Polícia não é inimiga
A entrevista concedida ao jornal “El País”, pelo coronel da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Íbis Silva Pereira, deveria servir de ponto de partida para uma profunda reflexão sobre o papel da PM na sociedade. As teses são de alguém que foi capaz de compreender os dilemas que vivem os dois lados nessa guerra civil disfarçada
A entrevista concedida ao jornal “El País”, pelo coronel da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Íbis Silva Pereira, deveria servir de ponto de partida para uma profunda reflexão sobre o papel da PM na sociedade. As teses são de alguém que viveu o dia a dia da polícia; que subiu os morros para combater o tráfico de drogas, que conhece cada palmo da violência carioca, mas foi capaz de compreender os dilemas que vivem os dois lados nessa guerra civil disfarçada.
Sua trajetória na corporação o levou, em 2014, ao Comando Geral da PM. Antes, ocupou a chefia de Gabinete da instituição e comandou a Escola Superior da PM. Graduado em Direito, fez pós-graduação em Filosofia e em Gestão de Segurança Pública; é mestre em História pela UERJ onde atualmente cursa doutorado na mesma cadeira.
No recente episódio das mortes de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o coronel veio a público para defender e testemunhar a atuação da vereadora no legislativo municipal. De sobra, deu uma aula sobre a realidade vivida tanto pelos policiais como moradores das favelas do Rio de Janeiro.
Sobre o papel da polícia foi claro. “O policial deve ser, acima de tudo, um promotor e garantidor da dignidade humana. Quando não consegue entender esse papel, se torna uma ameaça e não um instrumento a serviço da civilização”. Mostra-se indignado com as vozes que criticam a política de defesa dos direitos humanos como se isso “fosse algo destinado a proteção de bandidos”.
Para ele, trata-se de um discurso de ódio e intolerância contra qualquer avanço no sentido de reduzir as desigualdades históricas. “Quem defende a ideia que ‘bandido bom é bandido morto’ reproduz as ideias da Casa Grande. Infelizmente muitos policiais pensam assim. A polícia reproduz essa mentalidade porque, sendo um aparelho do Estado, reproduz as ideias dos donos do poder” explicou.
Afirma que, no Brasil, “as policias não trabalham para o cidadão, mas para o Ministério Público e para o juiz”. Exemplifica com um fato contumaz no dia a dia de milhares de mulheres: a agressão doméstica. Lembra que, até ser espancada, ela passa por uma série de constrangimentos que poderiam ser solucionados se as policias pudessem atuar como “administradora de conflitos”. “Enquanto ela não for agredida, não existir a materialidade do fato, a lesão corporal, a polícia pouco pode fazer. A polícia trabalha para a Justiça dentro da lógica punitivista e não para população”. Mas para tanto será preciso mudar a legislação brasileira e concepção dentro das corporações.
Na prática, o que está em jogo no Brasil é muito mais que uma mera intervenção militar atabalhoada no Rio de Janeiro, sem qualquer planejamento tático. Até agora, o governo federal não destinou recursos financeiros ao Estado. Não basta soldados, armas e violência. É preciso repensar a segurança pública a partir de uma ótica que que defina os papéis e funções de cada um nesse xadrez da insegurança. “Vamos transformar essa tragédia em uma ocasião para repensar, ouvindo, inclusive, os policiais” sugere Pereira. “O policial é apenas um trabalhador e dentro das corporações há gente querendo mudar. Há policiais morrendo todos os dias e precisamos entender seu drama humano”.
Qualquer mudança de ordem pública exige respeito à democracia, ao debate e a tolerância de todas as partes. Na segurança, não é diferente. Nenhum policial pode ser tratado como inimigo. Mas é preciso ficar definido que sua parte nesse imbróglio é justamente o de guardião da paz. No Reino Unido, os policiais andam pelas ruas armados apenas de um cassetete. Nem por isso são desrespeitados.
Só as ditaduras impõem o medo e a ordem pela violência da polícia.
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