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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    Os líderes dos EUA são um perigo para o mundo

    O Coronel aposentado do exército Andrew Bacevich discute o seu novo livro sobre a visão de mundo regressiva e perigosa da classe política e militar dos EUA

    Lloyd Austin (Foto: Reuters)

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    Entrevista de Chris Hedges com o Coronel Andrew Bacevich, originalmente publicada em vídeo e transcrita no www.therealnews.com e no website do autor. Transcrição traduzida e adaptada por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

    Vídeo da entrevista (em inglês): 

    Transcrição autorizada da entrevista

    Chris Hedges: Nos meses de julho a setembro de 1940, o historiador francês e futuro combatente da Resistência Marc Bloch – que lutou na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais – escreveu um curto livro intitulado L’Etrange Défaite, ou Strange Defeat (em inglês), ou A Estranha Derrota (em português). Este livro foi uma abrasadora condenação do alto comando e da classe política da França, a qual foi responsável pela humilhante derrota e pela desintegração do exército francês com a invasão nazista da França. Bloch, que entrou na clandestinidade para lutar contra os ocupantes nazistas, foi executado pela Gestapo em 1944. Andrew Bacevich é um coronel aposentado do exército dos EUA e Professor Emérito de História e Relações Internacionais na Boston University. Ele também é cofundador e presidente do Quincy Institute for Responsible Statecraft [Instituto Quincy para uma Política Responsável]

    No seu livro, Bloch escreveu “A nossa guerra, até o seu final, foi uma guerra de homens velhos ou de teóricos atolados em erros gerados pelo ensino defeituoso da História. Ele estava saturado pelo cheiro da decadência...”

    O livro de Bloch, que foi publicado após a guerra, foi o modelo para o livro After the Apocalypse [Após o Apocalipse, ainda não disponível em português] do historiador Andrew Bacevich. Bacevich não é menos severo com a classe política e militar que levou os EUA a um fiasco após o outro desde o Vietname - uma guerra na qual ele serviu como um jovem oficial. Ele argumenta que eles estão lamentavelmente fora de contato com a realidade e são incapazes de se adaptar a um mundo em mudanças. A não ser que eles sejam tirados do poder, o ocaso do império estadunidense será preenchido por uma catástrofe após a outra. Andrew Bacevich comparece ao The Chris Hedges Report para discutir o seu livro After the Apocalypse.

    Pois então, como alguém que escreve sobre polêmicas, eu amo o seu livro. Logo no início, você fala sobre os quatro cavaleiros do apocalipse: o rancor, a pestilência, a carência e o furor – os quais compõem o nosso próprio apocalipse feito em casa. Explique isso, dê corpo a isso.

    Andrew Bacevich: Bem, eu escrevi isto nos estágios iniciais da pandemia do Coronavírus – o que era, por si mesmo, um evento perturbador. Não só perturbador pela destruição que esta causou na sociedade estadunidense, mas também, obviamente, pela inaptidão com a qual as autoridades governamentais responderam. Porém, ao mesmo tempo, a evidência que a crise climática estava se tornando impossível ignorar. E, ao mesmo tempo, muitos fatores, mas basicamente a pandemia, estavam criando enormes danos na economia – com milhões de estadunidenses perdendo os seus empregos e ficando incapacitados de se sustentarem. O meu foco nos últimos 20 anos tem sido sobre as falhas na política de segurança nacional dos EUA; me parecia que estes e outros eventos, ao ocorrerem em adição ao nosso recorde militar abismal, mostraram que alguma coisa estava fundamentalmente errada no nosso país, bem como o que nós imaginávamos que somos e o que somos na realidade. Então, foi neste espírito que eu escrevi o livro.

    Chris Hedges: Bem no início do livro, você fala sobre Madeleine Albright e esta é uma citação que ela mencionou no Today Show [popular show de TV nos WUA]: “Se nós tivermos que usar a força, é porque nós somos os EUA; nós somos a nação indispensável. Nós somos firmes e vemos mais longe no futuro do que outros países”. E depois, você escreve: “Quatro dias após a fala de Albright, a Frente Islâmica Mundial [World Islamic Front] proclamou uma ‘Jihad Contra os Judeus e os Cruzados’ – de autoria de Osama bin Laden, então um obscuro militante islâmico; o documento identificava a expulsão das forças militares dos EUA da Península Arábica como um imperativo moral que exigia o apoio dos muçulmanos do mundo inteiro. Isto acenou para o futuro real, ao qual Albright e outros membros do ‘establishment’ de política exterior permaneceriam firmemente desatentos até o colapso do World Trade Center [torres-gêmeas em NY] num monte de fumaça, destroços e poeira”.

