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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Pactos políticos sobre cadáveres?

    Colunista Roberto Bueno avalia que um "novo regime democrático é incompatível com estrutura fundada em pacto político com criminosos responsáveis por mortes contadas na trágica casa dos milhares"

    (Foto: Chico Batata/Divulgação | Marcos Corrêa/PR)

    "Escolha a desonra e terás a guerra"

    Nebulosos são os tempos em que crises franqueiam livre trânsito a oportunistas chamados a bloquear o grande mal a qualquer preço. Mediadores de caráter menor e aliados improváveis dispõem de potencial para potencializar a dimensão destrutiva da crise através de ardilosas alterações de imagem que logo lhes permitam continuar operando. A história mostrou profundos equívocos de avaliação quanto ao potencial pacificador da formalização de pactos com atores (neo)fascistas, como se dispusesse de força para alterar ou mesmo dissuadir a personalidade autoritária de seus propósitos e, assim, estancar a proliferação do mal. A ilusão da pacificação não posterga, mas maximiza o mal. 

    Exemplificativo disto são os sombrios dias que ameaçavam a Europa nos tempos precedentes à deflagração da Segunda Grande Guerra Mundial, quando o mundo estava por conhecer o papel a ser desempenhado por Neville Chamberlain (1869-1940), então Primeiro-Ministro do Reino Unido (maio/1937–maio/1940), que encarnou a aliança de cálculos políticos e econômicos imediatistas inspirados por egoísmo homicida temperado por covardia disfarçada de prudência. O resultado imediato da política externa do Reino Unido para a crítica situação daqueles dias em que a Polônia já havia sido invadida à 01.09.1939 era típica do rumo que a comunidade internacional optou seguir. O preço de não abordar e derrotar o nazi-fascismo em seus primeiros passos seria altíssimo, colocando o próprio Reino Unido sob risco de invasão pelas forças alemãs. 

    O nazi-fascismo contou com a omissão internacional, que lhe concederia tempo e franquearia espaço para expandir o projeto totalitário de Hitler. A resposta das potências da época às sobradas mostras da violência e belicismo alemão foi a assinatura do Tratado de Munique com a Alemanha datado de 29.09.1938, firmado pela Alemanha e Édouard Daladier pela França, além de Benito Mussolini pela Itália e Neville Chamberlain pelo Reino Unido. Todos aparentaram público estímulo pela expectativa (historicamente insustentável) de que o documento seria barreira suficiente para conter o ímpeto de Hitler, realizando concessões sob o horizonte de que estariam a aplacar o apetite de domínio, expansão e morte. O Tratado fazia concessões ao regime nazista sob os reclamos da Lebensraum, e para atendê-lo as partes ajustaram a cessão à Alemanha dos Sudetos, que contavam com aproximados três milhões de germanófonos e um movimento político que defendia a anexação pela Alemanha e, logo, como moeda de troca a assinatura de Hitler no documento “garantia” que o regime alemão já não apresentaria posteriores reivindicações territoriais. A natureza do nazi-fascismo nunca foi compatível com as ingênuas expectativas nutridas pelos signatários ingleses e franceses. 

    Logo após a Europa e o mundo descobririam o gravíssimo e inaceitável preço a pagar: milhões de vidas humanas, poucos meses após a firma do Tratado de Munique em setembro de 1938. No dia 10.03.1939 Hitler não hesitou em ordenar a invasão de todo o território da Tchecoslováquia sem que qualquer reação fosse esboçada pelos signatários franceses e ingleses do recente Tratado de Munique. Estava assim configurado o desrespeito ao Tratado e evidenciado o absoluto desprezo nazi-fascista pela legalidade burguesa. A invasão da Polônia seria o próximo movimento em 01.09. 1939 sem que sequer fosse declarada a guerra, sendo o evento considerado como o início da Segunda Grande Guerra Mundial. Estes movimentos comprovaram a dimensão do equívoco cometido quando Chamberlain foi recepcionado como herói em seu regresso de Munique após a firma do Tratado com a Alemanha, permitindo-se então pronunciar o discurso “peace for our time”. Qual o heroísmo de “heróis” que postergam o inevitável enfrentamento com o fascismo para desfrutar da boa imagem de apaziguador quando há certeza de que o preço a pagar se dará em milhares de vidas humanas? 

    O véu que embala a glória da paz para os dias correntes pode dispor de elasticidade invejável a ponto de conter espaço para a máscara mortuária que recobrirá o rosto de dezenas de milhares ou de milhões no dia de amanhã, quando então a suposta glória receberá a legítima reputação de ignominiosa retração ante a indispensável ação ou, quiçá, covardia. A paz e a guerra podem revelar-se devastadoramente daninhas, e as circunstâncias de sua determinação são a chave para explicar o resultado que se obterá quando seja tomada a decisão por uma ou outra. 

