Queimem o planeta e encarcerem os dissidentes
A indústria de combustíveis fósseis, e a classe política que ela possui, não têm a intenção de interromper o ecocídio
Publicado originalmente no Substack do autor em 6 de outubro de 2024
Norfolk, Reino Unido — Estou sentado com Roger Hallam, seu cabelo grisalho preso em um rabo de cavalo, na sala de visitas da prisão de Sua Majestade Britânica em Wayland. Nas paredes, há grandes fotografias de famílias fazendo piqueniques em gramados, prados verdes e crianças brincando. A justaposição das fotografias, sem dúvida penduradas para dar à sala de visitas da prisão uma sensação acolhedora, é desconcertante. Não há como escapar, especialmente com os guardas da prisão circulando ao nosso redor, do lugar onde estamos. Roger e eu sentamos em cadeiras estofadas e baixas e nos encaramos através de uma mesa baixa de plástico branco. O corpo esguio de Roger tenta se ajustar ao mobiliário projetado para acomodar crianças.Roger, um dos fundadores da Extinction Rebellion, Insulate Britain e Just Stop Oil, está cumprindo uma sentença de cinco anos de prisão por “causar incômodo público sem justificativa razoável”.
Ele e seus quatro co-réus, que receberam sentenças de quatro anos cada um, foram condenados por realizarem uma chamada no Zoom em 2022 para organizar ativistas a subirem em pontes sobre a M25, a principal rodovia que circunda a Grande Londres. O objetivo de curto prazo era parar o tráfego. O objetivo de longo prazo era forçar o governo a interromper a emissão de novas licenças de petróleo e gás.
Este não foi um protesto simbólico, exemplificado por manifestantes jogando sopa de tomate nos Girassóis de Van Gogh, protegido por um vidro, na Galeria Nacional de Londres. Este foi um protesto projetado para interromper, como de fato interrompeu, o comércio e a máquina do Estado. Embora até mesmo os manifestantes que jogaram sopa na pintura, que não foi danificada, tenham recebido duras penas de prisão de quase três anos.O aquecimento global deve exceder 1,5 grau Celsius (2,7 graus Fahrenheit) na década de 2020 e 2 graus Celsius (3,6 graus Fahrenheit) antes de 2050, de acordo com um estudo de 2023 publicado no Oxford Open Climate Change Journal. Cientistas da NASA alertam que “um aumento de 2 Celsius graus nas temperaturas globais é considerado um limiar crítico - acima do qual ocorrerão efeitos perigosos e em cascata das mudanças climáticas causadas pelo homem.”
Quanto mais o planeta se aquece, mais se intensificam os eventos extremos - como secas severas, ondas de calor, tempestades intensas e chuvas torrenciais. A extinção da vida animal e vegetal se acelera — um milhão de espécies de plantas e animais estão atualmente ameaçadas de extinção.
Estamos à beira de pontos de inflexão, limiares além dos quais as camadas de gelo, os padrões de circulação oceânica e outros componentes do sistema climático se alteram e aceleram mudanças irreversíveis. Existem também pontos de inflexão nos ecossistemas, que podem se degradar a tal ponto que nenhum esforço para salvá-los pode impedir os efeitos das mudanças climáticas descontroladas. Nesse ponto, “ciclos de retroalimentação” farão com que as catástrofes ambientais acelerem umas às outras. O jogo estará acabado. Nada nos salvará.
A morte em massa causada por desastres climáticos está se tornando a norma. O número oficial de mortos pelo Furacão Helene é de pelo menos 227, tornando-o o mais mortal nos Estados Unidos continentais desde o Furacão Katrina em 2005. Na Carolina do Norte, Carolina do Sul e norte da Geórgia, 1,1 milhão de pessoas continuam sem eletricidade. Cidades montanhosas, sem eletricidade e serviço de celular, estão isoladas. Centenas de pessoas estão desaparecidas, com muitas delas temidas como mortas. De 5.000 a 15.000 pessoas foram mortas no ano passado em uma única noite pelo Ciclone Daniel, na Líbia.
Essas catástrofes climáticas, que ocorrem rotineiramente no Sul Global, em breve caracterizarão a vida para todos nós.
“Um bilhão de refugiados, o pior episódio de sofrimento na história da humanidade”, diz Roger sobre a marca de 2 graus Celsius, “e então ocorrerá a extinção humana”.