    Eu quero falar sobre aquela desconexão, porque este é um tema constante no livro – que eu penso que constitui uma autoilusão da parte da elite militar e política [dos EUA] e quão desconectada esta é da verdadeira realidade que eles estão enfrentando.

    Andrew Bacevich: Talvez eu esteja sendo um pouco injusto em destacar a Madeleine Albright para abordar no livro, mas eu efetivamente penso que ela corporificou – e aquela infame citação específica a corporifica – uma mentalidade que permeia o ‘establishment’ político e na verdade vai além do ‘establishment’ político, abrangendo os círculos intelectuais e as mídias. Qual é a essência desta visão? A essência desta visão é que somos nós [os EUA] que definimos o futuro, que nós somos chamados a modelar o futuro. E, obviamente e inevitavelmente, a modelá-lo segundo à nossa própria imagem.

    Quando eu o declaro tão audaciosamente, isto soa absurdo. Quando eu o declaro desta maneira, penso que nenhuma figura significativa da nossa vida pública dirá que ‘sim, é isto que eu acredito’. Porém, apesar das negações deles, isto é o que as nossas elites creem e a sua leitura particular da História afirma a visão deles que nós somos uma nação indispensável. E que, quando nós usamos a força, isto se deve necessariamente a uma causa justa. Assim sendo, eles permanecem cegos às falhas que levam a tanto sofrimento, catástrofes e oportunidades perdidas – as quais, na minha leitura, se tornaram particularmente comuns nos últimos 20 ou 25 anos.

    Chris Hedges: Como você indica no livro, este é um uso muito seletivo da História, porque, para perpetuar aquela ideia, você tem que passar uma pá de cal, ou deve essencialmente apagar enormes partes da História dos EUA.

    Andrew Bacevich: Você tem toda a razão. Aqui há um paradoxo, ou uma contradição, que eu penso ser difícil de separar. Por um lado, atualmente certamente é o caso que a História estadunidense, como é escrita por historiadores profissionais e estudada em nossas faculdades e universidades, é feita de verrugas e de crônicas. Nada é escondido, nada está fora dos limites. No entanto, por outro lado, aquela História, as verrugas e toda a história, parece figurar apenas marginalmente, se tanto, na nossa política. Nós preferimos muito mais a versão higienizada, a versão heroica, a versão que eu penso centrar-se, mais do que em qualquer outra coisa, na maneira como nós escolhemos lembrar-nos da Segunda Guerra Mundial e a maneira como nós escolhemos lembrar-nos do papel que os EUA desempenharam na Segunda Guerra Mundial. Eu o enuncio desta maneira, porque a maneira que nós escolhemos nos lembrar está radicalmente em desacordo com aquilo que na verdade ocorreu.Chris Hedges: Você nota no livro esta justaposição entre estados como o Texas, que está removendo textos e relatos históricos que desafiam aquele tipo de narrativa mítica. Porém, eu penso que você também está perturbado por coisas como o Projeto 1619 [sobre o início da escravidão de africanos sequestrados nos EUA] feito pelo The New York Times Magazine. Você pode falar sobre esta justaposição, estes dois extremos polares?

    Andrew Bacevich: Eu tenho um viés a favor do revisionismo histórico. Penso que o revisionismo histórico é inevitável. Penso que ele é essencial. Penso que a história que nós necessitamos é uma história que reflita a nossa perspectiva, a perspectiva de viver nas primeiras décadas do século XXI. Neste sentido, inscrevi-me para apoiar o Projeto 1619. Mas ocorre que eu penso que a interpretação que o Projeto 1619 apresenta é profundamente falho e, por isso, não é especialmente útil – de modo que é um revisionismo de tipo equivocado. Neste sentido, penso que, na verdade, ele é uma oportunidade perdida. 

    Chris Hedges: Explique isso – o revisionismo de tipo equivocado. O que você quer dizer com isso?

    Andrew Bacevich: Eis aqui a minha interpretação do Projeto 1619; vou explicá-la, concedendo que possa não ser aquilo que os criadores deste projeto, os que realizaram este projeto, aquilo que eles mesmos querem dizer com o que eles conseguiram realizar. Mas eu considero que a História Estadunidense se centra na questão da raça, que a história dos EUA se centra no racismo. Nem por um segundo eu desejaria marginalizar a importância da raça na nossa estória. Porém, eu penso que colocá-la no centro das coisas – e de excluir implicitamente outros aspectos da nossa fundação e da nossa existência social – penso que vai longe demais e, por isso, não é útil.

