Quaquá e as cartas de Brazão: por que é frágil a denúncia no caso Marielle
O assassinato da vereadora não pode ficar impune, mas, se o mandante foi outro (ou outros), não se fará justiça e, claro, a impunidade prevalecerá
Em duas cartas para a esposa, Alice, o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro Domingos Brazão reafirma sua inocência no caso Marielle Franco. Segue trecho da carta, transcrito exatamente conforme o original: “Não sei dizer porque estamos passando por essa provação, mais tenho certeza que vamos conseguir passar, Deus é testemunha da minha inocencia, confio muito em Deus, no Dr. Marcio e nos amigos que não iam nos abandonar.”
Em outra carta, ele diz: “Fique na certeza que dentro de pouco tempo estaremos juntinhos de novo, Deus é justo, sabe da minha inocencia”. A carta tem erros de português e está desalinhada. Ele reconhece e explica por que (leia as cartas abaixo).
“Peço perdão pela letra, já não é bonita sem os óculos piora, sem contar a emoção de estar escrevendo para o meu amor”, declara à esposa, que ele chama de “Russa” ou “Russa Linda”.
A maior parte do conteúdo da carta é de amor e sua referência à inocência pode ser vista como uma declaração óbvia de quem é acusado de um crime grave, a ordem para matar a vereadora Marielle Franco.
Mas, após ler a acusação contra ele e o irmão, o ex-deputado federal Chiquinho, ver a delação de Ronnie Lessa, ler depoimentos de testemunhas e conversar com seus advogados, que resposta um jornalista poderia dar à pergunta: “Os irmãos Brazão podem ser inocentes?”
A resposta é: Sim, podem. E por quê? Porque o único fato que liga os irmãos Brazão ao assassinato de Marielle é a delação do assassino Ronnie Lessa, cuja credibilidade não vale um tiro de festim.
Não há prova de que Ronnie Lessa tenha se encontrado uma única vez com os Brazão nem de dinheiro ou alguma outra vantagem que lhe tenham sido entregues ou oferecidos. E no ramo em que Lessa atua, é dinheiro na mão, ainda que uma parte antes e outra depois do crime consumado.
Quem acredita que Lessa matou Marielle acreditando na promessa de que ficaria com o serviço de milícia em uma área do Rio de Janeiro, acredita em qualquer coisa, até que o Estado fluminense não tem milícia.
Lessa sabe que a distância entre a vida e a morte para pistoleiros como ele é muito pequena e, por isso, nenhum sicário faz o serviço sem ter alguma vantagem antecipada. Até porque muitos morrem no meio do caminho.
É o que aconteceu com Capitão Adriano. Os três malfeitores que Lessa indica como pessoas que poderiam confirmar sua delação, o tal Macalé, o tal Robocop e o advogado que o delator chama de “Doutor Piroca”, não estão mais entre nós.
Então, o que corrobora o relato de Lessa? Se alguém tem algo contundente para apontar, por favor poste na seção de comentários.
Alguém poderá dizer que, tempos atrás, o ex-PM Rodrigo Ferreira acusou o miliciano Orlando Curicica e o ex-vereador Marcelo Siciliano de terem planejado a morte de Marielle e que teria feito isso a mando dos irmãos Brazão, para afastar a suspeita que havia sobre eles.
Ferreira foi condenado a quatro anos e meio por obstruir a Justiça, pois suas declarações eram mentirosas, e a investigação concluiu que ele implicou Curicica e Siciliano porque havia rompido com eles.
No caso de Curicica, havia até uma outra motivação, pois Ferreirinha teria tido caso extraconjugal que envolve o miliciano. A referência a Domingos Brazão foi parar no STJ, por prerrogativa de foro, e o caso foi arquivado por absoluta falta de prova.
O que havia contra o então conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro era um vínculo do passado entre um de seus assessores, de nome Gilberto, e o Ferreirinha. Os dois tinham trabalhado juntos.
Relacionar este fato a Domingos Brazão é ilação, não prova, motivo pelo qual a acusação contra o conselheiro não prosperou.
Lessa teria motivos para incriminar Brazão? Se quiser proteger outro, sim, mas ele, certamente, tem uma razão para acusar os dois delegados que comandaram a investigação que o colocou na cadeia, com provas irrefutáveis, Geniton Lage e Rivaldo Barbosa.
Geniton cumpre medida cautelar e Rivaldo está preso. Geniton foi afastado do caso logo depois que, ao final de uma coletiva, disse que a Polícia Civil considerava relevante a informação de que havia muitos telefonemas entre a casa de Lessa e de Jair Bolsonaro, no Vivendas da Barra, e sugeriu que iria investigar.
Não foi o único delegado que caiu depois de simplesmente mencionar Bolsonaro. Dois anos depois, o sucessor de Geniton, Daniel Rosa, também foi afastado por considerar que não estava esgotada a história do porteiro do Vivendas da Barra que enfureceu o “seu Jair”.
Quando estourou o escândalo da Abin Paralela, veio à tona o relatório do agente Marcelo Bormevet sobre Daniel Rosa. Como revelei nos documentários sobre Bolsonaro, Adélio e o evento de Juiz de Fora, Bormevet foi indicado por Carlos Bolsonaro para formar a cúpula da Abin logo no início do governo, em 2019.
