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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    O triunfo da morte

    "Classe dominante global está cimentando um lugar no qual eles governam sem prestação de contas e nós estamos reduzidos à escravidão", escreve Chris Hedges

    Joe Biden e Guerra na Ucrânia (Foto: Reuters)

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    Por Chris Hedges   

    (Publicado originalmente em seu website, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247)

    É difícil ser otimista sobre o futuro. O colapso do ecossistema está bem documentado. Também assim é a recusa da elite dominante global em procurar medidas que possam mitigar a devastação. Nós aceleramos a extração de combustíveis fósseis, chafurdamos no consumo perdulário, incluindo o nosso consumo de animais e fazemos novas guerras como se estivéssemos tomados por um desejo de morte freudiano. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – Conquista, Guerra, Fome e Morte – galopam em pleno século XXI.

    Aqueles que dominam o poder, servidores das corporações e da classe bilionária global, acompanham a loucura suicida ao cimentar no lugar a tirania corporativa. O plano é de não reformar, é de perpetuar a pilhagem corporativa. Esta pilhagem, que é cada vez mais onerosa para a população global, necessita de um novo totalitarismo, no qual a classe bilionária vive na opulência, os trabalhadores são servos, os direitos como a privacidade e o devido processo judiciário são abolidos, o Grande Irmão [Big Brother] nos observa todo o tempo, a guerra é o negócio principal do estado  (https://chrishedges.substack.com/p/no-way-out-but-war), a dissenção é criminalizada e as pessoas deslocadas por conflitos e o colapso do clima têm a sua entrada barrada na fortaleza climática no norte global. Em teoria, porções da espécie humana, os mais privilegiados, aguentarão um pouco mais antes de sucumbirem à grande morte.

    Os perseguidos e os abandonados, que agora são dezenas de milhões, sabem qual é o futuro. Para eles, o futuro já chegou. Julian Assange (https://www.youtube.com/watch?v=_0jThc4Lszo) - o 'publisher' mais importante da nossa geração, cuja extradição para os EUA foi aprovada na sexta-feira [17.06.22] (https://www.nytimes.com/2022/06/17/world/europe/assange-extradition.html) pela Secretária do Interior [Home Secretary] do Reino Unido, Priti Patel - é um exemplo daquilo que sucederá com todos os 'publishers' e jornalistas que exponham as engrenagens internas do poder. A prisão dele [Assange] por revelar crimes de guerra, a mentira, o cinismo e a corrupção da classe dominante, incluindo o Partido Democrata [dos EUA], anuncia uma nova era. As investigações sobre os centros de poder, que é o sangue vital do jornalismo, será uma ofensa criminal (https://www.youtube.com/watch?v=-kEY_8mbn2c&t=332s).

    Não importa que Assange (https://chrishedges.substack.com/p/the-marriage-of-julian-assange), que teve um derrame cerebral e está com a sua saúde física e psicológica em estado precário, não é um cidadão estadunidense, nem que Wikileaks não é uma publicação sediada nos EUA. Não importa para nada que as reuniões de Assange com os seus advogados foram gravadas pela UC Global (https://assangedefense.org/press-release/day-17-witnesses-uc-global-spied-on-assanges-conversations-with-lawyers-patrick-cockburn-ian-cobain-guy-goodwin-gill-stefania-maurizi-robert-boyle/), a empresa espanhola de segurança, na embaixada equatoriana onde Assange viveu por sete anos, e que entregou as gravações aos EUA, obliterando o privilégio de confidencialidade entre cliente e advogados. Eu estive nas audiências do tribunal em Londres e testemunhei a campanha contra Assange, uma farsa Dickensoniana, a perseguição de um homem inocente e heroico – mais reminiscente da Lubyanka [sede da KGB em Moscou] do que da melhor jurisprudência britânica. Ele está sendo usado como uma mensagem – i.e.: se você expuser o que nós fazemos, nós o destruiremos.

    Seja nas enormes fábricas na China, ou nas decadentes ruínas do cinturão enferrujado [indústrias falidas no meio-oeste dos EUA], os trabalhadores lutam com salários de subsistência, sem garantias de emprego, nem sindicatos. Eles são amaldiçoados por acordos de comércio, pela desindustrialização, pela austeridade, pelas crescentes taxas de juros e pelos crescentes preços. Também eles sabem o que é o futuro.

