xenofobia interna: o Brasil que também exclui os seus - O Brasil é um dos frutos mais visíveis desse processo histórico. A formação do Estado-nação brasileiro esteve profundamente atrelada à violência colonial: indígenas foram dizimados, africanos escravizados em massa e mulheres sistematicamente violentadas. A miscigenação forçada não gerou uma sociedade harmoniosa e igualitária, mas sim uma estrutura profundamente desigual, com o racismo como elemento fundante. Ainda assim, o Brasil acolheu — e continua acolhendo — migrantes de diversas origens, mesmo com suas próprias contradições internas.
Mesmo os imigrantes europeus — frequentemente associados ao ideal de “branqueamento” da população — enfrentaram episódios de exclusão. Durante o século XIX, milhares de italianos, alemães, eslavos e portugueses foram incentivados a migrar para o Brasil, especialmente para o Sul e Sudeste, como parte de um projeto de “europeização” da sociedade. No entanto, durante o Estado Novo (1937–1945), muitos desses descendentes foram perseguidos. A política de nacionalização imposta por Getúlio Vargas proibiu o uso de línguas estrangeiras em escolas, igrejas, comércios e até em conversas privadas. Clubes culturais foram fechados, jornais em idiomas como alemão, italiano e japonês foram censurados, e manifestações culturais foram reprimidas. Essa repressão revela que a exclusão no Brasil também se voltou contra “brasileiros de origem estrangeira”, quando sua identidade era percebida como ameaça à unidade nacional.
Embora o país tenha uma imagem externa de “acolhedor”, é necessário olhar com honestidade para suas próprias formas de xenofobia interna — especialmente contra nordestinos. Desde o século XIX, os migrantes nordestinos foram tratados como mão de obra barata, desvalorizada, e muitas vezes associados a estereótipos pejorativos nas regiões Sudeste e Sul. A migração em massa provocada pelas secas e pela falta de oportunidades gerou um fluxo constante de nordestinos para grandes centros urbanos, onde frequentemente foram (e continuam sendo) alvos de discriminação linguística, social e cultural.
A ascensão política de Luiz Inácio Lula da Silva, um operário migrante de Caetés (PE), foi acompanhada por um volume inédito de preconceito de classe e xenofobia regional. Lula, antes mesmo de chegar à presidência, foi constantemente atacado por sua origem humilde, por seu sotaque, por sua trajetória como retirante nordestino e, sobretudo, por sua profissão de operário metalúrgico — frequentemente usada para desqualificá-lo como alguém “sem preparo” para ocupar cargos de liderança. Ao longo de sua carreira política, os estigmas sobre sua falta de formação acadêmica e seu modo de falar foram amplamente utilizados como forma de deslegitimação — mesmo quando suas propostas e ações eram amplamente reconhecidas.
A xenofobia contra nordestinos não é um fenômeno isolado: é estrutural, disseminada na mídia, no humor, na política e na publicidade. As telenovelas e outros veículos de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, historicamente retrataram o nordestino de forma caricata — ora como o ingênuo e atrapalhado, ora como o malandro ou subalterno — reforçando estigmas e naturalizando a inferiorização cultural. O Nordeste é frequentemente retratado como um lugar atrasado, dependente e folclórico — quando não diretamente responsabilizado por decisões políticas que desagradam parte das elites do Sudeste. Essa forma de xenofobia interna revela o quanto o Brasil também repete, em menor escala, a lógica de exclusão europeia: o “outro”, mesmo dentro das fronteiras nacionais, é alvo de preconceito quando não se encaixa na norma cultural dominante. A diferença está na forma e na escala. Enquanto a Europa tenta controlar o fluxo migratório com muros e patrulhamento de fronteiras, o Brasil enfrenta desafios internos de reconhecimento e valorização de suas próprias populações historicamente marginalizadas. A xenofobia contra nordestinos, indígenas, imigrantes africanos ou haitianos é um espelho incômodo do que a Europa pratica além-mar. Em ambos os casos, o preconceito se alimenta da desigualdade e da ignorância
É preciso repensar o discurso europeu sobre imigração e identidade — e também o brasileiro sobre pertencimento e cidadania. Não se trata apenas de acolher refugiados por caridade ou de aceitar a diversidade regional como folclore. Trata-se de reconhecer responsabilidades históricas, agir com justiça e construir sociedades verdadeiramente plurais. Em um mundo cada vez mais interdependente, a exclusão do outro representa, na verdade, a negação de nós mesmos. Se a Europa quer manter seu compromisso com os direitos humanos e com os valores democráticos, precisa urgentemente confrontar seu passado — e seu presente. E o Brasil, se quiser avançar como nação, precisa começar reconhecendo e combatendo a xenofobia interna que ainda corrói suas próprias estruturas internas. Enquanto isso, os muros — visíveis ou simbólicos — seguem sendo erguidos por aqueles que historicamente se beneficiaram de portas abertas nos territórios dos outros.
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