    Eu creio que a minha crítica – se pudermos chamá-la assim – está condicionada às minhas próprias preocupações contemporâneas. Particularmente, porque eu passei a acreditar, penso eu, que, desde o fim da Guerra Fria, não existe uma definição operacional do bem comum a qual nós, estadunidenses, assumimos. E eu penso que esta ausência, em muitos aspectos, está na raiz da razão pela qual a nossa democracia se deteriorou tanto. Quero dizer que, ao final de contas, a não ser que recobremos alguma compreensão compartilhada sobre o bem comum, então a democracia estadunidense pode estar efetivamente condenada. Não estou prevendo isso, só estou temendo isso.

    Chris Hedges: A fim de ser justo com os desprivilegiados – que não foram só os afro-americanos, mas também os americanos nativos, as mulheres, os homens sem propriedades – o bem comum, como foi concebido no início da nação, não se aplicava a eles.

    Andrew Bacevich: Eu concordo com você. O meu argumento não é que devamos reverter a história tradicional destes caras brancos que se juntaram na independência de 1776 e declararam que todos os homens são criados iguais. Eu penso que isso é complicado. Faz-se necessário reconhecer as complicações. Não é útil eliminar um conjunto de distorções e depois assumir um outro conjunto de distorções.

    Chris Hedges: Faremos um outro programa sobre isso. Eu quero lhe perguntar algo – eu pensei que você levantou pontos importantes neste livro, porém, para mim, um destes que foi especialmente interessante foi como você escreve que a presidência de Trump significou a morte final daquilo que você chama de “a Nova Ordem”. E você fala sobre a louca direita conspirativa como aqueles que assumem a heresia que aterrorizou as elites do ‘establishment’, os Bidens, os Clintons, os Bushes e todos os outros. Você pode explicar isto?

    Andrew Bacevich: Eu penso em termos mais simples, em primeiro lugar, esta é uma heresia dos EUA. Isto volta mais uma vez à Segunda Guerra Mundial, mais especificamente às origens do envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o grande debate ocorreu ao longo de um período de um par de anos antes do bombardeio japonês a Pearl Harbor. Aquele debate se centrou sobre se os EUA deveriam intervir, ou não, na guerra europeia – especificamente à favor do Reino Unido, o qual, após a queda da França à qual aludimos antes, estava sozinha contra o Terceiro Reich de Hitler.

    Aquele debate ocorreu em um momento fundamental da história dos EUA e ressoou por décadas após isso. E a interpretação predominante entre historiadores, dentre a maior parte do ‘establishment’ político – houve alguns indivíduos na direita e na esquerda que dissentiram, porém certamente o consenso era que o campo intervencionista estava certo e o campo anti-intervencionista, os da ‘America-first’, estavam profundamente errados.

    E esta controvérsia foi a base do internacionalismo estadunidense pós-guerra que formou a pedra angular do racional para a política dos EUA durante a Guerra Fria e, por extensão, proveu o racional para a criação do estado de segurança nacional, para o padrão de intervencionismo que se tornou uma parte tão importante da política externa dos EUA nos anos de 1950, 1960 e assim por adiante.

    E Donald Trump concorre à presidência e diz que é tudo uma mentira – que isto está tudo errado, que a base da política estadunidense deveria ser ‘America First’ [Primeiro os EUA]. Aos olhos do ‘establishment’, isto é uma profunda heresia, é a negação da verdade da intervenção dos EUA na Segunda Guerra Mundial e do padrão da chamada liderança global que continuou além disso. Portanto, identificar-se com os anti-intervencionistas do período pré-Segunda Guerra Mundial era simplesmente um pecado mortal imperdoável. E eu penso que isso explica, pelo menos em parte, pela resposta selvagem do ‘establishment’ à candidatura de Trump. Permita-me conceder rapidamente que ele era um mentiroso, uma fraude, um canalha corrupto e nunca deveria ter sido eleito presidente. Não há dúvidas sobre isso. Porém eu penso que, em muitos aspectos, isso foi a sua crença – a sua crença declarada, mas quem sabe o que ele realmente pensou – a sua crença declarada numa ‘America First’ que o colocou acima dos limites de respeitabilidade pelo ’establishment’ político estadunidense.

    Chris Hedges: Ele [Trump] também denunciou pelo que eram os desastres que foram perpetrados em nome da segurança nacional desde o Vietname até o Oriente Médio e em muitos lugares. E depois, como você cita no livro, ele foi entrevistado em algum momento sobre Putin e o entrevistador diz que Putin era um assassino. O tempo diz que há muitos assassinos e que nós [os EUA] não somos tão inocentes. Então, isso foi além até do ‘America First’. Penso que isso foi uma menção da verdade da ladainha de desastres que foram perpetrados há décadas em nome da segurança nacional.  

