Os retrocessos e a defesa da vida
A defesa da vida como valor supremo não pode ser relativizada, ou tratada como uma questão menor. Não é papel da ideologia político-partidária fragilizar a defesa da vida, pelo contrário, o nosso dever civilizatório o de nos reencontrarmos com uma cultura de paz e com a retomada do crescimento econômico, com inclusão e justiça social e compromisso com a sustentabilidade ambiental
A situação se torna ainda mais dramática quando todo esse espectro obscurantista de ameaça à vida é reforçado e inflamado, cotidianamente, pelas principais autoridade e lideranças políticas de um país. As agressões à vida podem se dar no campo simbólico, quando o discurso do ódio e do individualismo semeiam o radicalismo e a intolerância no inconsciente coletivo, ou no âmbito político e social, por meio do desmonte políticas públicas e do arcabouço legal de proteção da vida e de garantia dos direitos individuais e coletivos.
A sociedade brasileira, apesar de toda riqueza e beleza de nossa diversidade, é hoje, uma das mais violentas e desiguais do mundo. Nestes últimos anos, cerca de 60 mil brasileiros e brasileiras são vítimas de homicídios, em nosso país, e temos a terceira maior população carcerária do planeta, com mais 725 mil pessoas presas.
Entretanto, desde a pactuação social em torno da Constituição Cidadã de 1988, após o fim da ditadura militar, que perseguiu, matou e que torturou pessoas, nossa sociedade optou pela construção da democracia plena e de um estado de bem-estar social, laico e generoso com todos e com todas. Por isso, o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade foram assegurados como fundamentais e invioláveis pelos constituintes.
Foram esses, entre outros, os preceitos responsáveis pela opção brasileira por um Sistema Único de Saúde gratuito e universal, por um regime de previdência e de seguridade social solidário entre as gerações, na liberdade de manifestação, do pensamento e de imprensa e na educação como direito de todos e um dever do Estado. Com efeito, esse mesmo pacto social é fiador do amplo direito de defesa, do contraditório, da presunção da inocência e da obrigatoriedade do trâmite em julgado, valores humanitários que também estão expressos no Pacto de San José da Costa Rica.
Diante disso, é preciso uma profunda reflexão sobre o peso e o valor da vida em recentes iniciativas dos novos governantes. A preservação da vida, dos direitos e das garantias individuais são inegociáveis em toda e qualquer política pública e ações dos governos, em qualquer nível ou esfera de poder.
O “pacote anticrime” do governo federal, por exemplo, erra ao incluir a “violenta emoção” como atenuante de pena para casos de homicídio, ou quando pretende mudar o dispositivo da legítima defesa, com autorização da “morte preventiva” por parte das autoridades policiais. No mesmo sentido, vai o uso de snipers, atiradores de elite, de maneira sigilosa, para matar pessoas, em operações policiais no Rio de Janeiro.
Nos dois casos, o valor da vida humana é relativizado pelo poder público. Não é aceitável, em qualquer hipótese, a execução sumária de seres humanos, ainda mais sem qualquer direito de defesa ou de um julgamento justo, o que é assegurado até mesmo aos réus, em países que adotam a abominável prática da pena de morte como prática. Importante registrar que o número de mortes decorrentes de intervenções policiais está crescendo aceleradamente de 2.212, em 2013, para 5.159, em 2017.
Estimular mais a violência não pode ser a bússola para o estabelecimento de políticas de segurança. Por isso, outro retrocesso seria a liberação do porte de armas para civis, o que é proibido pelo Estatuto do Desarmamento, que teve o cuidado de prever a exceção da liberação do porte de armas para civis nos casos em que haja necessidade comprovada.
Em sintonia com essas concepções que relativizam o valor da vida nas políticas de segurança pública, está a iniciativa do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que pretende baixar os impostos dos cigarros como forma de combater o contrabando desses produtos. É uma mudança em uma política pública, com impacto terrível na proteção da vida das pessoas. É falacioso o argumento de que o barateamento do preço de “cigarros de qualidade” seria uma maneira de oferecer produtos mais seguros para a população de baixa renda, como se os graves danos dos cigarros à saúde humana estivessem condicionados à uma suposta qualidade.
A Convenção-Quadro de Combate ao Tabaco, tratado internacional da ONU do qual o Brasil é signatário, aponta o aumento dos impostos e dos preços dos cigarros como uma das medidas mais efetivas na redução do tabagismo. Os produtos derivados do tabaco ceifam sete milhões de vidas, de forma direta ou indireta, em todo mundo, anualmente. Esses dados por si só já justificariam a manutenção da política brasileira de combate ao tabagismo, que é uma referência de sucesso mundial na saúde pública e que transcendeu governos.
Outra inciativa, que vai na mesma direção de um grave retrocesso, é o novo marco regulatório para agrotóxicos, que retira a competência regulatória do setor saúde e do meio ambiente sobre o tema. O avanço tecnológico e o uso correto dos agrotóxicos são fundamentais e estratégicos para a produção de alimentos no Brasil e no mundo. Mas, em defesa da vida e da saúde dos trabalhadores rurais e dos consumidores, é fundamental que agrotóxicos com características cancerígenas, mutagênicas, que causam malformação no feto, dano ao aparelho reprodutor, desregulação endócrina ou que prejudicam o meio ambiente não entrem e sejam banidos de nossas lavouras. Queremos a saúde da alface, mas também, e acima de tudo, a manutenção da vida saudável dos seres humanos.
Outra dimensão essencial na defesa a vida humana é a preservação do meio ambiente e o imenso desafio de mitigação do aquecimento global e do combate ao desmatamento de nossas florestas, que também passaram a ser vistos como questões ideológicas e menores nos pronunciamentos de destacadas lideranças do novo governo. Os trágicos resultados estão aí, com crescentes desastres naturais e centenas de vítimas fatais. Fica a pergunta: quanto valem as vidas perdidas?
Além disso, há, ainda, os contingenciamentos no Programa Nacional de Imunização, que é diretamente responsável pelo Brasil deixar de ser uma país certificado pela Organização Pan-Americana de Saúde como livre do sarampo. Em várias regiões do país, o estrangulamento dos investimentos em vigilância epidemiológica fez com que os casos de dengue, zika e chikungunya voltassem a explodir, uma triste realidade.
O mais triste é que o Brasil já mostrou que sabe como colocar o valor da vida no centro estratégico das políticas púbicas e do orçamento. Em 2016, quando do surgimento dos casos de zika no país, foram investidos cerca de R$ 28 milhões, acompanhados de um forte empenho do governo federal para campanhas de prevenção, que envolveu escolas, forças armadas, profissionais de saúde e famílias em torno do lema: “o mosquito não é mais forte que uma nação inteira”.
É triste e condenável a escalda da cultura da violência na sociedade brasileira. Precisamos de uma forte resistência democrática, muita vontade política, mobilização social e disposição de todos para recolocar a preservação da vida como prioridade absoluta das nossas políticas públicas. O culto à violência, ao autoritarismo e ao radicalismo não pode ser aceito.
A defesa da vida como valor supremo não pode ser relativizada, ou tratada como uma questão menor. Afinal, não é papel da ideologia político-partidária fragilizar a defesa da vida, pelo contrário, o nosso dever civilizatório o de nos reencontrarmos com uma cultura de paz e com a retomada do crescimento econômico, com inclusão e justiça social e compromisso com a sustentabilidade ambiental.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: