O que podemos aprender com os podcasts?
Os podcasts podem vir a consistir em uma ferramenta inovadora e surpreendente de elevação da consciência social
Essa semana circulou na internet uma declaração com ar de confissão e de lamento feita por integrantes de um podcast que tem promovido uma série de debates entre representantes da direita e da esquerda.
O podcast tem algumas qualidades que ficam patentes nesse corte que circula na internet. Primeiro, seus membros assumem sua posição política, nesse caso, de direita, declaram terem sempre votado em partidos de direita e, mais recentemente, em Bolsonaro. Segundo, são honestos o suficiente para abrir o seu programa ao debate franco, intermediando-o de forma a manter o equilíbrio, a distribuição justa do tempo, a garantia de exposição das ideias de cada debatedor, etc. Terceiro, ainda que com posição política definida, estão abertos e dispostos a aprender com o debate. Qualidades estas de modo algum presente na maioria dos podcasts ou mesmo nos programas de televisão, nas raríssimas vezes em que estes promovem esse tipo de evento.
No corte, uma entrevista com um reconhecido militante comunista da internet, um dos integrantes se diz envergonhado dos debatedores de direita que vêm ao programa. Segundo ele, são rasos e superficiais, estão ocupados de falsos temas como a “ameaça comunista”, o “globalismo”, políticas “gaysistas” ou “abortistas” e toda essa verborreia que temos visto nos últimos anos na boca de políticos conservadores, pastores, ruralistas, milicianos.
Qual é o problema? São vários. Vou pontuar.
Observo que não vi muitos desses debates, a não ser alguns cortes como esse de que falamos. Não tenho estômago para acompanhar por mais de hora uma interlocução que se inclina mais ao deboche, o escárnio, a bravata (na larga maioria vindo da direita) do que à confrontação de teses. A meu ver aquilo não chega a ser um debate, mas um entretenimento midiático de sublimação emocional – humilhação, vergonha, honra e heroísmo – dos que o acompanham. A mim causa vergonha, e admiro muito os debatedores de esquerda que topam esse tipo de confronto, que é praticamente como disputar a verdadeira cor do céu com uma criança.
Tentei ouvir um desses debates, na ocasião, entre Jones Manoel e Kim Kataguiri. Duelo que se pode chamar de sério e equilibrado, tendo à mesa duas figuras preparadas, dois profissionais da política. Creio que esse é um entendimento geral entre os seguidores de ambos os debatedores. Pois, a despeito das posições, os internautas constatam, contrafeitos ou não, a importância que cada personagem tem dentro de seus universos e no cenário político em geral. É ainda o que podemos apreender a partir do que expressam os (web) espectadores em geral, dentro daquilo que se denomina dupla hermenêutica, ou uma interpretação de segundo grau, isto é, em uma interpretação que se faz a partir da interpretação dos demais observadores.
Essa interpretação de segundo grau nos dá um alcance maior e mais geral sobre os web espectadores. É um valoroso instrumento metodológico para o pesquisador e/ou o estudante da política, revelando, por vezes, as leituras radicalmente distintas que indivíduos podem fazer de uma mesma situação, um mesmo evento. Nesse sentido, do mesmo modo que registramos esse equilíbrio entre debatedores como Jones e Kim, mais ou menos nivelados em qualidade a despeito de representarem polos antagônicos, podemos constatá-lo entre aqueles com qualidades aparentemente muito desiguais, como foi o debate entre Elias Jabour e Renata Barreto, promovido no Inteligência Limitada (este podcast com um intermediador tão neutro e imparcial quanto se pode ser).
Isto posto, recorrendo às opiniões, análises, ofensas e elogios, enfim, às livres descargas subjetivas feitas nos comentários, observamos entendimento diferente do que um observador do nosso campo poderia pressupor. Ou seja, de que o Jabour teria “almoçado e jantado” a sua adversária (para usar uma expressão colhida entre os comentaristas). Devemos colocar na balança, é claro, o grande volume de militância empedernida nos comentários, que se expressa mirando atacar a esquerda independentemente da evolução do debate, ou as fazendas robôs que atuam justamente para manipular a reação pública. Mesmo com isso, porém, restam os comentários advindos de pessoas reais expressando seus reais pontos de vista.
O reconhecimento do despreparo intelectual da direita por parte do apresentador do Três Irmãos, e a sua vergonha, explica-se pelo o que foi dito por volta de 2016 pelo diretor do filme Eu, Daniel Blake, Ken Loach, em uma entrevista dada na ocasião do lançamento do filme. Disse o diretor: “o ponto de vista da esquerda é mais difícil de ser alcançado”. Enunciado relativamente simples, talvez de conhecimento geral, mas de importância precisa.
Ver o mundo de um ponto de vista de esquerda é mais difícil, primeiro, por uma questão lógica: nascemos em um mundo de direita, cujos meios de informação estão vinculados a esse modelo, em que os principais entes, como o Estado e seus aparelhos, para lembrar Althusser, desenvolvem constantemente ferramentas e aparatos para inseminar da melhor maneira as bases pré-conscientes em que se criam as representações de mundo desde a primeira infância até a ultima fase da vida, de forma a fortalecer esse modelo de vida – o capitalismo – como o melhor e o único possível. Sejam estes aparelhos as instituições mais inteligíveis como as escolas e o sistema escolar, a fábrica e demais locais de trabalho, a Igreja e demais religiões, e principalmente isso que desde Henry Ford se convencionou chamar de lazer, que nada mais é do que o tempo de não-trabalho liberado ao trabalhador para o consumo, ou seja, para a reprodução do modo de produção da mercadoria que ele mesmo produziu.
