Qual é o discurso da esquerda para tentar virar o jogo?
"Temos pela frente uma longa luta de resistência contra os valores da extrema-direita", avalia Bepe Damasco
Uma das análises mais interessantes sobre a vitória de Donald Trump na eleição presidencial norte-americana partiu do ex-ministro José Dirceu. Com sua lucidez e visão estratégica habituais, Dirceu assinala que os resultados econômicos da gestão de Biden seriam capazes de eleger seu sucessor até pouco tempo atrás. Não mais agora, quando fatores ideológicos e culturais ganharam protagonismo, em detrimento da economia.
Essa nova realidade dá uma ideia do Everest a ser escalado pelos setores progressistas da sociedade no Brasil, na América Latina, Europa, Ásia, África e no mundo inteiro.
Essa constatação, respaldada no caso brasileiro pela vitória da direita nas eleições municipais e a estagnação do governo Lula nas pesquisas, a despeito dos ótimos resultados obtidos na economia, nos leva à conclusão de que temos pela frente uma longa luta de resistência contra os valores da extrema-direita.
Contudo, quais são as armas disponíveis para esse enfrentamento?
Se há a defesa correta de que o trabalho político deve se voltar para a juventude, como fazê-lo diante de uma imensa maioria de jovens da chamada geração Z avessa a qualquer envolvimento político?
É praticamente consenso entre militantes e dirigentes do campo popular a necessidade de se retomar do trabalho de base, especialmente nas favelas e demais bairros das periferias, para que a esquerda recupere sua influência junto ao povo.
Mas com que discurso?
Como disputar corações e mentes com as igrejas neopetencostais, a alienação antipolítica predominante ou com o terror imposto pelo crime organizado?
Como desmontar o individualismo exacerbado dos dias atuais em prol de causas coletivas?
No âmbito da classe média, como fazer valer a solidariedade versus o cada um por si? Como impedir que sigam prosperando o apoio explícito a ações policiais violentas contra os pobres?
Com que propostas vamos dar conta da febre do empreendedorismo que faz as pessoas baterem no peito e se vangloriarem de não ter patrão?
E que respostas temos para o conjunto de mudanças profundas no mundo do trabalho?
Esse é o tamanho do abacaxi a ser descascado.
Esse é o debate.
Voltando à vitória de Trump, a imprensa comercial, com suas análises, em geral, rasas e pendulares, primeiro apostou que os bons ventos da economia seriam um trunfo para levar a candidata do Partido Democrata à vitória.
Abertas as urnas e com Trump bem à frente na apuração, em um estalar de dedos providenciaram a tese de que foi justamente a insatisfação com a economia que pavimentou o caminho para o sucesso de Trump.
Tudo isso sem dar qualquer satisfação ao distinto público.
O mantra da vez dos americanófilos de carteirinha da mídia é transportar mecanicamente o resultado do pleito americano para o Brasil de 2026. Vaticinam sem parar que Lula vai perder a eleição, tragado por uma onda conservadora irresistível.
Só que até 2026 muita água ainda vai passar por debaixo da ponte. Não se pode subestimar a capacidade de Trump de produzir até lá erros, barbeiragens, e até cenas bizarras em série, gerando um inevitável desgaste para si e para seu governo.
Sou capaz de apostar que dentro de um ano, um ano e meio, sua popularidade cairá, reduzindo seu poder de influenciar eleições em outros países.
É inegável, porém, que hoje a vitória de um fascista para governar a maior potência econômica e militar do planeta, robustecido pela maioria no Senado e na Câmara, além de poder indicar mais dois ministros da Corte Suprema, deixa o mundo democrático em sobressalto.
Vem aí xenofobia em doses cavalares, ataques à democracia, protecionismo, negação da emergência climática, das vacinas e da ciência como um todo.
Ante o sinal amarelo piscando com intensidade, o governo Lula deve correr contra o tempo.
Essa nova conjuntura, virada de ponta a cabeça, indica que não vai adiantar apenas empilhar realizações econômicas. É preciso combiná-las com os embates políticos, ideológicos e culturais, encontrando a calibragem certa, além de reforçar a frente ampla.
Por que não focar em políticas que surtam efeitos rápidos na melhoria da vida das pessoas, tais como a ampliação mais acelerada da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física e a utilização de todos os instrumentos disponíveis para baratear para valer preços de alimentos de grande consumo popular, como feijão, arroz e carne?
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