    A má interpretação das circunstâncias históricas e, sobretudo, a debilidade do cálculo realizado sobre o que implica a minimização de danos de toda ordem, pode ser fatal de sorte que aquilo que aparenta ser minimização de danos termina por potencializar males mediatos. No mencionado caso histórico europeu ocorreu nada mais do que a capitulação das nações equipadas de políticas com pretensões democráticas e orientadas do ponto de vista econômico pelo capitalismo e que se viram enfrentadas com o regime nazista, estrutura de poder claramente voltada a concretizar um modelo antidemocrático logo elevado ao ápice do totalitarismo. 

    Em face de seus antecedentes discursivos, dos anúncios e, sobretudo, das práticas adotadas pelo regime de Hitler, deveria ter ficado clara a lição de que não haveria acordo possível com um regime que entronizava a violência aberta como inspiradora para a realização de seus valores, sendo recurso apreciado tanto em matéria de política interna quanto externa. Os regimes totalitários aguçam sentimentos que os tempos normais conduzem a habitar as profundezas obscuras do humano. Nos tempos de triunfo do totalitarismo emergem destes recônditos a persona totalitária disposta ao enfrentamento à morte com as instituições da vida libertária, ameaçadora, e suas ordinárias formas de expressão como a democracia representativa. 

    Corroer as suas instituições, dobrá-las e exterminá-las, juntamente com as suas lideranças e a sua cultura passa a ser o grande ideal que permeia o pensamento totalitário. Políticas de apaziguamento político como as propostas encarnadas por Chamberlain em Munique não têm valia universal nem atemporal. A hesitação das instituições democráticas em propor decididamente o enfrentamento total da persona totalitária encarnada nas suas mais expressivas lideranças e optar por sucessivas práticas dilatórias implica alimentar perigosamente os corvos que, por sua natureza, não costumam respeitar os olhos de ninguém, sequer de seus criadores. A preferência por matizar e adotar políticas conciliatórias não revela prudência, pois seguir tal caminho quando a única possibilidade real de defesa é o enfrentamento aberto equivale a imprudência. Isto informa que a opção pela pactuação pode representar a mais letal dentre as alternativas. 

    A falta de virtude para assumir e enfrentar os riscos presentes não os previne nem sequer minimiza, senão que apenas potencializa o que se anuncia como inexorável mal futuro, especialmente quando o ator com que deparamos é a persona totalitária, e a alta cobrança pode ser apresentada na vida privada dos que apresentem hesitações, tal como ocorreu com o embaixador Joseph Patrick Kennedy – pai de John F. Kennedy – que hesitou até o último momento apoiar o combate a Hitler, e que conheceu de perto a dor pela perda de dois filhos durante a Segunda Grande Guerra Mundial. É bastante conhecida a profética frase de Churchill sobre Chamberlain no concernente ao acordo assinado por este em Munique junto a Hitler: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra”. Logo a história revelaria que as suas reais consequências foram insuficientemente aprendidas. 

    É certo que a história não reapresenta as suas circunstâncias, mas o seu avanço tem atores com psicologia que guarda similaridades e assim as dobras do processo histórico reapresentam dilemas. Quando autoridades e instituições são hoje colocadas frente a difíceis escolhas ao deparar com persona totalitária, até o momento incorrem em idêntico crasso erro de hesitar e postergar enfrentamento. O espaço cronológico disponível para conter a ânsia de aprofundamento do grande mal um dia foi modesto, mas hoje já se concretizou, e do que se trata é nada mais do que contê-lo, evitando que potencialize ainda mais os seus efeitos para além da miséria já causada. 

    Nos dias correntes é vastamente compartilhado o temor pelo retardo na iminente supressão da figura que encarna a persona totalitária, mas sob o desprezo de que seu combate direto deve vir acompanhado de idêntico esforço quanto a cultura que o encorpa e sustenta. A persona resiliente encorpa e exala o belo odor da madrugada, de eros e da vida. A resistência insuflada por eros é bela e duradoura, enquanto tanatos jaz em obscuros espaços. Manolis Glezos, escritor e político grego recentemente falecido, foi notável personalidade que exalou intensamente este notável perfume erótico. 

    Considerado por muitos como herói nacional em face de ter assumido a resistência contra a invasão nazista Glezos posteriormente também enfrentou a ditadura dos coronéis, autoritários militares gestados em território grego. Foi durante os conflagrados dias da ocupação alemã na Segunda Grande Guerra Mundial que Glezos notou ser inevitável questionar a todos sobre o lado em que estavam, ou seja, se vinculados à intervenção das forças ocupantes ou, então, perfilados com as forças da resistência em defesa do país. Não era possível mais do que uma delas, e a mera hesitação ou tergiversar explicaria. Exatamente na desafiadora quadra histórica em que se encontra o Brasil cabe uma vez mais recordar Glezos e repetir o seu questionamento a todos e cada um de nós brasileiros(as) colocados sob a marca opressiva das dezenas de milhares de mortes que as estatísticas oficiais ocultam em sua precisão, mas que já se aproximam das setecentas mil vidas. 

