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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Os BRICS opinam sobre a Palestina

"Hoje, a parceria Rússia-China, os BRICS e a Maioria Global foram mobilizados para sacramentar a Palestina como um Estado soberano", diz Pepe Escobar

Da esq. para a dir.: presidentes Lula, Xi Jinping, Cyril Ramaphosa, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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Algo de extraordinária magnitude aconteceu em Moscou no dia 23 de maio. O Rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa, em pessoa, pediu que o Presidente russo Vladimir Putin auxiliasse na organização de uma conferência de paz sobre a Palestina, para qual a Rússia seria a primeira nação não-árabe a ser convidada.

Al-Khalifa e Putin tiveram duas rodadas de discussões – uma delas fechada – nas quais o principal foco foi a Palestina. O monarca bahreinita observou que, em uma rara demonstração de unidade, o mundo árabe havia finalmente se juntado em um acordo para pôr fim à guerra em Gaza. Ficou implícito que a Rússia, subsequentemente, seria escolhida como o mediador mais confiável para estancar de vez esse conflito tão brutal.

Bahrein – e a Liga Árabe – reconheceram que a posição russa se centra no que Putin havia anteriormente definido como "a fórmula da ONU": um Estado palestino independente com capital em Jerusalém Oriental.

Essa é também a posição dos países dos BRICS-10 e de praticamente toda a Maioria Global. É fato da maior importância que essa seja também a posição comum à China e ao mundo árabe, reafirmada em Pequim apenas uma semana após a reunião Rússia-Bahrein.

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O problema consiste em como implementar a "fórmula", quando o Hegêmona, aliado incondicional de Israel, exerce um sufocante domínio sobre as Nações Unidas.

Já em 2020, enquanto Tel Aviv anunciava abertamente a inevitável anexação da Cisjordânia, os Acordos de Abraão esmagavam um forte tabu árabe ao apoiar abertamente Israel, por meio da normalização dos acordos assinados em Washington DC pelo Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Sudão.

Há nove meses, a Palestina foi virtualmente isolada e condenada à extinção por meio das políticas adotadas na surdina por Israel, visando a forçar a gradual expulsão do povo palestino. Mas nunca subestimem o poder de um genocídio cometido em plena luz do dia e registrado em vídeo. Hoje, a parceria estratégica Rússia-China, os BRICS e a Maioria Global foram mobilizados para sacramentar a Palestina como um Estado soberano – seguindo fielmente a maioria esmagadora recentemente alcançada na Assembleia Geral da ONU, na votação sobre aceitar a Palestina como membro das Nações Unidas.

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Será um caminho longo, serpenteante e espinhoso, que tem o potencial de dividir o mundo em dois.

Lavrov explica tudo

O Fórum de São Petersburgo, na semana passada, mandou três mensagens de importância crucial à Maioria Global, todas elas focadas nos BRICS. O ponto central das sessões pode ter sido a geoeconomia, mas uma agora inevitável mensagem de apoio à Palestina se infiltrou nos bastidores. Após um painel que ostensivamente debatia a oferta e demanda de petróleo e gás, mas tocou no corretíssimo papel do Iêmen no Mar Vermelho dirigido contra o genocídio de Gaza, o apoio à Palestina, em meio a sorrisos amigáveis (mas extraoficiais) foi enfático por parte de todos - do secretário-geral da OPEC Haitham al-Ghais ao Ministro da Energia dos Emirados Árabes Suhail Mohamed al-Mazrouei. O mesmo ocorreu em um painel Rússia-Omã , partindo do Ministro do Comércio Qais bin Mohammed bin Moosa al-Yousef. No início da semana, a tragédia palestina foi tratada em grande detalhe – nos pontos 34 e 35 – da declaração conjunta dos chanceleres dos BRICS 10, que pela primeira vez se sentaram à mesma mesa em Nizhny Novgorod, para preparar a importantíssima cúpula anual dos BRICS a ter lugar em Kazan, em outubro próximo, sob a presidência russa. Três pontos da maior importância foram colocados:

Primeiramente, os chanceleres "reafirmaram seu repúdio a qualquer tentativa de deslocar, expulsar ou transferir à força o povo palestino de suas terras". Em segundo lugar, eles, coletivamente, "expressaram séria preocupação com o continuado e ostensivo desrespeito de Israel ao direito internacional, à Carta das Nações Unidas, às resoluções da ONU e às ordens de tribunais". E, em terceiro lugar, os dez chanceleres:

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"Reafirmaram seu apoio à aceitação da Palestina como membro pleno das Nações Unidas e reiteraram seu inabalável compromisso com a visão da solução de dois Estados com base no direito internacional, inclusive as resoluções relevantes do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU, e a Iniciativa Árabe de Paz, que inclui a criação de um Estado da Palestina soberano, independente e viável, conforme as fronteiras internacionalmente reconhecidas em junho de 1967, tendo Jerusalém Oriental como capital e coexistindo lado a lado e de forma pacífica com Israel".