Procurei o porteiro em novembro, e a informação que recebi na portaria é que ele estava de férias.
Um jornalista de outro veículo também procurou o mesmo ponteiro, e recebeu a mesma resposta. Cadê o porteiro? A Polícia Federal, ao assumir o caso, não o ouviu, e, como se vê, é difícil encontrá-lo.
Se não há motivo conhecido para algum Bolsonaro querer eliminar Marielle, o mesmo não se pode dizer do ex-vereador do Rio Cristiano Girão, um nome apontado pelas defesas de Brazão e Rivaldo como suspeito.
Girão passou alguns anos de sua vida em presídio de segurança máxima depois que foi citado 31 vezes no relatório da CPI da Milícias, de autoria do ex-deputado Marcelo Freixo, de quem Marielle Franco foi assessora.
Tinha, portanto, motivo para querer ao menos ferir o ex-parlamentar, hoje presidente da Embratur. No dia da morte de Marielle, 14 de março de 2018, Girão passou cerca de dez horas na churrascaria Rio Brasa, numa reunião com o empresário Jefferson de Souza. Detalhe: os dois moram em São Paulo e fizeram a reunião no Rio.
Em depoimento, Jefferson afirmou que achou estranho, e fez um relato intrigante: durante a tarde e o início da noite, Girão se afastou várias vezes para conversas tensas ao celular. Investigadores não têm dúvida de que o ex-vereador agiu para produzir um álibi, mas atribui seu comportamento a outro assassinato, o do miliciano Marcello Dotti, quando saá de uma unidade do Outback no Rio.
Dotti, no entanto, foi assassinado no início da madrugada do dia 15, quando Girão já tinha deixado o restaurante na Barra e, portanto, não havia mais necessidade de álibi. Além disso, Dotti foi localizado no Outback aparentemente porque um de seus acompanhantes postou na rede social que jantava naquele restaurante.
Aparentemente foi crime de oportunidade, não planejado. Já Marielle Franco divulgou com alguns dias de antecedência que, naquela tarde/noite, estaria na Casa das Pretas. Portanto, deu condições para o ex-vereador arquitetar um álibi.
O processo contra Brazão deve ter desfecho no início deste ano, já que está em fase de alegações finais. A relatoria está a cargo de Alexandre de Moraes, e seu desfecho será definitivo, já que, por se tratar da corte constitucional, não há outro tribunal a apelar.
Ao contrário do que pretendia a defesa dos irmãos Brazão, não foi possível tomar o depoimento das promotoras Rio Simone Sibilio e Letícia Emile, que deixaram o caso em julho de 2021, depois de três anos à frente da força-tarefa. Elas só iriam depor sob intimação, não a convite, e a intimação foi indeferida no STF.
Simone e Letícia teriam optado pelo afastamento por considerar que havia risco de interferência externa, mas nunca disseram de onde partiria essa interferência. O que se sabe é que, a exemplo do delegado Daniel Rosa, Simone Sibilio foi monitorada pela equipe de Alexandre Ramagem, na Abin.
Estranho tanto interesse da Abin sob o governo Bolsonaro a respeito da investigação no Rio de Janeiro. Em outro caso de grande repercussão, o da facada em Juiz de Fora, houve menosprezo quando um jornalista experiente, Fabiano Golgo, entregou algumas contas telefônicas hackeadas por Patrick Brito.
Uma delas era a de Adélio Bispo de Oliveira, mas o agente Marcelo Furtado, que mais tarde seria preso na operação Última Milha, teria dito a ele que recebeu orientação de cima de que não havia interesse na investigação.
“Mais tarde, soube que o hacker Patrick, que havia me enviado as contas, inventou aquela do Adélio, mas achei estranho que a Abin não tivesse interesse em entrar no caso”, disse, antes de me encaminhar os e-mails que trocou com o agente da Abin, cujo contato ele tinha e estava interessado em obter mais informações para uma reportagem.
Há provas de que os irmãos Brazão são inocentes no caso Marielle? Não. Mas, no mundo civilizado, o dever de provar é de quem acusa e não de quem é acusado.
A acusação contra o ex-deputado federal e o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro é frágil. Também é fraca a acusação contra o delegado Rivaldo Barbosa, de quem Lessa tem motivos óbvios para se vingar.
Se essas acusações gerarem condenações, há o risco de mais um erro judicial de dimensões históricas. O assassinato de Marielle não pode ficar impune, mas, se o mandante foi outro (ou outros) que não os irmãos Brazão, não se fará justiça, e, claro, a impunidade prevalecerá.
O prefeito de Maricá, Washington Quaquá, que é vice-presidente nacional do PF, fez bem ao receber a família de Domingos Brazão, ouvir seus relatos e expor o que pensa. Para Quaquá, os irmãos Brazão são inocentes.
Como disse Riobaldo, personagem de “Grande Sertão: Veredas”, “o que a vida exige da gente é coragem”. E Quaquá mostrou que tem.
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Seguem as cartas de Domingos Brazão à esposa:
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