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Enquanto a Ucrânia inicia uma contra-ofensiva e os falcões de Biden assistem, a nova retórica vinda da Rússia indica um renascimento da ameaça nuclear
No Substack. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Nesta semana eu estava planejando escrever sobre a guerra em expansão na Ucrânia e o perigo que esta representa para o governo Biden. Eu tinha muito a dizer. A vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, pediu demissão; o seu último dia no cargo é em 30 de junho. A saída dela detonou um quase-pânico dentro do Departamento de Estado sobre a pessoa que muitos temem seja escolhida para a substituir: Victoria Nuland. O militarismo de Nuland contra a Rússia e sua antipatia por Vladimir Putin se encaixa perfeitamente com as visões do presidente Biden. Nuland agora é a subsecretária para assuntos políticos e tem sido descrita como “correndo loucamente”, nas palavras de uma pessoa com conhecimento direto da situação, dentre os vários escritórios do Departamento de Estado, enquanto o Secretário de Estado Antony Blinken está viajando. Caso Sherman tenha uma opinião sobre a sua potencial sucessora, e ela deve tê-la, é improvável que ela jamais a compartilhe.
Alguns na comunidade de inteligência estadunidense acreditam que Biden está convencido que a sua perspectiva de ser reeleito dependa de uma vitória, ou de algum acordo satisfatório, na guerra da Ucrânia. A rejeição de Blinken sobre a perspectiva de um cessar-fogo na Ucrânia, manifestada no seu discurso de 2 de junho na Finlândia, sobre a qual eu escrevi na semana passada, faz parte desta maneira de pensar.
Putin deve ser condenado, corretamente, pela sua decisão de jogar a Europa na sua guerra mais violenta e destrutiva desde as guerras nos Balcãs nos anos de 1990. Mas aqueles que estão no comando da Casa Branca devem responder pela sua disposição de deixar uma situação obviamente tensa levar a uma guerra quando, talvez, uma garantia inequívoca de que não seria permitida a entrada da Ucrânia na OTAN poderia ter mantido a paz.
A contra-ofensiva da Ucrânia está avançando lentamente nos seus primeiros dias, portanto as notícias sobre a guerra desapareceram rapidamente das capas do New York Times e do Washington Post. O medo que os jornais têm de uma nova presidência de Trump parece haver diminuído o apetite deles por fazer reportagens objetivas quando publicam más notícias do front. A má notícia pode continuar vindo do poder limitado das forças aéreas e de mísseis ucranianas, as quais continuam sendo ineficazes contra a Rússia.
Dentre a comunidade de inteligência estadunidense, acredita-se que a Rússia tenha destruído a represa vital de Kakhovka, no rio Dnipro. A motivação de Putin não está clara. Será que a sabotagem visava a inundação e desacelerar o caminho do Exército da Ucrânia até a zona de guerra no sudeste? Será que havia locais de armazenagem escondidos de armas e munições ucranianas na área inundada? (O comando militar ucraniano está movendo constantemente os seus estoques, num esforço para confundir a vigilância por satélite e os alvos de mísseis dos russos.) Ou será que Putin está simplesmente derrubando um peão e fazendo o governo de Volodymyr Zelensky entender que este é o começo do fim?
Neste ínterim, houve uma escalada na retórica dentro da Rússia sobre a guerra e as suas possíveis consequências. Pode-se observar num ensaio publicado em 13 de junho em russo e inglês por Sergei A. Karaganov, um acadêmico em Moscou que é o presidente do Conselho Russo sobre Política Exterior e Defesa. Karaganov é conhecido por ser próximo a Putin; ele é levado a sério por alguns jornalistas no Ocidente, mais notavelmente por Serge Schmemann, um veterano correspondente do New York Times em Moscou e que agora é um membro do conselho editorial do Times. Assim como eu, ele passou o seu período inicial como jornalista na Associated Press.
Um dos pontos principais de Karaganov é que a atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia não acabará, mesmo que a Rússia conseguisse uma vitória esmagadora. Ele escreve que permanecerá “uma população ultranacionalista mais amargurada e saturada de armas – uma ferida sangrenta que ameaça produzir complicações ameaçadoras e uma nova guerra”.
O ensaio é impregnado de desespero. Uma vitória russa na Ucrânia significa uma guerra contínua com o Ocidente. Ele escreve que “A pior situação pode ocorrer se, ao custo de enormes perdas, nós liberarmos a Ucrânia inteira, que permanece em ruínas, com uma população que, na sua maioria, nos odeia... A contenda com o Ocidente continuará, pois eles apoiarão uma guerra de guerrilhas de baixo perfil”. Uma opção mais atraente seria liberar as áreas pró-russas da Ucrânia, seguida pela desmilitarização das forças armadas da Ucrânia. Mas isto seria possível, escreve Karaganov, “somente se e quando nós formos capazes de romper com a disposição do Ocidente de incitar e apoiar a junta de Kiev e forçá-la a recuar estrategicamente.
