Panair do Brasil e as memórias do meu avô. Parte 1
"Meu avô materno, Mário Albuquerque, não era apenas um comunista da velha guarda; ele era jornalista, poeta, compositor, violonista"
Em 1965, a história da aviação brasileira testemunhou o colapso de um de seus maiores ícones. A Panair do Brasil, uma das mais respeitadas companhias aéreas do país, teve suas concessões de voo arbitrariamente cassadas pelo governo da Ditadura Militar. Longe de ser uma questão financeira, como alegado pelas autoridades da época, essa foi uma operação política cuidadosamente orquestrada para eliminar opositores do regime e beneficiar concorrentes mais alinhados com o poder.
Os donos da Panair, Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, foram alvos da repressão por suas ligações com o governo de João Goulart, deposto pelo golpe de 1964. Em uma manobra de bastidores, a Panair teve suas rotas suspensas e transferidas para a Varig, que já estava prontamente posicionada para assumir os voos. Conforme detalhado no livro Pouso Forçado de Daniel Leb Sasaki, a queda da Panair exemplificou a cumplicidade entre os militares e os interesses comerciais, resultando no desmantelamento de uma das maiores companhias aéreas do Brasil.
A Panair era mais do que uma companhia aérea. Era responsável pela construção de aeroportos e rotas que conectaram o Nordeste ao resto do país. Seu fechamento foi não apenas um golpe econômico, mas um ataque à soberania à liberdade de expressão, prejudicando diretamente mais de cinco mil funcionários que ficaram sem emprego do dia para a noite.
Em 2022, a Comissão Nacional de Anistia reconheceu oficialmente que o fechamento da empresa foi motivado por perseguição política, e o governo brasileiro emitiu um pedido formal de desculpas, validando a luta daqueles que há muito buscavam justiça. Esse reconhecimento abre caminho para futuras reivindicações de reparação, que podem finalmente trazer algum alívio às famílias e ex-funcionários prejudicados.
Minha ligação com essa história é profundamente pessoal. Meu avô, Mário Albuquerque, comunista e chefe do setor financeiro da Panair no Ceará, era o responsável por pagar os funcionários. Ele foi demitido em retaliação às suas atividades sindicais e, de uma maneira menos brutal do que os quatro filhos presos e torturados, também se tornou vítima da repressão implacável da ditadura. A casa da minha família era alvo constante das forças de repressão, que invadiam repetidamente, vasculhando cada canto, levando documentos e deixando para trás um ambiente de medo e tensão. Dessas incontáveis incursões, quase nada restou, a não ser uma única foto de meu avô, tirada em 1945 ao lado de colegas, com anotações sobre a Panair no verso. Esses poucos vestígios, guardados com tanto cuidado por décadas, são fragmentos de uma história de resistência e luta que a ditadura tentou apagar, mas que sobrevive nas memórias de nossa família. E essa foto, tão simples e desgastada, carrega um peso imenso para mim e para todos nós.
Meu avô materno, Mário Albuquerque, não era apenas um comunista da velha guarda; ele era jornalista, poeta, compositor, violonista, um homem que acreditava profundamente nos ideais de uma geração humanista como Prestes, Agildo Barata, Gregório Bezerra, Mário Lago, Oscar Niemeyer e Jorge Amado. Depois de anos de sofrimento, suas enfermidades foram agravadas pelas prisões, torturas e pelos desaparecimentos de seus filhos e ele se foi 4 anos antes de eu nascer. Essa foto é uma relíquia, um dos poucos resquícios que restaram, já que a Ditadura Militar sequestrou nosso álbum de família, tentando, em vão, apagar nossas lembranças.
No dia 19 de outubro de 2024, as memórias da Panair e de todos os que foram marcados por sua queda ganharam vida mais uma vez, durante um emocionante encontro da "família Panair" no Rio de Janeiro. Ex-funcionários e familiares se reuniram para lembrar a história dessa companhia e das pessoas que sofreram com seu fechamento. Minha família também estava lá, representada por meu primo Alexandre, filho de uma tia exilada no Canadá, e por meu tio Wilson, o caçula da família, que teve sua infância roubada pelas perseguições implacáveis da ditadura. Foi um momento cheio de significado, mas não sem desafios. Meu tio e meu primo, ainda desconfortáveis com a presença de tantos militares no local, se mantinham discretos, tentando obter informações com abordagens tímidas.Depois de horas sem sucesso, meu tio decidiu fazer algo corajoso: ele usou o microfone para compartilhar a história de nosso avô, contando detalhes sobre sua trajetória e as dificuldades enfrentadas durante a repressão da ditadura. A narrativa emocionou os participantes e essa exposição trouxe resultados: A partir daquele momento, as pessoas começaram a abordá-lo, trazendo novas memórias e histórias que antes não haviam sido reveladas. Foi nesse contexto que alguém mencionou a existência de um arquivo da Panair em Petrópolis. Essa revelação deu início a uma nova linha de investigação e trouxe esperança de que poderíamos encontrar mais informações sobre a vida do velho Mario Albuquerque.
Meu primo Alexandre visitou Petrópolis com a esperança de encontrar vestígios sobre a vida de nosso avô nos arquivos da Panair. Para nossa frustração ele não encontrou nenhum registro específico, mas a visita não foi em vão: durante a jornada meu primo cruzou o caminho de um ex-funcionário da companhia que diz recordar de nosso avô. Esse fio de memória pessoal pode ser uma peça fundamental para preencher as lacunas da nossa história e avançar na reconstrução do passado.
Prometo um novo artigo com as descobertas, mas não posso me comprometer com prazos. Como uma típica família cearense, a minha está espalhada pelo país: meu primo, canadense, vive agora em Florianópolis, enquanto meu tio mora em Recife. Isso torna o acesso à pessoa que afirma lembrar do meu avô mais difícil, especialmente porque este elo não utiliza redes sociais. Mas vamos teimando. Apesar das tentativas da ditadura de apagar essas histórias, elas encontram maneiras de resistir e ressurgir — e, no que depender de nós, continuaremos sendo resistência.
Para quem tiver informações que possam nos ajudar: saragoes@brasil247.com.br
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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