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    Agassiz Almeida Filho

    Agassiz Almeida Filho é professor de Direito Constitucional na UEPB, autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional (2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)

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    Os garimpeiros de Bolsonaro e a conquista do espaço vital

    Protesto do povo Yanomami contra garimpo em suas terras (Foto: Victor Moryama/ISA)

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    Em 05 de setembro de 2021, o sitedo governo federal publicou um artigo do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. No texto, intitulado “E Viva a Nossa Amazônia!”, Mourão faz uma clara defesa da visão militar acerca da floresta. Ele afirma que “os projetos de assentamento e colonização agrícola da Amazônia foram deixados à própria sorte”, ressaltando, ainda, que “a Amazônia Brasileira não é o jardim zoológico do mundo, mas sim um local habitado que busca encontrar o desenvolvimento sustentável.” 

    A tese da colonização da Amazônia como necessidade geoestratégica não é nova. Reflete a ideia de que é preciso colonizar a região para assegurar a soberania do país. O objetivo aparente dos militares é combater o vazio demográfico. Como afirma a pesquisadora Adriana Marques, esse vazio se refere à inexistência “de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região.” Segundo tal perspectiva, a ocupação da Amazônia pelos povos imaginários é um equívoco que favorece a usurpação da soberania nacional. Os militares brasileiros se inspiraram no pensamento geopolítico que antecedeu e influenciou a Segunda Guerra Mundial.  

    As teorias geopolíticas ocupavam lugar de destaque no final do século XIX. Na Alemanha, sobretudo por causa dos projetos expansionistas e coloniais, destacava-se o papel do território como fator necessário para o desenvolvimento econômico e a identidade nacional. A conquista do espaço físico era uma das bases da expansão política. Daí surge a teoria do espaço vital (Lebensraum), alicerce da Geopolítica a partir da Primeira Guerra Mundial. Do modo como foi concebido por Friedrich Ratzel, em 1897, o espaço vital era o ambiente geográfico onde cada povo vivia e criava raízes espirituais. 

    Halford Mackinder, em 25 de janeiro de 1904, proferiu uma conferência na Real Sociedade Geográfica de Londres: “O Pivô Geográfico da História”. Mackinder era professor da Universidade de Oxford e um dos fundadores da London School of Economics. Sua conferência ampliava o alcance da Geopolítica, analisando as relações entre os Estados a nível global. As relações internacionais eram entendidas através de uma ótica espacial e competitiva: a luta pelos espaços geográficos típica do imperialismo. Assim era compreendida a Geopolítica pelos militares e políticos europeus naquele momento. 

    Em 1916, o cientista político sueco, Rudolf Kjellén, escreve “O Estado Como Forma de Vida”. No livro, que aprimora pesquisas anteriores sobre o mesmo tema, Kjellén assume a ideia de que o Estado era um organismo vivo em constante expansão, aplicando o darwinismo social e a prevalência dos mais aptos à relação entre os Estados. O objeto da obra era a conexão do espaço geográfico com a organização política nos planos nacional e internacional. O livro de Kjellén foi publicado na Alemanha com prefácio de Karl Haushofer.  

    A teoria do espaço vital e a compreensão do Estado como organismo em expansão influenciaram o pensamento geopolítico do general Karl Haushofer. À frente da Geopolitik, ele prepara o terreno para a expansão imperialista da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Na linha do pensamento nacionalista centro-europeu, Haushofer desenvolve a noção de espaço vital de modo a compatibilizá-la com a ideologia nazista. 

    A imposição da cultura e da raça é o fundamento para um espaço vital capaz de assegurar a sobrevivência e a segurança de um povo. Trata-se de uma concepção que abriu as portas para o pangermanismo e a submissão total dos países mais fracos. E para que se impôs essa perspectiva sobre o assunto? “Para que ali se edifique – escreve Haushofer, em 1927 –, por terceira e definitiva vez, a nova construção do Estado alemão, para que nasça, sobre o ‘território étnico e a área cultural’, o Terceiro Reich!”

