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    Evson Malaquias de Moraes Santos

    Professor Titular do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional (DAEPE) do Centro de Educação da UFPE. Formado em História pela UNICAP e Doutor em Sociologia pela UFPE

    5 artigos

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    Privatização simbólica e imaginária: como as instituições republicanas constituem-se antirrepublicanas

    Somente movimentos políticos “externos” podem balançar essas estruturas e possibilitar a construção de novas estruturas que não essas reinantes – essas “estruturas” não evoluem

    UFPE (Foto: Divulgação)

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    Esse texto que se segue foi escrito meses atrás e parece que ficou atualíssimo com a tentativa de uma consecução persecutória à minha pessoa pela chefia de meu departamento. O assédio que sofro é um bom exemplo de práticas patrimonialistas[1]instaladas no Estado. Patrimonialismo é sinônimo de privatização do espaço público em sentido bem geral – patrimonialismo não é sinônimo de assédio e vice-versa, mas o assédio se instala como uma luva em lógicas patrimonialistas. Sem dúvida, o assédio sofrido por minha pessoa, está correlacionado com a polêmica sobre a retirada do nome do auditório do CE, que ocasionou uma grande tensão e irritação comigo por parte dos docentes quando defendi a retirada do nome do representante da ditadura, Carlos Maciel. O clima foi bem quente naquele momento na reunião. O Centro de Educação da UFPE deve ser dito abertamente: é um centro conservador. 

    O que se segue é uma reflexão e estudos que venho produzindo nesses 23 anos de pesquisas sobre o patrimonialismo, a UFPE, influenciados pelas áreas de conhecimentos da História, da Antropologia, da Sociologia e da Psicanálise. 

    Perguntamo-nos: Existe um lócus de autoritarismo em uma organização e instituição? Ele se apresenta diretamente aos nossos conhecimentos? Há possibilidade de uma sociedade autoritária como o Brasil fazer uma análise macro-histórica e encontrar uma organização/instituição democrática do Estado? 

    Essas perguntas são feitas para que possamos compreender como o autoritarismo se (re)produz em organização e instituição que se dizem democráticas. No estatuto da UFPE encontramos em seus princípios: I - democratização da educação e da equidade na oportunidade do seu acesso; II - liberdade acadêmica sem discriminação de qualquer natureza; III - cultura de paz, direitos humanos e democracia, como elementos pedagógicos e organizativos da Universidade; IV - respeito à diversidade e combate a todas as formas de intolerância e discriminação decorrentes de diferenças sociais, etárias, raciais, étnicas, religiosas, de gênero e de orientação sexual. 

    Pelos princípios citados acima, no campo da nomeação, do cognitivo, a UFPE é democrática, o que significa que prioriza valores instituídos em seu cotidiano, tomados para si pela comunidade acadêmica como seus. 

    No Centro de Educação, encontraremos pesquisadores que defendem ideias de Paulo Freire, o diálogo como prática, comunicação sem poder, a democracia como método (o que inclui o diálogo, a participação e a valorização da coletividade), e as lutas antirracista e anti-homofobia como princípios. No entanto, quando solicitei ao meu departamento as imagens de uma reunião que tratava de um TEMA PÚBLICO, a retirada do nome do auditório do CE, Carlos Maciel, que representa diretamente uma menção à ditadura de 64, o pedido foi rejeitado por quase unanimidade – apenas uma professora e eu votamos contrariamente à proibição. Não se tratava de um tema privado que poderia expor a vida privada de qualquer docente. Pelo contrário. Em nenhum momento foi tratado isso lá.  

    Mas por que o docente da UFPE, e provavelmente, em quase todas as instituições públicas, têm pavor da explicitação de temas de interesse público, do debate aberto numa coletividade? 

    No entanto, por que o docente da UFPE e, em particular os do meu departamento, provavelmente, todas as instituições públicas têm pavor da explicitação de temas de interesse público quando debatidos em uma coletividade? Como um departamento que prega e defende a democracia, a educação pública, a república, os direitos humanos enquanto princípios inalienáveis entra em polvorosa e reage imediatamente (em menos de 24 horas já estava deliberada a proibição) CONTRA um debate de interesse público, negando todos os princípios estatutários da UFPE e seus próprios discursos teórico-políticos? 

    Onde se encontra aqui o imaginário de República? 

    Começaria chamando a atenção para aquilo que denominamos de instituições públicas no campo jurídico. Elas não são “públicas” antropologicamente falando, mas estatais. Portanto, não temos escolas e universidades, por exemplo, públicas, mas apenas estatais. O Estado recorre à burocracia para seu funcionamento, não ao imaginário público. Essa é a “tradição” da colonização brasileira que a “República” não combateu. O capitalismo jamais irá enfrentar serenamente essa contradição. 

    Não podemos esquecer, também, que a burocracia convive com muita naturalidade com governos nazifascistas, ditaduras de todos os tipos, democracias burguesas, etc. Os burocratas se apegam e se mesclam sem problema algum. 