    Andrew Bacevich: Sim. E insistindo, da sua maneira semi-incoerente, que estas falhas merecem ser tomadas com seriedade. O que eu quero dizer com isso é que eu não penso que alguém – seja Madeleine Albright ou qualquer outra figura significativa no ‘establishment’ estadunidense – dirá que os EUA, já que se tornaram a única superpotência, não tenham culpa. Há algumas pessoas que dirão que a guerra no Vietname foi uma causa justa e que foi conduzida competentemente.

    Então, os membros do ‘establishment’ dirão que há certas coisas que não se concretizaram como nós esperávamos, porém eles continuarão. Estes enganos, falhas e erros de julgamento, na verdade não importam. O que importa é a missão histórica que nós temos, à medida que nós, os Estados Unidos, temos como nação – a missão histórica que nós fomos chamados a cumprir. E, mesmo que nem tudo tenha ido bem, nós devemos continuar a cumprir esta missão. Este é o nosso chamado. Na verdade, esta é a pedra angular do excepcionalismo estadunidense. E, neste sentido, a crítica não importa.

    Eu quero voltar à questão de 1619 muito rapidamente. Efetivamente, eu acredito que dentro de 10 anos – não que o Projeto 1619 será esquecido, ou que os seus esforços terão sido em vão – não obstante, a minha conjectura é que a narrativa patriótica terá sido restaurada e que os eventos de julho de 1776 na Pensilvânia conduzirão novamente a narrativa. Eu não digo isso porque eu quero que isto ocorra. Eu só penso que o desejo de nos vermos como excepcionais, como únicos, como se sejamos chamados pela providência a desempenhar uma missão especial, eu penso que isso é algo impregnado nos nossos seres. E, tristemente, é provável que isto persista.

    Chris Hedges: Porque esta é uma forma de auto-adulação. 

    Andrew Bacevich: Certamente é.

    Chris Hedges: E isso dispensa qualquer pensamento crítico. Há tanta coisa no livro. Eu tenho que tocar no tema Huntington, devido ao que eu tive que viver como correspondente estrangeiro, e você acertou no alvo. Você disse que este é o choque de civilizações: “O Professor Huntington publicou um ensaio que os futuros estudiosos provavelmente classificarão dentre os textos básicos que assinalam a iminente morte da primazia estadunidense”. Você disse que “Isto lançou um feitiço pernicioso e subscreveu o abandono da razão”. Enquanto alguém que passou sete anos no Oriente Médio, eu sei que isto está totalmente correto, porém, essencialmente, isto dá um verniz ideológico nisso. Eu posso me lembrar de diplomatas ficando quase tontos por isso. Fale um pouco sobre isso. 

    Andrew Bacevich: Eu penso que o ponto mais amplo é que as pessoas ostensivamente sofisticadas, homens e mulheres do mundo, são notavelmente absorvidas pela mais recente moda intelectual. E eu penso que você tem razão. Quando ele publicou – Você lembra do argumento que surgiu inicialmente como um ensaio na revista Foreign Affairs, que foi subsequentemente expandido em um livro, mas foi o ensaio na Foreign Affairs que eu penso que capturou a atenção da comunidade política e pareceu prover uma resposta à pergunta: agora que a Guerra Fria acabou, como poderemos compreender a composição do mundo? Huntington deu uma resposta. Eu ofenderei os meus amigos das ciências políticas ao dizer que foi porque ele era um cientista político, que foi uma resposta excessivamente super-simplificada, porém foi superficialmente satisfatória e disse às elites políticas estadunidenses aquilo que elas queriam ouvir. E isso nos permitiu começar a nos preparar para o próximo conjunto de desafios.

    Chris Hedges: Esta era uma visão de cartum sobre o mundo, especialmente do Oriente Médio. Os Basra durante conflitos dentro do Oriente Médio eram internos. Eu cobri os curdos e os Xiitas. Eu estava fisicamente em Basra durante o levante xiita. Para aqueles de nós que estávamos em campo no Oriente Médio, aquilo foi incrivelmente ridículo. E você tem razão, mas isto foi assumido.

    Andrew Bacevich: Permita-me inverter o tema para você. Do ponto de vista de um correspondente estrangeiro, isso quer dizer que, tendo uma perspectiva de campo, porque você pensa que este argumento tenha tido um impacto tão poderoso?