    A decisão de aumentar a taxa de juros (https://www.cnbc.com/2022/06/15/fed-hikes-its-benchmark-interest-rate-by-three-quarters-of-a-point-the-biggest-increase-since-1994.html) em três-quartos de um ponto percentual, com novos aumentos a caminho, deprimirá ainda mais os salários – os quais estão estagnados há décadas, aumentará o desemprego e as dívidas pessoais e tornará os alimentos e outras necessidades básicas mais caras. O aumento da taxa de juros geralmente induz a recessão. Mas os oligarcas estão mais do que dispostos a sugar o sangue da classe trabalhadora. A inflação reduz o retorno dos investimentos. Ela perturba o equilíbrio das estratégias financeiras.

    Os preços não estão aumentando por causa dos salários (https://www.commondreams.org/views/2022/06/15/there-are-better-ways-fight-inflation-attacking-working-people-higher-interest). Eles estão aumentando por causa da falta de suprimentos e da manipulação de preços das corporações e dos conglomerados do petróleo. As corporações estadunidenses publicaram o seu maior crescimento de lucros em décadas ao aumentar os preços durante a pandemia. No ano passado, os lucros corporativos antes de pagar impostos aumentaram em 25%, chegando a US$ 2,81 trilhões – segundo o 'Bureau of Economic Analysis' [Escritório de Análise Econômica dos EUA] (https://www.bea.gov/sites/default/files/2022-03/gdp4q21_3rd.pdf). Este é o maior aumento anual desde 1976, segundo o 'Federal Reserve' [FED - o equivalente a um banco central dos EUA] (https://fred.stlouisfed.org/series/BOGZ1FU096060035Q#0). Quando se incluem os impostos, o lucro corporativo do ano passado aumentou em 37% - mais do que em qualquer outro período desde que o FED começou a monitorar os lucros em 1948 (https://fred.stlouisfed.org/series/CP).

    Leis antimonopólios e o desmembramento dos monopólios facilitariam a pressão da inflação (https://prospect.org/economy/antitrust-should-be-used-to-fight-inflation/) e reduziriam os preços. O racionamento romperia com a inflação. Da mesma forma, um congelamento da relação salários-preços o faria. A nacionalização, reverter as privatizações feitas pelas corporações dos serviços de utilidade pública, do sistema de serviços de saúde, do sistema bancário e outros serviços, também atenuaria o aumento de preços. Mas a classe bilionária não está disposta a impor medidas que diminuam os seus lucros. Eles manterão os seus monopólios. Eles manterão o controle daquilo que uma vez eram ativos públicos. A mensagem da classe bilionária é esta: a economia funciona para o nosso benefício, não o de vocês [outros].

    Os ucranianos, que enfrentam uma guerra de atrito, com a infusão de bilhões de dólares de armas vindas dos EUA e da Europa, sabem qual é o futuro. A guerra é o principal negócio do estado. Ela enriquece a indústria de armamentos. Ela expande o orçamento militar [dos EUA]. Os EUA agora enviam US$ 130 milhões por dia (https://www.wsj.com/articles/with-billions-going-to-ukraine-officials-warn-of-potential-for-fraud-waste-11655121601) em ajuda e assistência militar à Ucrânia – parte dos US$ 55 bilhões em ajuda prometidos por Washington.

    Lutando com o colapso social e uma economia doente, os EUA veem as suas forças militares como o único mecanismo restante para destruir competidores globais, especialmente a Rússia e a China. A Rússia, encurralada por uma OTAN em expansão na Europa Central e Oriental, e a China, assediada por uma sucessão de porta-aviões no Mar do Sul da China – os quais Washington chamou de “interesse nacional” (https://www.crisisgroup.org/asia/north-east-asia/china/315-competing-visions-international-order-south-china-sea) – se uniram enquanto adversários dos EUA. A encenação militar agressiva dos EUA nas fronteiras da China e da Rússia provocou uma guerra fria desnecessária – uma que muitos tomadores de decisões em Washington desinteressadamente esperam que possa evoluir para uma guerra quente entre nações com armas nucleares que potencialmente obliteraria a vida no planeta.

    Há uma contenda por controle que se intensifica, com a invasão da Ucrânia pela Rússia e a construção de bases aéreas da China nos litorais da Austráia e do Japão – o que lhe dá [à China] a possibilidade de atacar navios de guerra, incluindo porta-aviões, no Pacífico ocidental. A recusa dos EUA de se acomodar a um mundo multipolar e de afugentar a quimera da hegemonia global sem rival tem visto a Rússia e a China solidificarem uma aliança – uma aliança que os favoráveis à guerra fria trabalharam duro para evitar. As hostilidades, uma profecia autorrealizável dos militaristas estadunidenses delicia o 'establishment' de Washington (https://chrishedges.substack.com/p/the-pimps-of-war), cuja meta é perpetuar a guerra infindável.