    Do ponto de vista da “territorialidade”, predomina um imaginário institucional de que a reitoria representa o “mal” da universidade, pois é lá que se encontra a hierarquia máxima institucional – decidindo a vida de todos. Uma vez conversando com um professor Titular do CE, mencionei que a reitoria ficava fora do centro, e não era bom. Sobre isso, ele me falou: “Deixe ela lá, Evson, bem longe”. Em nível nacional, localiza-se geograficamente em Brasília. A representação simbólica encontra-se num espaço e num lugar com prédios próprios e representantes específicos. Existe um “eles” e um “nós”. 

    Ora, essa representação não tem nada a ver com esquerda x direita, partido a x partido b, está presente em quase todos sujeitos, difundido horizontalmente.  

    Continuemos. Vários historiadores já nos alertaram sobre o patrimonialismo na prática política brasileira: privatização do espaço público. Alguns afirmam existir uma “casta” que nunca terá fim, como o fez Raymundo Faoro. Outros alertam para o homem cordial (privatização política), como fez Sergio Buarque Holanda. Ora, a privatização nada mais é que a existência de grupos que controlam certos “loci” organizacionais comandados por um imaginário social de “donos” (inclusive sindicatos). Aí, não dá para desconsiderar a experiência de quase 400 anos de um sistema escravagista, fortemente hierarquizado e privatizado (não existia “bem público”), ou uma República “inexistente”, composta por “famílias de bem”.  

    O ensino superior também tinha seus donos: as cátedras. Elite privilegiada masculina e branca, inclusive dos donos de terras, empresários e religiosos sob forte domínio da hierarquia, a qual comandava a organização e a instituição imaginária da época. O reitorado de João Alfredo, com parceria de Paulo Freire, estava sendo dominado por esse imaginário verticalizado. Inexiste nas atas do Conselho Universitário dos 5 anos do reitorado do democrata João Alfredo/Paulo Freire qualquer tema acerca da democracia universitária. Repito: inexiste. Mesmo sabedores de que a UNE, desde 1961, defendia a paridade nos órgãos da universidade, esse tema nunca foi preocupação do conselho universitário. Contudo, por comodidade intelectual e interesse, os “limites” desse reitorado nunca foram postos. Um reitorado puro, sem mácula, interessa apenas ao presente, a quem controla essas representações. Diria diretamente: quem “controla” os cargos e os seus órgãos.

    Com o golpe de 64 foram extintas as cátedras com os fuzis e canetas, estabelecendo-se os departamentos com argumento de “modernização científica”, criando, também, as pós-graduações (a hierarquia do status universitário: duplicado com o neoliberalismo). Impossível tratar sobre a ditadura de 64 sem mencionar o seu projeto verticalizado de modernização do Ensino Superior: branco, masculino, empresarial. As organizações (os departamentos) cumprem essa “função” até hoje. As poucas mudanças nessa “função” são decorrentes de “lutas externas” (outras organizações não educacionais postam e se impõem), de outros docentes que não se reconhecem nesse imaginário institucional e social. 

    Voltemos ao tema da proibição da imagem da reunião que tratava da retirada do nome do auditório do Centro de Educação. 

    A rapidez da votação e de sua divulgação, sem debate, indica bem a ligação tanática com esse órgão: o departamento precisa ser “protegido” de exposição. Não há divergência, ela não pode aparecer. A apresentação da divergência irá despurificaro departamento. Os seus membros se mostrarão como são, e isso não pode. Temos que impedir a exposição. Para quem não conhece a composição do departamento, ela é composta exclusivamente por docentes (antes como catedráticos, hoje como “doutores”). A publicização do debate seria uma blasfêmia: seria estabelecer a República, a política. Não pode! Essa homogeneidadedo departamento permite um relaxamento comportamental, principalmente a quem controla o grupo dominante: fala o que bem entende e da forma que quiser. A sociologia já nos ensinou há muito tempo que não existe organização sem grupos, mas, para a proteção identitária do órgão, do centro e da UFPE, não existe “grupos”, “interesses em lutas”. A instituição é una. Não existe grupos no departamento. 

    Uma informação importante: o Estatuto da UFPE, até então, era o da ditadura. As entidades estudantis, docentes e servidores tentaram modificá-lo, uma minoria, mas o corpo docente, em sua totalidade, nunca se interessou. O atual não mexeu nos departamentos. Por que será? Não falo da necessidade de “núcleos por afinidade de área de conhecimento”, até porque pode-se mudar e permanecer no mesmo. 

    O estatuto da ditadura é “melhor” (ironia) do que o atual: indica a representação estudantil nos departamentos. Nos meus 22 anos de UFPE, apenas uma vez um representante estudantil esteve presente, a meu convite, e foi uma bateria de exigências, assim como na ditadura, para permanecer na reunião, cobrando-se ata, documento por escrito se ele estava representando, de fato, a diretoria, cargo que ocupava, etc. Na ditadura, o representante estudantil no Conselho Universitário só poderia ser o presidente da entidade (um outro era escolhido entre os diretórios acadêmicos). Já soube que em outros departamentos, de outros centros, há participação do diretório acadêmico em seus assentos – tudo leva a crer que não é generalizado. Mas no meu departamento, o que elabora a “gestão democrática”, isso não ocorreu e nem ocorre. 

