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    Joaquim de Carvalho

    Colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa). E-mail: joaquim@brasil247.com.br

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    Quatro anos depois do evento de Juiz de Fora, uma nova fake news: a de que Adélio teria sido espancado

    Livro de Consuelo Dieguez relata espancamento generalizado de Adélio que não existiu, e serve de base para Folha e O Globo reforçarem versão de Bolsonaro

    Bolsonaro e o herói de Consuelo Dieguez: o PM Erlon não desviou a faca, protegeu Adélio e hoje curte a vida (Foto: Imagens cedidas ao 247 | Reuters | Reprodução/Redes Sociais)

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    A Folha de S. Paulo resenhou o livro "O ovo da serpente - Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e chegada ao poder”, de Consuelo Dieguez.

    A livro de 449 páginas descreve a ascensão da extrema direita no Brasil, com foco em personagens como o próprio Bolsonaro, Olavo de Carvalho, evangélicos como Marcos Feliciano e Silas Malafaia, entre outros.

    A publicação tem informações relevantes e pertinentes para a época, mas começa por um relato sobre a facada ou suposta facada em Juiz de Fora que não condiz com o processo nem com a apuração que realizei para o documentário “Bolsonaro e Adélio - Uma fakeada no coração do Brasil”. 

    O livro, da Companhia das Letras, foi lançado na versão digital às vésperas de 6 de setembro, que marca quatro anos do episódio. O Globo também tratou do livro, em texto publicado nesta terça-feira, de autoria de André Duchiade e Fernanda Alves.

    Tanto Folha quanto O Globo destacam o mesmo trecho de inconsistência factual que está no livro. 

    "Adélio foi espancado por policiais após facada em Bolsonaro, conta livro” é o título da resenha da Folha, de autoria de Uirá Machado. Seguem os primeiros parágrafos da resenha:

    Momentos depois de dar uma facada no então candidato Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira foi conduzido ao primeiro andar de um prédio comercial de Juiz de Fora (MG). Lá, policiais federais tiraram sua camisa e começaram a espancá-lo, numa tentativa de descobrir à força a motivação do crime.

    Enquanto apanhava naquele dia 6 de setembro de 2018, Adélio manteve-se calmo, com o olhar perdido; não chorou nem gritou, limitando-se a dizer que não concordava com as ideias de Bolsonaro.

    A surra só parou quando chegou ao local o tenente-coronel Marco Antônio Rodrigues de Oliveira, então comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais.

    Segue o relato de Consuelo Dieguez sobre o evento: 

    Momentos depois de dar uma facada no então candidato Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira foi conduzido ao primeiro andar de um prédio comercial de Juiz de Fora (MG). Lá, policiais federais tiraram sua camisa e começaram a espancá-lo, numa tentativa de descobrir à força a motivação do crime.

    Enquanto apanhava naquele dia 6 de setembro de 2018, Adélio manteve-se calmo, com o olhar perdido; não chorou nem gritou, limitando-se a dizer que não concordava com as ideias de Bolsonaro.

    A surra só parou quando chegou ao local o tenente-coronel Marco Antônio Rodrigues de Oliveira, então comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais.

    Perguntei a Consuelo se havia alguma evidência do que ela tinha narrado.

    "Tem depoimentos!!! Dá uma olhada no livro!!!

    Depoimento em on”, respondeu.

    Respondi que não havia no processo nenhum depoimento nesse sentido. E insisti sobre evidência oficial - no caso, corpo de delito - ou o depoimento do tenente coronel nos autos.

    "Conversa com a PM de JF. Talvez ajude”, ela comentou. Consuelo afirmou ainda que interpretou minha pergunta como “uma tentativa de colocar em dúvida o depoimento do livro”.

    Disse que a pergunta tinha sido objetiva - se havia evidência oficial do relato de espancamento. Explicarei adiante a importância de uma prova nesse sentido.

    A conversa terminou, com mais alguns comentários dela carregados de subjetividade, que não vêm ao caso.

    Mas, à pergunta se havia uma tentativa de colocar em dúvida o depoimento do livro, a resposta é sim. Não é por birra ou ofensa. Mas porque os fatos vão na direção contrária.

    Adélio foi levado para uma audiência de custódia no dia seguinte ao da sua prisão e a juíza perguntou se ele havia sido agredido.

    Adélio contou que foi agredido por militantes, quando estava no chão, e acrescentou que foi levado para o prédio, onde permaneceu protegido da multidão e foi informalmente interrogado.