E ainda assim, com a devastação batendo às suas portas, incluindo o sudoeste dos Estados Unidos enfrentando as temperaturas mais altas já registradas em outubro — 117 graus Fahrenheit em Palm Springs — os oligarcas globais não têm a intenção de arriscar os seus privilégios e poder interrompendo uma economia movida por combustíveis fósseis e pela pecuária, responsável por 18% das emissões de gases de efeito estufa. O gado e seus subprodutos representam 32.000 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) liberadas a cada ano na atmosfera e 51% das emissões globais de gases de efeito estufa.
Em vez de uma resposta racional, temos mais perfurações e concessões de petróleo, mais tempestades catastróficas, mais incêndios florestais, mais secas, fazendas industriais tóxicas, a farsa das conferências da ONU sobre as mudanças climáticas (COP), a erradicação das florestas tropicais e a falsa panaceia da geoengenharia, captura de carbono e inteligência artificial.
Os subsídios aos combustíveis fósseis aumentaram em todo o mundo — de 2 trilhões para 7 trilhões de dólares, segundo o Fundo Monetário Internacional — à medida que os governos buscam proteger os consumidores do aumento dos preços da energia. Isso apesar do fato de que, há dois anos, na cúpula do clima COP26 em Glasgow, os governos prometeram eliminar gradualmente os subsídios aos combustíveis fósseis.
Os governos que facilitam o genocídio em Gaza são, sem surpresa, os senhores do genocídio global.
Como escreve o autor sueco e professor de ecologia humana Andreas Malm, “a destruição da Palestina é a destruição da Terra.”
“A destruição de Gaza é executada por tanques e aviões de combate despejando seus projéteis sobre a terra: os Merkavas e os F-16s lançando seu fogo infernal sobre os palestinos, os foguetes e bombas que transformam tudo em escombros — mas somente depois que a força explosiva da combustão de combustíveis fósseis os colocou na trajetória certa”, escreve Malm, que, junto com Wim Carton, escreveu Overshoot: How the World Surrendered to Climate Breakdown [Ultrapasando: Como o Mundo se Rendeu ao Colpaso do Clima]. “Todos esses veículos militares funcionam com petróleo. O mesmo acontece com os voos de abastecimento dos EUA, os Boeings que transportam os mísseis pela ponte aérea permanente. Uma análise preliminar, conservadora, constatou que as emissões causadas durante os primeiros 60 dias de guerra equivalem às emissões anuais de entre 20 e 33 países de baixa emissão: um pico repentino, uma pluma de CO2 subindo sobre os escombros de Gaza. Se repito o ponto aqui, é porque o ciclo se auto-repete, apenas crescendo em escala e tamanho: as forças ocidentais pulverizam as áreas residenciais da Palestina, mobilizando a capacidade ilimitada de destruição que só os combustíveis fósseis podem proporcionar.”
O julgamento de três semanas para os ativistas do Just Stop Oil, assim como as audiências do tribunal para Julian Assange, negou aos acusados o direito de apresentarem evidências objetivas. Os réus não foram autorizados a falar sobre mudanças climáticas, o motivo de seu protesto. Roger, desafiando a proibição, tentou se dirigir ao júri sobre a crise climática. O juiz ordenou a sua prisão por desacato ao tribunal. Ele foi removido do tribunal por seis policiais. Quando o juiz sentenciou Roger e seus co-réus, Daniel Shaw, Louise Lancaster, Lucia Whittaker De Abreu e Cressida Gethin, disse a eles que haviam "ultrapassado a linha de ativista preocupado para fanático."
Os cinco ativistas não foram condenados por participar dos protestos, mas por seu planejamento. A evidência usada no tribunal para condená-los veio de uma reunião online do Zoom que foi capturada por Scarlet Howes, uma repórter que se fazia passar por apoiadora do jornal sensacionalista “The Sun.” Sem dúvida, agora algum think-tank de combustíveis fósseis está sonhando com um prêmio de jornalismo para Howes.
As penas para aqueles que se envolvem em protestos climáticos se tornaram progressivamente mais severas, mais longas do que muitas das penas impostas àqueles que participaram de atos de violência durante os tumultos racistas em Southport, como aponta Linda Lakhdhit, diretora jurídica da Climate Rights International.
Admirei Roger por muito tempo - que está usando o colete de cor ferrugem que todos os prisioneiros na sala de visitas são obrigados a usar - não apenas por sua coragem, mas por sua crença de que a resistência contra o mal radical é um imperativo moral. Não se trata, em última análise, do que podemos ou não alcançar. Trata-se de desafiar, literalmente quando falamos de ecocídio, as forças da morte para proteger e nutrir a vida.