    Você sabe que tem problemas quando Henry Kissinger (https://www.nytimes.com/2022/05/25/world/europe/henry-kissinger-ukraine-russia-davos.html) – que conclamou a Ucrânia a ceder território para a Rússia e abrir negociações com Moscou “nos próximos dois meses, antes que se criem agitações e tensões que não poderão ser facilmente superadas” - é uma voz da sanidade.

    Governos despóticos necessitam ter um inimigo para justificar a repressão a dissidentes, para a redução e cancelamento de programas sociais e para ter um controle de ferro sobre as informações. As guerras justificam o injustificável – lugares secretos, sequestros, tortura, assassinatos mirados, censura e detenções arbitrárias – crimes de guerra que estão fora dos manuais. A guerra induz um estado de paranoia e medo perpétuos. Ela requer a obediência em massa.

    “O propósito da guerra não é vencer, é de ser contínua”, escreve George Orwell no seu livro 1984(https://www.powells.com/book/1984-9780451524935). “A sociedade hierárquica só é possível tendo como base a pobreza e a ignorância. Esta nova versão é o passado, e jamais poderia ter existido um passado diferente deste. Em princípio, o esforço de guerra sempre é planejado para manter a sociedade à beira da fome. A guerra é conduzida pelo grupo dominante contra os seus próprios sujeitos e o seu objeto não é a vitória, seja contra a Eurásia ou a Ásia Oriental, senão que manter intacta a própria estrutura da sociedade.”

    A mensagem das guerras infindáveis (https://apnews.com/article/russia-ukraine-boris-johnson-kyiv-nato-054bce8206809df75269cb9060324c36) é a seguinte: se você desafia a classe dominante, os militaristas e o governo, você é um traidor.

    As 140 milhões de pessoas no mundo todo que sofrem de fome aguda (https://www.un.org/press/en/2022/sc14894.doc.htm) – um resultado da pandemia, da crise climática e da guerra na Ucrânia – sabem qual é o futuro, junto com as famílias das 15 milhões de pessoas que morreram com a pandemia (https://www.nature.com/articles/d41586-022-01245-6) e as centenas de milhares que teriam sido salvas com uma prevenção apropriada e com cuidados médicos (https://thehill.com/policy/healthcare/3459664-quarter-of-us-covid-19-deaths-could-have-been-prevented-by-vaccination-analysis/). Os refugiados que fogem de estados falidos e desastres climáticos – poderá haver 1,2 bilhões de refugiados climáticos até 2050 (https://www.zurich.com/en/media/magazine/2022/there-could-be-1-2-billion-climate-refugees-by-2050-here-s-what-you-need-to-know) – no sul global sabem qual é o futuro.

    A mensagem transmitida aos pobres, aos vulneráveis, aos doentes e aos fracos é a seguinte: as suas vidas e as vidas dos seus filhos não importam.

    Os oligarcas no Partido Democrata e a ala do 'establishment' do Partido Republicano percebem que estão politicamente encrencados. Será devido à interferência russa? Será devido a Donald Trump e os seus servos protofascistas? Será causado por jornalistas e 'publishers' como Assange, que dão um nome ruim a eles? Será uma falha no envio de mensagens? Será devido à uma censura rigorosa da extrema direita e dos críticos esquerdistas?

    Agora unido com o 'establishment' do Partido Republicano, o Partido Democrata está agitando-se para encontrar uma solução. Eles estão financiando candidatos da extrema direita nas eleições primárias dos Republicanos – uma tática que saiu pela culatra para Hillary Clinton, quando a campanha dela trabalhou nas primárias para promover Donald Trump como candidato presidencial republicano (https://www.salon.com/2016/11/09/the-hillary-clinton-campaign-intentionally-created-donald-trump-with-its-pied-piper-strategy/). Republicanos retrógrados – membros de facto do Partido Democrata porque eles votaram pelo impeachment de Donald Trump – estão sendo idolatrados como verdadeiros patriotas, como se eles pudessem seduzir as pessoas para longe de Trump e dos clones tipo-Trump. Junto com outros lideres democratas (https://robertreich.substack.com/p/liz-cheney-for-president?), Robert Reich argumenta que a Representante [deputada federal] Cheney – que votou à favor das políticas de Trump 93% do tempo (https://twitter.com/davidgura/status/1460458959295373313) como membra da Câmara Federal, porém agora parece estar prestes a perder a sua candidatura para a reeleição no estado de Wyoming - “demonstrou mais coragem e integridade do que qualquer outro político nos EUA” e “pode ser a melhor presidenta durante os tempos perigosos que estamos adentrando. Num artigo na revista The Atlantic intitulado “Mike Pence is an American Hero” [“Mike Pence é um Herói Estadunidense”] (https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/06/january-6-hearings-mike-pence-service-democracy/661224/), Jonathan V. Last escreve que Pence “fez mais para proteger a democracia – em 6 de janeiro [de 2021 e desde então – do que qualquer outra pessoa dentro do governo Trump.”