    Neste momento transitamos de período crítico e adentramos no território do extermínio massivo coordenado pela persona totalitária e seus patológicos asseclas com fardas diversas, além de coadjuvantes vários com os quais toda sorte de acordos são impossíveis à luz da experiência histórica encarnada no caso de Chamberlain, ademais dispomos da experiência destes dias que traduzem de forma absolutamente clara que a covardia para o enfrentamento dos patrocinadores do genocídio tão somente aumentará a sua magnitude. Quando cruzamos o portal da superlativa miséria humana, dirijo meu olhar a mim mesmo, e me questiono, como Glezos o fez em seu momento, sobre qual é o lado em que me encontro, mas também sobre qual é o lado em que se encontram todos aqueles que hesitam e postergam a única alternativa que resta quando já foram colocados dezenas de milhares de cadáveres às nossas portas e outros muitos continuam sendo todas as manhãs, com tanta certeza como o sol amanhece a cada dia. A covardia mal disfarçada de prudência é a coveira da humanidade.  

    Enquanto os corpos continuam a ser expostos a cada dia na casa das dezenas de milhares e já sem prurido nem respeito de ocultação pelos genocidas, convém recordar que o fenômeno nazista teve a preocupação de destruir todas as provas possíveis de seus milhões de vítimas, tal como ocorreu com a destruição dos crematórios de Auschwitz. É possível pactuar sobre gélidas dezenas de milhares de cadáveres? Qual a dignidade de um regime que se estabeleça sobre tal acordo? Onde estaria a base de decência de seus atores políticos? Sob qual legitimidade política poderiam apresentar-se aqueles que pactuassem novo regime com criminosos, desconhecendo os seus milhares de cadáveres? 

    É tarefa inadiável para emergente novo regime democrático o enfrentamento de todos que sigam a patrocinar a miséria humana e a morte de dezenas de milhares de indivíduos, ademais da exposição a risco da vida de toda uma população, sendo inviável por definição acordo político com qualquer dos responsáveis por genocídio. Nenhum regime legítimo poderá ser erguido no período pós-ditadura neofascista senão tendo por base a punição de todos os responsáveis pelo genocídio da população. As feridas sequer começarão a cicatrizar antes que as dezenas de milhares de cadáveres recebam justiça assim como todos os criminosos com a devida punição. Apenas este poderá ser o alicerce de novos tempos promissores para a democracia. 

    Em face do citado questionamento de Glezos que a mim repito, concluo que me encontro entre aqueles que, como sugeria o poeta português Guerra Junqueiro no século XIX, oriento o espírito e os rumos para a defesa da ação libertária, e folgo em afirmar – e estou absolutamente certo de que não o faço solitariamente – que “Odeio o rei, porque amo a verdade e a minha Pátria” e, sobretudo, à minha gente. A pátria, a verdade e o povo percorrem via inconciliável com qualquer rei que ofenda e reduza seus súditos à pó, perde a coroa e a nobreza aquele que assesta contra sua gente a lâmina fria da infâmia e da indiferença atroz.  

    A pulsão de vida (eros) contradiz a cada dia o rei em sua inalterável pulsão de morte (tanatos), duelo todavia não resolvido em desfavor da realeza e de seu campo de força através de perigosas esperanças. É improvável qualquer futuro quando o campo progressista projete a realização de pactos impossíveis com atores neofascistas, senão pela poderosa emersão do eros em difícil parto a ser realizado tão somente pela resoluta união da massiva voz coletiva e seu forte e decidido braço popular disposto a concretizar a democracia. O caso brasileiro é ilustrativo. 

    Será insuficiente afastar Bolsonaro se com ele não forem retirados das posições de poder todos os demais militares e, ademais, alguns deles julgados, outros inabilitados para funções públicas, tantos destinados à reserva, e muitos, talvez possam regressar a caserna, prévia avaliação da não configuração de considerável risco de politização. A normalidade constitucional não será reconstruída pela mediação de mero processo eleitoral, ilusão que precisa ser urgentemente superada, pois será exclusivamente na esfera política onde tudo será realmente decidido. Novo regime democrático é incompatível com estrutura fundada em pacto político com criminosos responsáveis por mortes contadas na trágica casa dos milhares, pois cadáveres não podem servir como base para qualquer regime democrático. Evitados os acordos e realizado o julgamento, o novo regime tampouco será duradouro exceto ancorado na disposição da massa da população a dar prova concreta nas ruas de sua disposição para enfrentar a elite em qualquer território. O desafio está posto, o futuro está aberto. Recordando a crítica de Churchill – “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra” –, qual será a nossa escolha, pactos ao estilo de Chamberlain ou a luta, mesmo quando incerto o resultado?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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