Os conselhos tutelares e a omissão nossa de cada dia
Uma política ditatorial produziu atrocidades inimagináveis e incalculáveis com os direitos das crianças e adolescentes
Vamos falar sobre compromisso com as crianças e adolescentes? Você sabia que em 1º de Outubro teremos eleições nacionais para eleger os Conselheiros Tutelares em todas as cidades do Brasil? Se não sabe, você precisa ler isso. E se prepare para se decepcionar. Os candidatos já estão escolhidos e provavelmente você não faz a menor ideia de quem sejam!
O debate sobre a situação dos direitos das crianças e adolescentes passa, necessariamente, por aquilo que aprendemos com o frei dominicano Zé Fernandes, a chamar de ter uma fé política.
Ao fim da ditadura militar, com o advento da constituição de 1988 a situação das crianças e adolescentes brasileiras eram deploráveis. Os militares deixaram um rastro de desleixo, desamor e destruição de todos os conceitos rudimentares sobre o significado governamental de direitos de crianças e adolescentes.
O conceito cívico-militar de educação não é uma inovação proposta pelo bolsonarismo. O que o bolsonarismo propõe é uma consequência deste conceito, haja vista, o que ocorre neste momento no Estado de São Paulo. Isso vem de uma deturpação do sentido pedagógico e coletivo do ato de educar e respeitar. Provavelmente os psicanalistas terão melhores condições de explicar essa dimensão da necessidade que os militares e a extrema direita têm de exercer poder sobre os mais frágeis.
Mas o fato concreto é que esta política ditatorial produziu atrocidades inimagináveis e incalculáveis com os direitos das crianças e adolescentes. O famigerado conceito de juizado de menores vem imbuído de todo esse arcabouço demoníaco de subjugamento e poder.
Não é sem razão que foi aprovado o artigo 227 da Constituição federal que diz em seu caput:
CAPÍTULO VII
DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Para que a sociedade e seus representantes sentissem a necessidade de inserir, em artigo constitucional um parágrafo como este, algo de muito grave aconteceu contra estas crianças e adolescentes. E a partir deste ponto se iniciaram mobilizações para combater situações comuns e cotidianas ao estado brasileiro, que levavam esse público a serem vítimas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Entidades como a Febem no Estado de São Paulo e suas congêneres Brasil afora eram verdadeiros campos de concentração de adolescentes, fato este pouco estudado em nosso país. Deveríamos pensar em fazer uma comissão da verdade sobre as atrocidades praticadas pelo estado brasileiro contra nossas crianças e adolescentes neste período.
Diante desse quadro, a igreja católica em particular e organismos de defesa das crianças e adolescentes como um todo, oriundos das realidades advindas dos orfanatos, internatos, casas de correição e entre outras, que promoviam ações que destruíram e separaram a vida de milhares de famílias, teve como reação as ações das pastorais da criança que naquela época, formava gente para pensar e a profética pastoral do menor, que pegava estas pessoas formadas e lutavam pelos direitos destas crianças e adolescentes e que se mobilizaram em todo o território nacional para a construção do ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente.
É muito importante lembrar que em 1987 a Campanha da Fraternidade daquele ano, tratava do tema QUEM ACOLHE O MENOR, A MINHA ACOLHE.(Mateus 18,5). Foi essa Campanha da Fraternidade a grande responsável pela criação e pelo pensamento sobre o que temos hoje de direitos humanos para crianças e adolescentes e suas famílias. Aos que se intitulam conservadores da fé, sugiro que se leiam o texto base desta campanha da fraternidade. Talvez consigam compreender o porquê falamos sobre a Igreja da Libertação.
Penso que a discussão sobre a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente tenha sido uma das maiores mobilizações sociais de toda a história do Brasil de uma proposta de projeto de lei. Não havia comunidade, paróquia e Diocese que não estivesse envolvida nesse debate.
Como resultado dessa reflexão nacional surgiu o ECA. Uma das leis mais avançadas do planeta no que se refere à defesa e na prática da proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
Durante os anos 90, após a aprovação da Constituição Cidadã se estruturou um dos maiores e mais importantes organismos na garantia da execução destes direitos que foram chamados CONSELHOS TUTELARES.
A ideia era criar um organismo não jurisdicional - ou seja, não ligado nem submetido ao estado, nem a organização civil de nenhuma natureza – fato este não compreendido e até hoje não aceito por promotores, juízes, prefeitos e vereadores - Estes conselhos eram compostos por 5 membros titulares e 5 suplentes. O início deste trabalho foi outro ato de grande heroísmo por parte de milhares de agentes de pastoral espalhados por todo o Brasil. Era uma luta que fazia inveja para Hércules e Davi juntos.
A reação contra os conselhos tutelares vinha de todas as ordens. Políticos, organismos policiais, juízes, entidades que se diziam filantrópicas, que massacravam estas crianças e adolescentes e da própria sociedade. Até hoje, os Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, se arvoram em ser os detentores do controle dos Conselhos Tutelares. Não são! Ninguém é.
