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Frei Gilvander Luís Moreira

Padre da Ordem dos carmelitas, doutor em Educação pela UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG

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Pessoa cristã é discípula de um piedoso ou de um mártir?

Nos últimos 50 anos no Brasil, são mais de cinco mil mártires, a maioria foi tombada na luta pela terra e por território

(Foto: Reuters/Jason Cohn)

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Como pessoa cristã participo de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de Pastorais Sociais e de Movimentos Sociais Populares lutando por uma terra sem males que exige a superação do capitalismo, brutal máquina de moer vidas, e a construção de uma sociedade socialista com justiça econômica, democracia real, solidariedade social, responsabilidade social, ambiental e geracional, e respeito à imensa pluralidade cultural e religiosa existente no seio dos povos. Nos Encontros das CEBs, geralmente um dos momentos de oração e mística é fazer uma Caminhada com os/as Mártires com os estandartes com os rostos dos cristãos e cristãs que foram martirizados/as porque estavam comprometidos com a luta pela reforma agrária, com a defesa da Floresta Amazônica e todos os direitos humanos fundamentais e direitos da Natureza. Chico Mendes, Santo Dias, irmã Dorothy Stang, padre Ezequiel Ramin, padre Josimo, Mariele Franco, Dom Fhillips, Bruno Pereira e uma multidão de outros/as. Nos últimos 50 anos no Brasil, são mais de cinco mil mártires, a maioria foi tombada na luta pela terra e por território. O número de mártires anônimos é muito maior. 

Toda vez que eu participo de uma Caminhada com os Mártires fico muito emocionado. Primeiro, ouço as palavras que Moisés ouviu no deserto ao se aproximar do encontro com o Deus da vida: “Tire as sandálias dos seus pés, porque a terra que você está pisando é sagrada” (Ex 3,5). Segundo, participar de uma Caminhada com os/as Mártires é uma bênção, uma maravilha, mas também uma responsabilidade muito grande que me lembra também de um momento do filme Anel de Tucum, quando nosso querido e saudoso dom Pedro Casaldáliga tira o Anel de Tucum do seu dedo e pergunta: “André, você aceita usar este Anel de Tucum, símbolo do compromisso com a causa dos pobres? Posso te dar de presente este Anel de Tucum, mas esse anel queima.”

Participar de uma Caminhada com os/as Mártires, como fizemos no IX Encontro Mineiro das CEBs, em Passos, MG, na noite de 19 de julho de 2024, também queima, porque é um sagrado convite de Deus, mistério de infinito amor, invocado sob tantos nomes; é um convite amoroso do Espírito Santo e de Jesus Cristo, nosso mestre e mártir maior, para não vacilarmos sendo omissos e cúmplices, mas assumirmos para valer as lutas justas e necessárias que incomodam os opressores e exploradores que poderão tentar calar nossa voz. “Se perseguiram o mestre Jesus, também vos perseguirão” (Jo 15,20), mas como Jesus ressuscitou, se nos matarem, ressuscitaremos também na luta do povo, conforme profetizou o arcebispo dom Oscar Romero, martirizado enquanto celebrava a missa em El Salvador dia 24 de março de 1980. Bradou Romero: “Se me matam, ressuscitarei na luta do meu povo”. 

Os/as Mártires da caminhada não apenas tombaram combatendo o bom combate (2 Tm 4,7-8), fazendo a diferença, eles e elas estão vivos no nosso meio, caminham conosco em nós nos animando e nos fortalecendo. O sangue dos/as mártires circula nas nossas artérias nos encorajando nas lutas justas e necessárias. Dom Pedro Casaldáliga gostava de alertar: “Ai de um povo que esquece seus mártires.”

Nós, pessoas cristãs, somos discípulos e discípulas de um mártir: Jesus Cristo, que, lamentavelmente, muitas pessoas, por ingenuidade ou porque foram induzidas, tendem a reduzir a um piedoso, a um bom samaritano, a um ermitão, a um monge espiritualista, mas Jesus Cristo foi acima de tudo um mártir. “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão/ã...”, canta a primeira música religiosa que aprendi quando era ainda criança. 