    A juíza insistiu na pergunta se houve agressão de policiais. Ele respondeu que levou um soco de um policial quando descia a escada e era levado para o camburão, e relatou que um carcereiro, mais tarde, pisou em seu pé descalço na cadeia. Nada mais.

    Nada parecido, portanto, com a cena descrita no livro. 

    E Adélio se sentia muito à vontade quando falou com a juíza — a audiência de custódia é uma rotina imposta por lei, entre outras razões para dar ao preso a oportunidade de dizer ao magistrado se sofreu maus tratos ou outros abusos.

    Se Adélio relatou o soco que recebeu quando descia a escada, por que não falaria do espancamento generalizado, que pode ser classificado como tortura?

    O vídeo da audiência de custódia está disponível no YouTube

    O exame de corpo de delito, a que Adélio se submeteu no dia da prisão, também não dá conta do espancamento generalizado. 

    Há pelo menos um vídeo que registra o momento em que Adélio conversa no segundo andar do prédio com um policial federal. Não há nenhum movimento hostil da parte deste. Adélio está sentado no chão e o policial de pé. 

    O autor do vídeo é Cleines Pinto de Oliveira, na época cabo da Polícia Militar e candidato a deputado estadual de Minas Gerais pelo PSL.

    A questão do espancamento é importante porque, sendo fato, derrubaria a narrativa de que Adélio foi protegido por policiais e seguranças. 

    E efetivamente foi, como mostram fotos e vídeos do dia, o que, é claro, causou estranheza entre os bolsonaristas: como os policiais protegeram aquele que teria tentado matar o ídolo deles?

    Consuelo também diz que os médicos tiveram acesso a um vídeo que mostraria um PM desviando a trajetória da faca e, com isso, ele teria evitado que a lâmina atingisse o coração de Bolsonaro.

    A narrativa reproduz reportagens de publicações bolsonaristas, como o Jornal da Cidade. Mas, a rigor, não há nenhum vídeo que mostre essa ação.

    O segurança promovido a herói no livro de Consuelo é o soldado Erlon Rossignoli, que não mora em Juiz de Fora, mas em um município a quarenta quilômetros de distância. Nunca ficou claro o que Erlon fazia na cidade naquela sexta-feira. Se era um bolsonarista fanático e se apresentou como voluntário da segurança, por que não havia em sua rede social postagens a favor do “mito".

    Consuelo escreve no livro que Erlon não dá entrevista. É fato. A mim, ele não quis falar. Mas seria muito importante conversar com ele. Por que a PF não tomou seu depoimento?

    Uma pesquisa na rede social mostra que Erlon ascendeu depois do evento em Juiz de Fora. Postagens o mostram em Cancun, México, fazendo passeios de paraquedas e na neve em Santiago, além de baladas no Rio de Janeiro.

    Não são passeios comuns a quem tem salário como o de PM em Minas Gerais, hoje cerca de R$ 3,9 mil brutos.

    No dia do evento em Juiz de Fora, um fotógrafo profissional fez mais de mil fotos. 

    Vi a sequência desde a concentração no Parque Halfeld até a cruzamento do calçadão com o Batista de Oliveira, onde o ocorreu a facada ou suposta facada.

    Erlon só aparece nas imagens no terço final da caminhada. Está de camiseta regata com estampa de bloco de Carnaval e ao lado de Adélio. Os dois não conversam, mas parecem interagir com Felipe Felix, o principal segurança de Bolsonaro.

    Felix é agente da Polícia Federal e se aproxima dos dois - e de um rapaz não identificado com cabelos cortados em estilo moderno. A conversa ocorre depois da primeira tentativa de Adélio de acertar Bolsonaro.

    Adélio foi ostensivo e fez tanto esforço que derrubou um segurança voluntário. Bolsonaro fez sinal de calma com a mão, e desceu do ombro de um apoiador. Permaneceu no chão por alguns minutos. Subiu em outro apoiador e Felix foi conversar com Erlon, com Adélio e o rapaz de corte moderno ao lado.

    Cerca de 100 metros adiante, ocorreu o golpe, em que Bolsonaro se contorceu e foi levado para o chão de uma lanchonete. Ele ficou ali até a chegada da SUV preta que tinha Carlos Bolsonaro no banco de passageiro. O carro foi para a Santa Casa, onde médicos o operaram.

    Não afirmo se houve ou não a facada, mas Erlon não é, efetivamente, o herói de Bolsonaro, talvez o seja de Adélio, já que todo o movimento dele não foi para socorrer Bolsonaro, mas para evitar que Adélio fosse agredido.

    Depois de afastar aqueles que queriam agredir Adélio, ele o colocou no chão, e se deitou em cima, e levou chutes, tapas e socos que seriam dirigidos ao autor da facada ou suposta facada.