    Chris Hedges: Essencialmente porque, quero dizer, isto volta a Marx. Foi uma ideologia que justificou o aventureirismo militar, o capitalismo corporativo e a exploração; e não foi efetivamente muito diferente do livro The White Man’s Burden [O Fardo do Homem Branco], em essência. E foi tão simplista e tão estúpido quanto isso. Essencialmente, eu penso que a maioria das pessoas pensam em clichês, e isto foi muito rico em clichês; e aqueles clichês justificaram aquilo que os poderosos queriam fazer. Eu penso que foi por isso.

    Andrew Bacevich: Isso me parece correto. E a Guerra Fria, o enquadramento da Guerra Fria, dependia de clichês, dependia de emburrecer realidades complexas e de emburrecê-las tendo um propósito específico em mente: encorajar o uso do poder dos EUA, congregar o poder estadunidense. Você está falando sobre o Oriente Médio, enquanto falamos. Eu estou pensando mais sobre o Vietname e os argumentos construídos para justificar a massiva intervenção militar dos EUA num país que não era um país de verdade, que tinha um interesse mínimo para os EUA, e onde nós perdemos 58 mil estadunidenses e matamos uns dois milhões de pessoas e depois fomos embora. Isso é suficiente para fazer você chorar, mesmo muitos anos depois.

    Chris Hedges: Você diz: “Considere o Ocidente, o equivalente contemporâneo do Sagrado Império Romano que os estadunidenses da minha geração uma vez encontraram nos cursos de história do ensino médio. Muito depois que os eventos se drenaram de conteúdo, a carcaça do Sagrado Império Romano perdura, mesmo se – nas palavras de Voltaire – ele não era ‘nem sagrado, nem romano, nem um império’. O mesmo pode ser dito sobre o Ocidente”. Você está falando sobre uma edificação, quase uma aldeia Potemkin, na qual nada existe por trás das muralhas. E aí que nós estamos? 

    Andrew Bacevich: Eu tendo a pensar que sim, mas reconheçamos que, quando eu escrevi aquelas palavras, eu certamente não previ que haveria uma guerra na Ucrânia em 2022. Aquela guerra está em andamento enquanto nós conversamos aqui. E pareceria, pelo menos para efeitos imediatos, que aquela guerra deu ao Ocidente – mais especificamente à OTAN – uma nova vida. Eu penso que há algo de uma fraude sendo perpetrada aqui.

    Alguns pontos sobre a Ucrânia. Primeiro, não há dúvida que este é um ato de agressão criminosa arquitetado por Vladimir Putin. Não se pode desculpar isso. Segundo, é inteiramente apropriado que outras nações incluam os EUA para proverem meios à Ucrânia, para capacitar a Ucrânia, os ucranianos, para se defenderem. Porém, o terceiro ponto é que esta guerra era evitável. Houve oportunidades para se fazer um acordo diplomático que proveria garantias de segurança para a Rússia e também poderia potencialmente capacitar a Ucrânia a manter a sua independência sem esta horrível confrontação que ainda está se desenrolando. 

    Agora, esta confrontação criou este grito de guerra no Ocidente. Os alemães concordando que precisam gastar mais dinheiro nas suas forças militares. Nações como a Suécia e a Finlândia pedindo para entrar na OTAN. Assim sendo, eu penso que temos a aparência de um rejuvenescimento do Ocidente, provocado pela invasão da Ucrânia pela Rússia. A minha aposta é que, quando esta guerra terminar – e ela terminará – aquele rejuvenescimento desaparecerá rapidamente. E quando isso ocorrer, então eu penso que nós, os Estados Unidos, poderemos começar a retornar à questão daquilo que define a ordem mundial na qual nós devemos ter um papel, da qual nós devemos ser participantes. 

    E eu penso que a resposta será que esta noção de um Ocidente, de uma civilização ocidental, proverá a base para unificar os países ocidentais em algum tipo de bloco que representa o liberalismo, os valores exaltados. Penso que descobriremos que aquilo já estava se erodindo e jamais voltará a existir. Então, o que eu argumento no livro é que é absurdo dizer que nós fazemos parte do Ocidente. Se nós reconhecermos a extensão na qual os EUA se tornaram uma nação multicultural, na qual o nosso povo vem da América Latina, da Ásia e da África, a noção de que nós ainda somos de alguma maneira ligados à chamada Pátria-Mãe, a Inglaterra, a Grã-Bretanha, é realmente absurda. Porém levaremos algum tempo para superarmos isso, penso eu.

    Chris Hedges: Bem, as pessoas devem ler o livro. Você é um grande historiador e um grande escritor; e você faz um trabalho muito bom de derrubar a nossa fascinação com os nobres e as ilusões sobre a Grã-Bretanha.Quero agradecer à Real News Network e à sua equipe de produção: Cameron Granadino, Adam Coley, Dwaynw Gladden e Kavia Rivera.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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