Os conselheiros tutelares, são protetores dos Direitos das Crianças e do Adolescente e sua ferramenta de trabalho é o Estatuto da Criança e do Adolescente e por consequência legal e por força da lei, somente a este estatuto estão jurisdicionados e submetidos. Por outro lado, conselheiros tutelares não são polícia de criança e adolescente. Conselheiro Tutelar existe para substituir os agentes do juizado de menores. Conselheiro Tutelar, não retira criança de mãe, nem de pai, apenas garante a proteção contra abusos de qualquer familiar ou de agressor dentro ou fora do seio familiar.
Os conselheiros Tutelares tiveram que enfrentar, no Poder Judiciário os famigerados juizados dos menores com seus poderosos agentes do juizado de menores. Para que se registre, o papel do Ministério Público foi essencial para garantir a instalação e o cumprimento da nova lei. Juízes encastelados em suas togas contaminadas pela visão cívico-militar dos antigos ditadores, foram um dos maiores empecilhos a serem transpostos. Mas como diz o poeta, canalhas também envelhecem e se aposentam.
E aqui, que também se registre os muitos juízes que foram essenciais para que os Conselhos Tutelares se tornassem uma realidade. Mas passava um longe de ser a maioria. Os conselhos tutelares só se solidificaram graças a ação da sociedade civil organizada e de muita pressão para que uma vez instalados, tivessem condições de operacionalidade.
Pode-se dizer então que este foi um dos capítulos mais bonitos das lutas por direitos onde vencemos e podemos nos orgulhar profundamente disso. Mas a Extrema direita resiste e insiste de vez em quando a colocar seus tentáculos de morte para fora.
Em algum momento os movimentos sociais, organismos de defesa da Criança e do Adolescente e principalmente a igreja católica, foram se afastando deste tema. Essa ação concreta de afastamento nasce de uma visão deturpada de um conservadorismo egoísta que afastou a Igreja Católica de um dos primeiros mandamentos de Jesus para que deixassem que as crianças fossem à Ele, pois o Reino que Jesus prega, é primeiramente das crianças e sem o coração de uma delas, não se consegue o passaporte para entrar neste Reino.
Na política existe uma regra que diz que não existe vácuo no poder. A regra se aplica de forma plena aos conselhos tutelares. O vácuo deixado pelos movimentos populares, partidos progressistas e pastorais sociais abriu uma fenda que foi aos poucos sendo ocupada por um retrocesso inimaginável por quem tanto lutou para a instalação dos conselhos tutelares.
O fato concreto é que o setor religioso raivoso e de extrema direita, de maioria evangélica e parte católica, ocupou em todo o Brasil este território, e o que era da luta pelos direitos das crianças e adolescentes passou a implantar um modelo eleitoral que nada tinha a ver com a perspectiva da defesa das crianças e dos adolescentes e muito mais a ver com cabos eleitorais remunerados pelo poder público que ocupação este espaço para fazer trampolim eleitoral para suas convicções religiosas. Pior ainda, é fazer do espaço do Conselho Tutelar uma extensão de sua religiosidade deturpada como imposição.
É hora de reagir, denunciar e reocupar este espaço que deve ser devolvido o seu lugar original. Os conselhos tutelares precisam ter novamente conselheiros e conselheiros tutelares que defendam nossas crianças e adolescentes, conforme determinado pela Constituição e ECA. Mas não podem fazer isso de forma isolada, nem por boa vontade. Isso é essencial, mas não é o suficiente. É necessário investir em formação com gente séria e comprometida com a causa, é necessário encontrar pessoas vocacionadas para servir às crianças e adolescentes e não gente que seja contrário ao ECA e que quer apenas arrumar emprego e virar cabo eleitoral de políticos de extrema direita e pastores.
Essa é a tarefa neste momento histórico. Devolver os conselhos tutelares para as crianças e adolescentes e retirá-los dos vendilhões dos templos. Não dá mais para fingir que não estamos vendo essa situação deplorável de uso religioso dos Conselhos Tutelares e não nos organizarmos para fazermos com que a luta pelos direitos das crianças de hoje serão a garantia dos nossos direitos amanhã.
É necessária uma mobilização séria por parte da militância política e o incentivo dos movimentos populares e, no caso, das mulheres e homens que são nutridos em sua pratica cotidiana pelo Evangelho, como fundamento e compromisso com o que tem de mais caro e claro na fé libertadora. A grande verdade é que a imensa maioria de nós não prestou atenção neste momento.
Se não sabemos quem são os candidatos e candidatas as eleições de conselheiros e conselheiras tutelares nossa cidade, é porque não nos envolvemos na escolha deles. Então é hora de começarmos a fazer essa tarefa imediatamente e começar a mobilizar para elegê-los.
Ao mesmo tempo, é nossa tarefa, retomar o debate sobre a questão dos direitos das crianças e adolescentes como base fundamental de nossa militância e começarmos a preparar pessoas para que nas próximas eleições de conselheiros tutelares, estejamos mobilizados com o mesmo espírito que fez criar as condições para aprovar o ECA, que está sendo deturpado e para que as crianças e adolescentes de hoje, amanhã não olhem para nós e digam: vocês sabiam e não fizeram nada para nos salvar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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