    Se o corpo docente não aceita apenas um único representante, imagina a proporcionalidade já defendida pela UNE desde 1961? O discurso do “diálogo paulofreireano”, de “espiritualidade” e de “comunicação sem poder” vai para o espaço.

    É no departamento que se encontra o autoritarismo e a hierarquia, pois é onde se manifesta o imaginário institucional reinante: o docente como reino. O Conselho Universitário é apenas sua consequência. O seu topo hierárquico. É no departamento que se realiza a privatização. Apenas os docentes e, particularmente, os grupos hegemônicos têm o “poder” de decidir. Como diz Roberto Damatta, toda a festa tem um dono. O plagiamos: todo departamento tem um dono. Os servidores aparecem apenas como empregados dos docentes para fazerem suas atas, não como sujeitos. Só são aceitos os servidores como funcionários a serviço da organização e da instituição. Os estudantes participam quando fazem ocupações, normalmente chamadas de “invasões”. Não é incoerente denominá-las de “invasões”, pois no imaginário institucional/social, os estudantes ou qualquer outro que não esteja nomeado nessa ordem, são “corpos estranhos” ao instituído. Só “corpos estranhos” invadem algum lugar que tem um “dono”. Nesse sentido, é coerente o uso dessa expressão classificatória. 

    De forma sucinta, é assim que entendo o que aconteceu no meu departamento. O comportamento diante desse fato e de outros, assim como em todos os departamentos da universidade, de uma forma geral, provavelmente está dominado por estruturas imaginárias da hierarquia e possui implicações nos vários planos da existência. Eu já esperava. A República ainda está para ser instituída – e ainda mais na UFPE. A minha solicitação e divulgação do vídeo da discussão sobre a retirada do nome do representante da ditadura virou um fato histórico-institucional – mas não o suficiente para vingar-se . Virou um espaço político, pois não há democracia sem espaço público. E isso incomodou. Saiu do lócus territorial. Ganhou fronteiras que não poderiam ser ultrapassadas. 

    Somente movimentos políticos “externos” podem balançar essas estruturas e possibilitar a construção de novas estruturas que não essas reinantes – essas “estruturas” não evoluem. Há um conjunto de variáveis que poderiam ser adensadas aqui, mas, para um curtíssimo texto de reflexão e provocação (estimulação), esses elementos mencionados já são bons para um início de conversa. 

    Forçar a construção de espaços públicos é a saída. Não existe democracia sem essa constituição. Democracia só existe nos papersdesses pesquisadores que conseguem façanha: instaurar democracia sem desejo, afeto, sonho e ruptura radical. Os plenos e os colegiados são a burocracia, tanatos, ausência de pensamento livre. São representantes da morte – discussão sobre a burocracia como pulsão de morte exigiria um texto específico. Funcionam como castas: reprodução estrutural de valores e interesses quase inamovíveis. 

    Precisamos de novas instituições educacionais no campo do imaginário social, mas sei que aí estaremos no campo das rupturas sociais e, neste momento, isso ainda não está sendo colocado.

    Mas, dificuldades, mesmo que profundas, não devem ser sinônimo de apatia e de baixar a aguarda. A luta precisa continuar para que as amarras patrimonialistas percam densidade e que possamos abrir fissuras e as rupturas possam emergir e que possa surgir, como diria Drummond, uma flor no asfalto. 

    Pelo fim do assédio.

    Por retirada de nomes e homenagens de representantes da ditadura na UFPE – inclusive o de Carlos Maciel

    Por uma Comissão da Verdade da UFPE

      [1]No campo da educação ainda temos poucas pesquisas sobre esse objeto, mas algumas delas dá para ser indicadas. Começo com minha tese de Doutorado, Brasilidade e a democracia escolar: O jeitinho, a malandragem e as formas autoritárias na escola pública. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/book/29; Estado patrimonial e gestão democrática do ensino público no Brasil, de autoria de Erasto Fortes Mendonça, disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/dxChfBYZjdfgPRc3v3wYZXS/abstract/?lang=pt; Gestão democrática, burocracia e cultura política brasileira, de autoria de Ionara Soveral Scalabrin, Cátia Ruas Teixeira Sauer, Natália de Almeida Ghidini; indicamos, também, patrimonialismo no Estado brasileiro, entre eles, O patrimonialismo e seus reflexos na administração pública brasileira, de autoria de Flávia Carvalho Mendes Saraiva, disponível em: https://revistacontrole.tce.ce.gov.br/index.php/RCDA/article/view/530; Reflexões Epistemológicas Acerca dos Modelos da Administração Pública Brasileira: Potencialidades, Problemas e Perspectivas, de autoria de Ronan Pereira Capobiango, Edson Arlindo Silva, Aparecida de Lourdes do Nascimento, disponível em: Microsoft Word - APB756.doc (anpad.org.br).
     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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