    Talvez a esperada decisão de Suprema Corte que revogará o processo de Roe versus Wade [aprovando a legalização federal do aborto nos EUA] trabalhará à favor deles. Talvez as audiências televisadas sobre o ataque de 06.01.2021 ao Capitólio [Congresso Federal dos EUA] (https://chrishedges.substack.com/p/society-of-spectacle), que é um comercial prolongado de televisão, convencerá os eleitores a apoiá-los. Talvez a promessa de leis mais rigorosas sobre armas (https://chrishedges.substack.com/p/americas-gun-fetish) excitará o eleitorado.

    O que podemos esperar de uma liderança partidária que acreditou que Michael Bloomberg (https://abc7ny.com/mayor-michael-bloomberg-former-of-new-york-city-mike-democrat/4453276/) - que trocou de fidelidade entre os democratas e os republicanos diversas vezes – os salvaria de progressistas como Bernie Sanders? O que podemos esperar de uma liderança partidária que ungiu Joe Biden como presidente – alguém que passou a sua carreira política a desapropriar homens e mulheres da classe trabalhadora, construindo o maior sistema prisional do mundo (https://www.washingtonpost.com/politics/2021/01/11/biden-mass-incarceration/), militarizando a polícia (https://www.themarshallproject.org/2022/03/30/biden-struck-out-on-police-reform-is-trump-s-remaining-policy-enough), destruindo o sistema de seguridade social e financiando os fiascos militares no Oriente Médio?

    O governo Biden é definido por expectativas falidas, desde o seu bloqueado [pelo Congresso dos EUA] plano 'Build Back Better' (Reconstruir Melhor) até a recusa em aumentar o salário mínimo (https://www.littler.com/publication-press/publication/decreasing-prospects-increasing-federal-minimum-wage-15). Ele está se movendo sem combustível, usando truques, retórica vazia, espetáculos (https://chrishedges.substack.com/p/society-of-spectacle) e medo para intimidar o eleitorado.

    A queda é patética de se ver, reminiscente do momento em que o ditador romeno Nicolae Ceausescu tentou desesperadamente aplacar a multidão rebelde da varanda do Comitê Central do Partido Comunista da Romênia, oferecendo o aumento das aposentadorias e salários-família em US$ 2 por mês. Ele e a sua esposa foram executados quatro dias depois. O desacreditado Partido Comunista da Alemanha Oriental – o qual, como a revolução romena, eu também cobri como repórter, fez gestos parecidos, prometendo abrir o a sua sede fechada do partido ao público quando as pessoas já não se importavam com isso.

    A classe bilionária (https://chrishedges.substack.com/p/how-to-defeat-the-billionaire-class), ou pelo menos muitos deles, prefeririam saquear e pilhar sob a cobertura do velho decoro político e da retórica. Eles gostam da ficção de prestar homenagem à uma democracia castrada. Isso lhes dá um verniz de respeitabilidade.

    Mas isso não ficará assim. A fúria dos traídos é articulada pelos demagogos imbecis vomitados do pântano social e político. As corporações e a classe bilionária continuarão a explorar, porém sob um autoritarismo cada vez mais brutal. O colapso social, político, econômico e ambiental se acelerará. A realidade, cada vez mais intragável, deixará de existir no discurso público. Ela será substituída por cultos milenaristas – como os fascistas cristãos – e teorias bizarras de conspiração, um retiro no pensamento mágico no qual o mal é corporificado em indivíduos e grupos demonizados que devem ser erradicados. Verdades e mentiras serão indistinguíveis. Os vulneráveis serão jogados fora, culpabilizados pelas suas próprias misérias, bem como a nossa. Aqueles que resistirem serão criminosos. A morte em massa varrerá o planeta. Este é o mundo que os nossos filhos herdarão, a não ser que aqueles que nos controlam sejam arrancados do poder.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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