Isso é o BRICS falando a uma só voz – incluindo, o que é da máxima importância, representantes de grandes países de maioria muçulmana: Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito.

O Chanceler russo Sergey Lavrov, em uma sessão expandida dos BRICS, definida como BRICS+/BRICS Outreach, acrescentou um contexto de grande importância."Tivemos reuniões intrapalestinas em Moscou, que vêm ocorrendo repetidamente. A última delas foi realizada em fins de fevereiro e inícios de março deste ano, onde todas as facções palestinas, Hamas e Fatah inclusive, estavam presentes. Pela primeira vez, um evento dessa natureza terminou com a adoção de uma resolução conjunta na qual todos, o Hamas inclusive, expressaram sua disposição a unir todas as frentes palestinas com base na plataforma da Organização de Libertação Palestina. Em tempos anteriores, seria impossível alcançar esse resultado".

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Lavrov explicou por que, para a Rússia, é de importância essencial a restauração da unidade palestina:

"Apenas uma Palestina unida pode ser parceira em negociações visando a alcançar o máximo dos resultados desejados. Enquanto os palestinos estiverem divididos, é pouco provável que isso venha a ocorrer. Agora, sem a participação de palestinos, eles começam a pensar sobre o que fazer com a Faixa de Gaza em um futuro próximo: criar uma espécie de protetorado dos países árabes, levar algum tipo de força de paz, ou declarar artificialmente que ela será governada pela Autoridade Nacional Palestina. Todas essas iniciativas são impostas por atores externos".

O que nos leva ao cerne da posição russa: "O principal componente de nossa política externa nessa área será o apoio aos movimentos de criação de um Estado palestino em plena conformidade com as resoluções da ONU".

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Como responder "simetricamente"

Tudo o que foi dito acima resume a cuidadosamente calibrada posição oficial da Rússia. Moscou abomina a interminável e irracional escalada de Israel enquanto abundam propostas de cessar-fogo. Ao mesmo tempo, a Rússia recusa-se a tomar partido – quer com o Hamas quer com o Ansarallah do Iêmen. Esse é um consenso frequentemente expresso por diplomatas e analistas russos: a Rússia não se envolverá em uma guerra situada a milhares quilômetros de distância quando está combatendo a ameaça existencial vinda dos Estados Unidos/OTAN logo ali em sua fronteira ocidental.

Após as respostas de Putin na rodada de perguntas e respostas que se seguiu a sua fala à sessão plenária de São Petersburgo, debates acalorados trataram do tipo de respostas "simétricas" a serem empregadas pelo Ministério da Defesa russo para contra-atacar a luz verde dada pela OTAN aos ataques com mísseis de longo alcance dentro da Federação Russa.

O Oeste Asiático, como seria previsível, aparece no cenário favorito: armas de ataque avançado empregadas na Síria, descritas como as "armas sírias", para espelhar o subterfúgio das "armas ucranianas" usado pelo Ocidente. Elas viriam a suplementar as armas já empregadas nas bases russas de Khmeimim e Tartus – cobrindo todo o Leste do Mediterrâneo, Líbano, Israel e bases estadunidenses no Jordão, na Síria ocupada e no Iraque ocupado – que seriam operadas por pessoal russo, da mesma forma que pessoal dos Estados Unidos e da OTAN operam as armas "ucranianas".

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Um espinho para os BRICS

Agora chegamos ao espinho no buquê dos BRICS – a Arábia Saudita. Uma Casa Branca e um Departamento de Estado totalmente desnorteados parecem ter encontrado a fórmula para afastar Riad de seu novo papel como um ator de grande força nos BRICS: um tratado de defesa histórico, denominado de Acordo de Aliança Estratégica, que espera a formalização das relações e Riad com Tel Aviv.

O Acordo de Aliança Estratégica precisaria dos votos de uma maioria de dois terços no Senado dos Estados Unidos. Mesmo assim, insistir em "normalização com Israel" poderá matar o acordo, uma vez que o Príncipe Herdeiro Mohammad bin Salman (MbS) agora tem opções a serem cuidadosamente examinadas, tratando não apenas da tragédia de Gaza mas também de suas novas alianças nos BRICS.

