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    Miguel Paiva

    Miguel Paiva é chargista e jornalista, criador de vários personagens e hoje faz parte do coletivo Jornalistas Pela Democracia

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    O último confinado

    "A Covid acabou sendo controlada, mas José foi esquecido. Ninguém imaginava que ali, naquela casa isolada do mundo, uma espécie de ilha deserta num mar de pasto e vegetação houvesse alguém", escreve o cartunista Miguel Paiva

    (Foto: Miguel Paiva)

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    Por Miguel Paiva, para o Jornalistas pela Democracia 

    Morreu hoje aos 90 anos, José da Silva, conhecido como o último cidadão brasileiro a manter isolamento total contra o Coronavírus desde 2020, quando se isolou no interior do Estado de São Paulo. José passou 30 anos sem contato algum com a civilização. Vivia recluso, se alimentando do que plantava e se recusando a abandonar a quarentena, mesmo depois de anunciado o controle da pandemia com as várias vacinas que surgiram e que José não ficou sabendo.  

    Mantinha a decisão de se proteger se isolando do resto do mundo. E conseguiu. José morreu dormindo de falência múltipla dos órgãos e com um sorriso nos lábios. Foi achado primeiro por seu cão e depois por um vizinho alertado pelos latidos do cão.

    Desde o recrudescimento da pandemia no ano de 2020 que José decidiu se isolar. Era viúvo, sua mulher tinha morrido de Covid e não tinha filhos. Foi fácil no início tomar essa decisão de sobrevivência. Teimoso e rigoroso cumpriu à risca o que havia decidido. Só sairia dali o dia que aquela guerra tivesse terminado. Demorou ainda muito tempo e muita gente morreu. José também não ficou sabendo. Seu isolamento o mantinha vivo, mas desinformado. Imaginava que a noticia chegaria até ele quando virasse verdade.

    Depois de morto descobriu-se como ele vivia. Se alimentava naturalmente com produtos que plantava. Não comia carne nem derivados do leite. Escreveu suas memórias pelas paredes da casa. Desde 2020 foram duas salas, dois quartos e um banheiro de paredes escritas. Não ouvia rádio, não tinha internet nem televisão. Se orientava pelo sol como ele mesmo descreveu numa das paredes e acordava com as galinhas.  

    Algumas vezes pessoas tentaram fazer contato com ele. Ele se recusou. Eram instaladores de fibra ótica, entregadores de delivery e pastores evangélicos. A palavra de deus para ele eram os seus pensamentos escreveu no banheiro. Aquilo bastava. José por suas próprias palavras escreveu que era feliz e aguardava firmemente o fim da pandemia para poder voltar a tomar uma cachacinha no bar do vilarejo. A cachacinha ficou fechada e José se contentou com a água fresca que tirava do poço sob a mangueira frondosa do alto do morro. Era como beber o elixir da vida. Ao longe, às vezes, escutava um carro passar. Os ruídos foram mudando nesses anos todos e ele imaginava que as pessoas dirigindo também mudassem.

    José tinha muitas tarefas que ocupavam o seu dia e tinha muito, também, o que escrever nas paredes. No dia que morreu tinha reproduzido na sala de jantar uma frase que ouvia na sua infância no interior. O bom cabrito não berra. Era uma frase cruel, mas representava muito bem a vida que decidiu viver depois que sua mulher morreu.

    A Covid acabou sendo controlada, mas José foi esquecido. Ninguém imaginava que ali, naquela casa isolada do mundo, uma espécie de ilha deserta num mar de pasto e vegetação houvesse alguém.

    José foi enterrado à sombra da mangueira ao lado de sua mulher que ele mesmo se encarregou de sepultar. Assim como uma guerra muda as pessoas o mundo mudou muito com a pandemia nesses 30 anos. José talvez não tivesse resistido, mas ele foi fiel ao que havia decidido e à memória de sua mulher vítima da doença.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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