Assim se passa até que, à certa altura da vida de um sujeito médio, sua forma de ver, sentir e viver o mundo está indissoluvelmente atrelada à sua boa reprodução. Eis o modo industrial de produção de subjetividades de direita.
A transição que ora vemos nos referidos podcasters é difícil de ocorrer. Mais são as mudanças acerca de referências isoladas e menores, como a representação sobre a mulher e seu papel social, sobre o negro e o indígena, como temos assistido ocorrer, com avanços e recuos, entre os de nossa geração. Mesmo essas mudanças menores são disruptivas o suficiente para termos sempre em memória. Mais difícil é a ruptura radical (no sentido de raiz) com o universo plenamente significado em que nos criamos, sob o signo do neoliberalismo, por exemplo, enleado em todos os objetos e coisas, e todas as suas possíveis relações. Tal metamorfose exige mais tempo, mais estudo, debate, preparo, mas sobretudo tempo para maturar a disposição para o olhar investigativo, com controle das disposições contrárias, ou seja, controle dos preconceitos que condenam antecipadamente aquilo que se mostra contrário à lógica e aos valores já assumidos; disposição para analisar e ver a lógica naquilo que se manifesta como absurdo; desenvolver essa disposição relativista, quase um posicionamento de observador, que tenha coragem e vontade para considerar tanto aquilo que lhe é próximo quanto o que lhe é contrário como equivalentes e realizar, a partir daí, uma equação que destaque os pontos de partida e as conclusões de um e outro – Misses e Marx, Keynes e Hayek, etc. Isso raramente é conseguido porque exige tempo, condições materiais e subjetivas. Mesmo aqueles que detêm estas condições estão geralmente inclinados a continuar no conforto de suas fontes de informação, leitura etc. (vício não exclusivo da direita).
Como aludiu Gilles Deleuze em seu Abecedário, a passagem da direita para a esquerda equivaleria a sair de uma visão de mundo em uma sequência que se desdobra, na direita, a partir de si mesmo, do eu, vai para o contorno imediato, o nós, depois a família, o bairro, o Estado, o país, o mundo e assim por diante, e passar para a esquerda, a saber, do mundo ao país, ao Estado, o bairro, a família e eu.
Isso é raro e, devido a maneira em que vivemos no capitalismo, tende a jamais acontecer para a maioria da população. A luta, nesse sentido, seria por garantir essas condições – tempo, oferta de cultura, literatura, debates, formação – tudo isso que se tem negado deliberadamente à classe trabalhadora.
A universidade, de onde também vem os debatedores desses podcasts, exemplifica como a distribuição do trabalho de certo modo favorece a superioridade intelectual da esquerda. Isso não ocorre tal como pensa a direita, que todos os professores, funcionários e alunos são de esquerda, mas de fato os intelectuais de esquerda tendem a acessar aquele tempo de preparação, do trabalho intelectual que é próprio da academia e que não pode ocorrer – já dizia Lenin – em fábricas e em rotinas que gastam de dez a doze horas no trabalho físico, com pouco conteúdo subjetivo intelectual. Portanto isso ocorrerá mais facilmente em trabalhos que praticamente obrigam o consumo do tempo justamente em trabalho intelectual, sendo a universidade a instituição por excelência.
Isso se mostra no próprio caso aqui tratado, do curto circuito confessado pelos membros do podcast e de sua provável mudança de posicionamento político. Nesse caso, a ruptura intelectual só se deu no podcast, ou seja, um espaço (privilegiado) de debates, troca de informações, postulações de teses e antíteses, argumentações e demonstrações. A tudo isso eles estavam expostos, observando, ouvindo, estudando, costurando sínteses, tirando conclusões.
Daí a exiguidade dos casos entre trabalhadores que conseguem tirar a cabeça da lama e refletir sobre as relações que o contornam em níveis mais abstratos, em maiores alcances do que sua vida imediata, do trabalho, saúde, moradia etc. A dura porém realista conclusão leninista é de que a esquerda terá sempre de avançar guiada por uma vanguarda intelectual em relação à maioria não maturada no trabalho diário de discussão e análise da ordem política, parlamentar e econômica. Essa maioria, por sua vez, necessita ter confiança em sua vanguarda, pois a dinâmica da militância, dos combates políticos e do processo revolucionário requer saltos de fé em relação à sua vanguarda, o depósito de toda a energia e trabalho acumulado na política diária nas mãos do corpo dirigente.
É sempre gratificante testemunhar a conversão de um potencial adversário, mergulhado na ignorância doentia da extrema direita brasileira, ao campo da esquerda, ou, quando menos, à possibilidade do debate racional capacitado à sua evolução. É o que nos presenteou o referido podcast e o corte que ora circula nos grupos de WhatsApp e outras redes sociais. Mais gratificante é perceber que nosso pessimismo da razão por vezes (poucas vezes) se engana quanto a infertilidade da mente fascistização. E que os podcasts, esse formato subestimado, avaliado como coisa de jovem despolitizado jogando conversa fora, podem vir a consistir em uma ferramenta inovadora e surpreendente de elevação da consciência social.
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