A posição oficial de Riad sobre a Palestina está vinculada aos BRICS, ao fim da guerra/genocídio em Gaza e à criação de um Estado palestino. E cada grão de areia das terras do Islã tem pleno conhecimento de que Tel Aviv é governada por um bando de extremistas etnocêntricos que não aceitarão uma solução de dois Estados.

Além do mais, uma aliança militar saudi-americana é totalmente incompatível com a possibilidade de Riad vir a se tornar um membro influente dos BRICS. Jogadas de xadrez vêm, ao contrário, apontando para, mais cedo ou mais tarde, uma possível aliança militar da Maioria Global para contrabalançar a guerra Estados Unidos/OTAN – híbrida ou não – que só faz escalar contra o surgimento de um mundo multipolar multinodal, policêntrico e, na terminologia de Putin São Petersburgo, "harmônico".

Acrescente-se a isso a expiração, em inícios desta semana, do acordo saudi-americano assinado há cinquenta anos sobre a criação do petrodólar, em troca, essencialmente, da proteção militar dos Estados Unidos.

Já no ano passado, Riad deixou claro que o acordo não seria renovado, ao fechar o acordo com a China baseado no comércio de energia usando o petroyuan.

De modo que, em tese, estamos avançando rumo ao fim do petrodólar, o que se associa à expansão do yuan. O Banco Central saudita é agora um "participante pleno" do Projeto mBridge, que une o Nó de Inovação BIS, o Banco Central da Tailândia, o Banco Central da UEA, o Banco Popular da China e a Autoridade Monetária de Hong Kong. Em essência, o mBridge é uma plataforma de moeda digital (CBDC) associada a múltiplos Bancos Centrais e compartilhada entre esses Bancos Centrais e bancos comerciais, permitindo pagamentos e amortizações transfronteiras instantâneos. A Tailândia, por exemplo, vem comprando petróleo da UEA usando o mBridge.

Há nada menos que 26 observadores do mBridge – um grupo bem heterogêneo, incluindo o Banco Asiático de Investimentos liderado pela China, o Banco Central Europeu, o FMI e o Banco Mundial.

Agora que a Arábia Saudita se filia ao mBridge, a Aramco saudita – após abrir seu capital a investidores estrangeiros com uma imensa IPO – acaba de ceder 0,64% adicionais de seu capital, sendo que 60% dos compradores são estadunidenses. A Aramco é uma imensa fonte de dividendos para seus acionistas: no presente ano, essas quantia irá totalizar estarrecedores US$ 141 bilhões.

Adivinhem quem são os três maiores investidores: os Três Grandes – Vanguard, BlackRock e State Street – todos eles agora nadando em petróleo saudita.

Árabes, CENTCOM e Israel: na cama juntos?

E agora, o último fator complicador.

Na segunda-feira, oficiais militares de Bahrein, Egito, Arábia Saudita, União dos Emirados Árabes e Jordânia – o que inclui três membros dos BRICS e o Bahrein simpático à Rússia – encontraram-se com Herzi Halevi, o Chefe do Estado Maior das Forças de Defesa de Israel para discutir … cooperação em assuntos de defesa.

A reunião foi facilitada por ninguém menos que o CENTCOM dos Estados Unidos. Embora realizada de forma extremamente discreta, a reunião, mesmo assim, vazou, dada a justaposição do genocídio de Gaza com uma reunião dos principais líderes árabes sentados à mesa com os maiores inimigos dos árabes.

Um epígono pós-moderno dos cínicos habitando uma ágora na Grécia Antiga diria que com "amigos" árabes do CENTCOM como esses – três deles membros dos BRICS – a Palestina não precisa de inimigos.

Enquanto isso, a tragédia persiste em muitos níveis. Enquanto estudantes secundaristas chineses por todo o estado-civilização mostram seu apoio à Palestina após prestar seus exames vestibulares para ingresso nas universidades, o eixo Estados Unidos-Israel homogeneíza o terrorismo, ligado ao debacle do Projeto Ucrânia e associado à incessante matança de palestinos.

Tudo está sendo sugado pelo buraco negro do terrorismo – com a OTAN abertamente rearmando o Batalhão Azov neonazista e Kiev atacando civis em Belgorod com drones e espalhando minas terrestres pelos parques onde brincam crianças.

Todos os componentes da Legião Estrangeira do Terror alimentada pelo Hegêmona vêm se juntando, em passo sincronizado ao de Israel, que, essencialmente, é o ISIS equipado com armas nucleares. Mas apesar de todas as suas ideias elevadas e sua crença sagrada nas Nações Unidas, os BRICS, até agora, não conseguiram formular uma estratégia sólida e pragmática de combate ao horror.

Tradução de Patricia Zimbres

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