    Essa forma de compreender o espaço vital e a Geopolítica foi superada após a Segunda Guerra Mundial. A expansão territorial voltada para a ocupação violenta do espaço geográfico por um Estado, em razão da sua herança cultural e formação étnica, através da imposição de uma identidade nacional que excluía os demais povos, tornou-se incompatível com a cultura da paz, as tendências de integração política e a globalização como um todo. A Geopolitiknacional-socialista, contudo, sobreviveu. 

    Heriberto Cairo, professor da Universidade Complutense de Madri, ressalta que “só na América Latina – sobretudo no discurso vinculado de forma mais estreita com os estamentos militares dos diversos países, cuja presença e impacto político é maior (Brasil, Argentina e Chile) – produziram-se ‘surtos’ tardios destas teorias, em particular durante a época das ditaduras militares dos anos 1960 e 1970.” A sobrevivência da Geopolitik na América Latina é um traço do autoritarismo e do caráter reacionário da ideologia cultivada pelos quartéis. 

    As colocações do general Hamilton Mourão sobre a colonização e os assentamos na Amazônia refletem a perspectiva dos militares brasileiros, fundada na Geopolítica nazista e no culto da superioridade racial e cultural que ela promovia. Adriana Marques ressalta, a título de exemplo, que “a percepção de que os povos indígenas que vivem na Amazônia podem ser cooptados por estrangeiros é uma constante no discurso militar.” A exclusão do elemento indígena do processo de colonização mencionado por Mourão é uma conclusão inevitável. Numa inversão inaceitável, o indivíduo não indígena aparece como representante do segmento étnico e cultural que pode proteger a soberania brasileira.

    O ponto de vista dos militares brasileiros enfrenta três obstáculos centrais. Primeiramente, não é possível considerar os povos indígenas como seres humanos de segunda categoria. Os direitos à igualdade e à dignidade da pessoa o impedem. Além disso, a pretensão de povoar a Amazônia, ampliando a fronteira agrícola, enfrenta evidentes barreiras ambientais, já que a Constituição e os tratados internacionais consideram o povoamento da região como uma medida secundária e excepcional. Finalmente, as reservas indígenas aparecem como espaços de preservação ambiental onde essa ocupação não é juridicamente possível. 

    Os garimpeiros de Bolsonaro constituem uma categoria social, política e econômica própria: o fora-da-lei oficial. Esse status foi alcançado pelo esforço direto e indireto do governo federal para que os garimpos ilegais fossem tolerados na Amazônia em geral e dentro das reservas indígenas. No dia 7 de dezembro de 2021, o governo apresentou uma proposta junto ao Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para considerar os garimpeiros como integrantes desses povos tradicionais. 

    O próprio presidente da República, em 26 de outubro de 2021, visitou um garimpo ilegal na reserva Raposa Serra do Sol. Referindo-se ao projeto de lei n. 121/2020, que tramita na Câmara dos Deputados, Bolsonaro dirigiu-se aos garimpeiros nos seguintes termos: “se vocês quiserem plantar, vão plantar. Se vão garimpar, vão garimpar. Se quiserem fazer algumas barragens no vale do rio Cotingo, vão poder fazer.” O discurso e a atuação do governo federal em relação aos garimpeiros refletem a doutrina do espaço vital da Geopolitik nacional-socialista. 

    Para Bolsonaro, Mourão e os militares brasileiros é necessário expandir a colonização na Amazônia e substituir os povos originários. Essa forma de pensar está na linha de frente da violência contra as populações indígenas, ampliando a fronteira que invade as áreas demarcadas e prepara uma pretendida colonização da região. Nesse contexto, a função dos garimpeiros é aprofundar os conflitos com as comunidades indígenas, atuando como criminosos (autorizados informalmente) do Estado e promovendo uma ocupação do território proibida por lei. 

    A nova conquista da Amazônia segue o caminho tradicional. Mais uma vez, o Estado brasileiro atua como catalizador de uma exploração que discrimina e mata. Trata-se de um reflexo da negação do Estado Democrático de Direito que se implantou no país após 2016. Más de lo mismo. Os garimpeiros de Bolsonaro e sua cruzada pelo espaço vital são como o próprio bolsonarismo: uma projeção da irracionalidade que exalta a violência, o descumprimento das leis e o esmagamento das minorias. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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