    Mas esta não é a única inconsistência grave do livro de Consuelo Dieguez referente ao episódio de Juiz de Fora.

    A jornalista apresenta o advogado Zanone Manuel de Oliveira Junior como um especialista em direito civil que teria se aproveitado do evento em Juiz de Fora para ganhar dinheiro com curso na área de direito penal.

    "A verdade é que, até assumir o caso de Adélio Bispo de Oliveira, Zanone Júnior advogava majoritariamente na área cível da Justiça de Minas Gerais, em causas como indenizações por acidente de trânsito, danos morais, falências de empresas, direito do consumidor e direito previdenciário. Sua experiência em direito penal anterior à facada era praticamente nula. Mais tarde, em 2020, Zanone Júnior se repaginaria: montaria um escritório especializado em direito penal, além de criar um curso de direito, o Criminal Busine$$”, escreve.

    O relato corrobora a versão de que Zanone buscou o caso para ter exposição midiática e lucrar com isso - o que, sendo verdadeira, enfraqueceria a hipótese de que teria assumido o caso para isolar Adélio.

    Se quisesse exposição, Zanone faria melhor se lutasse pelo julgamento perante tribunal de júri, por tentativa de homicídio. 

    Mas Zanone fez o oposto: pediu que o caso ficasse na Justiça Federal em razão da lei de segurança nacional, a transferência dele para um presídio de segurança máxima em outro Estado e a abertura de um incidente de insanidade mental contra o cliente.

    Se Adélio tivesse ido a júri, já estaria no regime semiaberto, em razão da progressão da pena. Mas o advogado foi o primeiro a apresentar um laudo para que Adélio fosse considerado inimputável, por Transtorno Delirante Persistente.

    Com isso, Adélio corre o risco de permanecer eternamente na prisão. Zanone adotou esse caminho porque não tinha experiência no direito penal?

    Errado. 

    Ao contrário do que diz Consuelo em seu livro, Zanone já era pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal quando assumiu o caso Adélio e tinha atuado em casos de repercussão como o do assassinato de Eliza Samudio (caso do goleiro Bruno) e o da missionária Dorothy Stang. 

    O escritório dele já contabilizava centenas de atuações no tribunal do júri.

    O livro não informa que Zanone foi afastado do caso como advogado, depois de uma carta de Adélio à Defensoria Pública da União. Adélio queria ser transferido para uma cadeia próxima da família, mas Zanone não encaminhou o pedido.

    Ele deixou a posição de advogado, mas não o caso. Apesar de Adélio ter irmãos, Zanone foi nomeado curador processual pela Justiça Federal em Juiz de Fora.

    Uma das irmãs, Maria das Graças Oliveira, tenta visitar Adélio há pelo menos sete meses, mas não consegue. Quando era advogado, Zanone não mexeu uma palha para atender ao pedido dela e de outro parente, o sobrinho, para visitar o parente.

    Por conta própria, Maria das Graças fez seu cadastro no presídio federal de Campo Grande, há quase dois meses, mas não houve resposta. 

    Em quatro anos, Adélio nunca teve a oportunidade de falar com um membro da família, apenas com advogados, defensores públicos, o delegado da PF, uma única vez com um magistrado (a juíza da audiência de custódia), e uma única vez com um perito do Mecanismo de Prevenção à Tortura, o que ocorreu por acaso.

    Ao perito, ele declarou que o advogado atuava contra os interesses dele e reclamou da falta de contato com a família.

    Nada disso é relatado no livro de Consuelo Dieguez. Ela dá ênfase a uma versão que era propagada em publicações da extrema direita, como o Jornal da Cidade, a de que Erlon teria salvado a vida de Bolsonaro.

    O livro de Consuelo tem informações relevantes, no entanto, que podem ser usados se alguma autoridade independente se dispuser a investigar o que houve em Juiz de Fora quatro anos atrás.

    Ela diz, por exemplo, que o então deputado federal Marcos Montes foi quem apresentou empresários do agronegócio, como ele, para Jair Bolsonaro. Nos pertences de Adélio, além da carta em que pede desfiliação do PSD, a PF apreendeu um cartão de visitas com o celular de Marcos Montes, o que derruba a versão de que fosse militante do PSOL.

    Pelos documentos encontrados, ele estava muito mais próximo da ala mais à direita do PSD.

    O caso em Juiz de Fora, que mudou os rumos do País, não está encerrado, ao contrário do que o livro de Consuelo e a velha imprensa insistem em afirmar.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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