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Regina Zappa

Jornalista, escritora, criadora e apresentadora do Estação Sabiá, da TV 247. Trabalhou mais de 20 anos no Jornal do Brasil

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Paredes, portas e janelas na “Construção” de Chico Buarque

Bem que o herói desconhecido e anônimo da canção de Chico merecia hoje uma nova Construção

Chico Buarque (Foto: Taiz Dering/Divulgação)

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(Texto publicado, em 2022, na “Revista Brasileira”, da Academia Brasileira de Letras e agora aqui, por ocasião dos 80 anos de Chico Buarque)

Em 1999, o escritor chileno Antonio Skármeta, chegava ao Rio de Janeiro para entrevistar poetas, compositores e escritores brasileiros, em busca de material para seu programa de televisão, A Torre de Papel, uma série que pretendia captar momentos da cultura e literatura mundiais para o canal People & Arts, da Net. Arrebatado pelo que considerava uma intensa relação entre poesia e canção popular no Brasil, o autor de Ardente Paciência (aqui traduzido como O Carteiro e o Poeta) ansiava por encontrar-se com o compositor Chico Buarque. Na pauta, ele trazia como centro do seu interesse a canção Construção, composta por Chico, em 1971.

O escritor conseguiu marcar o encontro e pediu a Chico que cantasse Construção, como parte importante do seu programa. O encantamento de Skármeta é compreensível. Letra e música da canção são tão fortes e entrelaçadas, traduzem de forma tão contundente e poética o cotidiano e a sina do trabalhador brasileiro, que fazem dela uma das mais brilhantes e importantes da Música Popular Brasileira. 

O tema da canção é o duro cotidiano de um trabalhador da construção civil. Para o público acostumado, até então, ao lirismo de Chico, Construção foi um soco no estômago. Embora Pedro Pedreiro, lançado antes, em 1965, já falasse da árdua batalha do trabalhador pobre (Esperando o trem/ Esperando o aumento/ Desde o ano passado/ Para o mês que vem), e da imobilidade social (E a mulher de Pedro/ Está esperando um filho/ Pra esperar também), ainda guardava o lirismo e a sutileza em suas estrofes.  

Já Roda Viva, de 1967, estourou ao tratar da frustração e desesperança (A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda-viva/E carrega o destino pra lá), fazendo uma alusão à mudança de rumos com o golpe militar (Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou).

Em Rosa-dos-Ventos, de 1969, a carga poética mistura-se à revolta: A calma dos lagos zangou-se / A rosa-dos-ventos danou-se / O leito dos rios fartou-se / E inundou de água doce / A amargura do mar.

Mas Construção, composta por Chico na volta de seu exílio em Roma, vai além. Chegava no momento em que o pote até aqui de mágoa derramava a realidade incontornável. A injustiça social se consolidava com a chegada do regime militar, que a canção de Chico denunciava, ao mostrar a precariedade da vida do operário, mas também a dificuldade em estabelecer no país relações de trabalho dignas. A ditadura militar aprofundou a desigualdade ao se apoiar na lenda do crescimento do bolo, para depois distribuir, o que nunca ocorreu. Ainda hoje, 50 anos depois, e com o retrocesso que os direitos trabalhistas vem sofrendo desde 2016, a composição permanece atual. 

Da mesma forma, e lançada no mesmo ano e disco, Deus lhe pague, também nos desaloja do conforto lírico para nos levar à crua realidade, com sarcasmo e sem sutilezas (Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir / Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir / Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair / Deus lhe pague). 

Toda obra artística ou literária revela, de forma explícita ou suave, as marcas do seu tempo. Construção fala do operário sem perspectivas, em um Brasil desigual e socialmente injusto.

Na letra da canção, o operário é uma máquina, que serve apenas para executar serviços. Um ser robotizado, sem alma, sem desejos.

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

A canção revela a desconstrução da humanidade do trabalhador e sua invisibilidade aos olhos da sociedade. A troca de palavras com o mesmo significado acentua a inconveniência do corpo caído no chão da cidade:

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

..................

Agonizou no meio do passeio náufrago 

Morreu na contramão atrapalhando o público.

...................

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado

A primeira estrofe já anuncia a tragédia naturalizada. Com passo tímido, o homem quase pede licença para existir:

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Em toda a canção, o ritmo é dado pela métrica dos versos. Esses versos longos, alexandrinos, que exigem uma pausa no meio, trazem uma cadência que evoca muitas vezes uma marcha fúnebre. O ritmo vem também das palavras proparoxítonas do final de cada verso. Música e verso dramáticos funcionam como uma antecipação do fim que está para acontecer. Uma tragédia que é relatada desde o início e que mostra o cotidiano sofrido de uma vida sem perspectivas.

As “vozes semelhantes” criadas pela repetição das palavras reproduzem a rotina do dia após dia da vida do operário. E o ritmo marcha em direção à única saída para aquela vida monocórdia.

Da mesma forma que o trabalhador ergue “paredes sólidas, num desenho mágico”, Chico constrói sua canção como um bailado mecânico. As palavras diferentes em posições iguais na frase musical dão a sensação de que algo pode mudar, mas, na realidade, a mudança nunca vem. E tudo se repete diverso, porém igual. Há, no entanto, um momento de alegria, um respiro de alívio, uma ilusão passageira, um único refrão esperançoso. É quando ele descansa, come, dança, ri. E sonha:

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E o trabalhador se encaminha para o cadafalso, despenca do edifício que constrói e onde nunca vai entrar, tropeça no céu e flutua no ar. À medida que o desfecho se aproxima, os versos vão ganhando maior carga poética e à desordem das palavras tiradas da ordem original das frases se mistura a confusão dos sentimentos desordenados. Na última estrofe, ele é máquina, pássaro, príncipe e bêbado. É de tirar o fôlego.

É com toda a razão que Sergio Buarque de Hollanda, pai de Chico, a certa altura reparou que o filho elaborava suas músicas como se fossem um projeto arquitetônico. “Ele tem cabeça de arquiteto e coração de poeta”, disse Sergio, certa vez. Chico chegou a cursar Arquitetura na faculdade, mas abandonou para seguir projetos de outro tipo de construção. Pai que não se engana, Sergio marcou o talento do filho em fazer a ponte unindo sensibilidade à precisão. Arquiteto do verbo, operário das canções, as ideias de Chico se encaixam nas medidas precisas das paredes, portas e janelas da estrutura dos versos e dos acordes. 

Bem que o herói desconhecido e anônimo da canção de Chico merecia hoje uma nova Construção.

..............................

Construção

Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado

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