“E isto nos traz à questão mais importante e quase não discutida. A causa subjacente e até fundamental do conflito na Ucrânia e de muitas outras tensões no mundo… é o fracasso em aceleração das elites dominantes modernas no Ocidente” em reconhecer e lidar com o “percurso globalizante das décadas recentes”. Estas mudanças, as quais Karaganov chama de “sem precedentes na história”, são elementos-chave do equilíbrio global de poder que agora favorece a “China e, parcialmente, a Índia, agindo como motores econômicos, e a Rússia sendo escolhida pela história para ser o seu pilar militar estratégico”. Ele escreve que os países do Ocidente, com líderes como Biden e os seus auxiliares, “estão perdendo a sua capacidade de cinco séculos de sugar riquezas em todo o mundo, impondo, basicamente pela força bruta, ordens políticas e econômicas e a dominação cultural. Portanto, não haverá um fim rápido para a confrontação ocidental defensiva e agressiva em desdobramento”.
Esta sacudida na ordem mundial, ele escreve, “esteve fermentando desde o início dos anos de 1960… A derrota no Iraque e no Afeganistão e o início da crise do modelo econômico ocidental em 2008 foram marcos importantes”. Tudo isto aponta para um desastre em larga escala: “Uma trégua é possível, mas a paz não é… Este vetor do movimento do Ocidente indica inequivocamente um deslizamento para uma Terceira Guerra Mundial. Esta já está começando e pode entrar em erupção por acaso e numa tempestade de fogo pleno devido à incompetência e irresponsabilidade de círculos dominantes modernos no Ocidente”.
Na visão de Karaganov – e eu não estou condenando nem concordando com ela, de maneira alguma – a guerra liderada pelos EUA contra a Rússia na Ucrânia, com o apoio da OTAN, se tornou mais viável, até mesmo inelutável, porque o medo da guerra nuclear acabou. O que está ocorrendo atualmente na Ucrânia, ele argumenta, seria “impensável” nos anos iniciais da era nuclear. Naquela época, mesmo “num ataque de fúria desesperada”, os círculos dominantes de um grupo de países” jamais teria desencadeado uma guerra total no ventre de uma superpotência nuclear”.
O argumento de Karaganov só se torna mais amedrontador dali em diante. Ele conclui argumentando que a Rússia pode continuar lutando na Ucrânia por mais dois ou três anos ao “sacrificar milhares e milhares dos nossos melhores homens e triturando… centenas de milhares de pessoas que vivem no território, atualmente chamado de Ucrânia e que caíram numa trágica armadilha histórica. Mas esta operação militar não pode acabar com uma vitória decisiva sem forçar o Ocidente a recuar estrategicamente, ou até se render, e compelindo os EUA a desistir da sua tentativa de reverter a história e preservar a dominação global… A grosso modo, eles devem “cair fora”, de modo que a Rússia e o mundo possam ir adiante desimpedidos”.
Para convencer os EUA a “caírem fora”, Karaganov escreve que, “Nós teremos que tornar a dissuasão novamente um argumento convincente, ao abaixar o limiar para o uso de armas nucleares definido inaceitavelmente alto e por subir rapidamente, porém prudentemente, a escada de escalação da dissuasão”. Putin já fez isso, ele diz, através das suas declarações e da alocação adiantada de armas nucleares russas na Bielorrúsia. “Nós não devemos repetir o 'cenário ucraniano'. Por um quarto de século, nós não escutamos aqueles que advertiram que a agressão da OTAN levaria à guerra, e tentaram atrasar e 'negociar'. Como resultado disso, nós temos um conflito armado severo. Agora, o preço da indecisão será maior, por uma ordem de magnitude.
“O inimigo deve saber que nós estamos dispostos a fazer um ataque preventivo, em retaliação pelas suas ações atuais e passadas de agressão, a fim de evitar um deslizamento para uma guerra termonuclear global… Moralmente, esta é uma escolha terrível, já que nós usaremos a arma de Deus, portanto nos condenando a graves perdas espirituais. Porém, se nós não fizermos isso, não só a Rússia pode morrer, mas, muito provavelmente, a civilização humana inteira deixará de existir”.
A noção de Karaganov sobre uma arma nuclear como a “arma de Deus” me lembra de uma estranha, porém similar frase de Putin num fórum em Moscou no outono de 2018. Ele disse que a Rússia lançaria um ataque nuclear somente se o sistema de advertência antecipada das suas forças militares avisasse sobre uma ogiva se aproximando. “Nós seríamos vítimas de uma agressão e iríamos para o céu como mártires” e aqueles que lançaram o ataque “morreriam e sequer teriam tempo de se arrepender”.Karaganov progrediu muito no seu pensamento sobre a guerra nuclear, em comparação com as suas observações numa entrevista com Schmemann no verão passado. Ele expressou uma preocupação sobre a liberdade de pensamento no futuro e adicionou: “Mas eu estou mais preocupado ainda sobre a crescente probabilidade de que um conflito termonuclear global acabe com a história da humanidade. Nós estamos vivendo numa crise prolongada dos mísseis cubanos. E eu não vejo pessoas do calibre de Kennedy e a sua entourage no outro lado. Eu não sei se nós temos interlocutores responsáveis.
“Isto poderia ser o toque de clarim de um movimento na Rússia”, me disse um antigo observador do Kremlin, “para uma perigosa mudança de política, ou poderiam ser as divagações aleatórias de um acadêmico preocupado, porém profundamente russo?” Ele acrescentou que qualquer estrategista político da OTAN deveria ler e avaliar o seu ensaio.
Será que o futuro do mundo realmente está apenas nas mãos da Rússia – e não nas nossas?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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