Jesus não morreu de velhice de morte natural. Jesus foi matado, assassinado, sofreu a pena capital - pena de morte sob a crucifixão. Condenado por chefes dos três podres poderes: da economia, da política e da religião. Jesus Cristo se tornou mártir, porque não apenas fez solidariedade, como nos mostra a primeira parte dos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), mas porque teve a lucidez e a coragem de lutar por Justiça no seu sentido mais profundo, o que nos mostra a segunda parte da missão de Jesus na segunda parte dos evangelhos de Mateus, Marcos - a partir de Mc 8,34 - e Lucas - a partir de Lc 9,51. Ao ser ameaçado de morte pelo governador Herodes, Jesus teve coragem de o chamar de raposa. “Vão dizer a essa raposa: eu expulso demônios, e faço curas...” (Lc 13,32).  “Raposa” no sentido de comedor de suor e sangue dos empobrecidos, vampiro explorador do povo escravizado. Assim, Jesus desmascarou o rei Herodes imposto pelo imperador romano escravocrata para continuar a colonização do povo na Palestina. 

Jesus Cristo se tornou mártir porque teve a sabedoria e a coragem de denunciar todos os saduceus, que eram os poderosos do poder econômico, se diziam proprietários de terra, na verdade, os grandes grileiros de terra, os grandes latifundiários da época. Diante dos saduceus e de parte dos fariseus e doutores da lei, Jesus não baixou a cabeça e nem se ajoelhou, mas de pé com cabeça erguida, os acusou: “Ai de vocês, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Por fora, parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça (...) Serpentes, raça de cobras venenosas! Enviei a vocês profetas, sábios e doutores, mas a uns vocês matarão e crucificarão, a outros torturarão nas sinagogas de vocês. Por isso virá sobre vocês todo o sangue justo derramado sobre a terra” (Mt 23,27-28.33-35). 

Jesus Cristo se tornou mártir, porque mesmo com o vacilo de alguns de seus companheiros quando estavam naquela caminhada rumo a Jerusalém (Lc 9,51-19,28), vindo da Periferia da Galileia e começaram a aparecer ameaças de morte contra Jesus de Nazaré, o apóstolo Pedro se aproximou de Jesus e propôs que era hora de colocar a “viola no saco” e voltar para a Galileia, onde todo mundo o aplaudia, todo mundo queria estar com Jesus, fase da missão em que Jesus fazia os milagres e esbanjava solidariedade abraçando todo mundo. Entretanto, Jesus ficou indignado com o apóstolo Pedro e alertou que ele estava querendo desviá-lo do caminho: “Fique longe de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens” (Mc 8,33). O evangelho não faz referência a um satanás abstrato, “um deus do mal”, mas um adversário que tira o foco da missão e propõe fazer aliança com opressores. Jesus foi martirizado, porque com altivez decidiu: “Nós vamos continuar firmes na caminhada rumo a Jerusalém. Não vamos voltar para trás.”

Portanto, irmãos e irmãs das queridas Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais e dos Movimentos Sociais Populares, que tenhamos a grandeza humana, espiritual e ética, a sabedoria e a coragem para não medirmos esforços para sermos também companheiros e companheiras firmes na luta combatendo o bom combate (2 Tm 4,7-8), fazendo a diferença, com uma mão sendo pessoas solidárias e com a outra lutando por justiça agrária, urbana e socioambiental e por todos os direitos humanos fundamentais e todos os direitos da Natureza. Assim, nós poderemos ser verdadeiros discípulas e discípulos dos Mártires da Caminhada e de Jesus Cristo, o nosso Mártir maior, Mestre e Salvador. 

Enfim, eis uma amostra de que um Encontro de CEBs é sempre um momento de reanimar as forças, reacender a esperança, as utopias  e a coragem de viver a verdadeira e libertadora espiritualidade,  assumir o compromisso profético de anunciar o Reino de Deus e denunciar tudo o que fere e mata a vida.

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