Eu me dirigi a uma multidão em Londres no dia 11 de setembro para arrecadar dinheiro para a defesa legal dos cinco ativistas presos. Os organizadores do Kairos Center tocaram uma introdução gravada que Roger havia enviado de sua cela antes da minha palestra.
“Mudança,” disse ele na mensagem gravada, “não ocorre por meio da razão instrumental, ou seja, você faz algo para que algo aconteça, mas sim porque você não pode ficar parado, e assim você age, para ser o que você é. A razão crítica pela qual estamos falhando, na minha visão, é porque compramos a ideia de que eles podem nos oprimir ao nos enviarem para a prisão. Enquanto, de fato, o poder reside em nosso medo de ir para a prisão, não no ato de fazê-lo em si. Uma vez que percebemos que tudo se resume ao medo, temos aquele momento de iluminação. Não é o que eles fazem conosco, mas como escolhemos reagir que determina o poder deles.”“Você realiza o bem, não para criar bons resultados,” ele me diz, “mas porque é bom, porque é verdadeiro, porque é uma coisa bonita de se fazer, porque cria uma harmonia metafísica, um equilíbrio.”
As táticas empregadas nas últimas décadas pelos ambientalistas — marchas, lobby, votação e petições — falharam.
Em 1900, a queima de combustíveis fósseis — principalmente de carvão — produziu cerca de 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Esse número triplicou até 1950. Hoje, o nível é quase 20 vezes maior do que o número de 1900. Durante as seis décadas, o aumento de CO2 foi 100 vezes mais rápido do que a Terra experimentou durante a transição da última era glacial, segundo a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica.
Esta é a sétima vez que Roger está encarcerado no sistema prisional britânico, que é afetado pela falta de financiamento adequado, infraestrutura em ruínas, serviços reduzidos, problemas de recrutamento e retenção de funcionários e severa superlotação.
“Quando fui para a prisão pela primeira vez, os guardas podiam ser sadistas, ex-militares de nossas guerras coloniais,” diz ele. “Agora eles geralmente são educados, mas nada funciona.”
Os sapatos dele se desintegraram, mas seus pedidos repetidos por novos sapatos foram ignorados. Outro prisioneiro, que tinha um par extra, deu-os a ele.
Eu me coloco na fila na pequena cantina para comprar algo para comer. Fui autorizado a trazer 40 libras esterlinas para a prisão. No menu, eles têm um sanduíche de salsicha vegana. Roger e eu somos veganos. Mas quando chego ao balcão, sou informado de forma brusca que as opções veganas estão indisponíveis.
Roger argumenta que se 10.000 pessoas estiverem dispostas a se envolver na resistência civil, o que significa aceitar penas de prisão por desobediência civil não-violenta, realizar campanhas educacionais de base e mobilizar assembleias públicas, elas podem acender de um a dois por cento da população por abraçarem a militância para romper a ordem existente.
Ele se baseia na pesquisa de Erica Chenoweth, uma cientista política da Universidade de Harvard, e Maria J. Stephan, que examinaram 100 anos de movimentos de resistência violentos e não violentos em seu livro “Por que a Resistência Civil Funciona.” Elas concluíram que movimentos não-violentos têm sucesso duas vezes mais frequentemente do que levantes violentos. Movimentos violentos funcionam principalmente em guerras civis ou no término de ocupações estrangeiras, elas descobriram. Movimentos não-violentos que têm sucesso apelam àqueles dentro da estrutura de poder, especialmente à polícia e aos servidores civis, que estão cientes da corrupção e decadência da elite do poder e estão dispostos a abandoná-los. E a história demonstrou que só precisamos de um a cinco por cento da população trabalhando ativamente para a derrubada de um sistema, mesmo as estruturas totalitárias mais cruéis.
“Não se trata apenas de mudar o mundo,” diz Roger. “Trata-se de ver o mundo de uma maneira diferente, uma maneira que rejeita a narrativa da ideologia dominante. É um reencantamento do mundo. Trata-se do nosso espírito ocupando o centro do palco. É aqui que ele pertenceu o tempo todo. Mas o espírito só se torna real por meio da ação. O espírito se torna carne, para usar uma linguagem antiga.”“Não estou chamando para uma jornada individualista de iluminação pessoal, o que é uma contradição em termos,” diz ele. “Não estou chamando para uma calma que nunca sai da sua cabeça, que nunca te tira do sofá e vai para as ruas. O espírito está na rua. A rua é o espírito. O espírito está na cela da prisão. O tempo de fingir se acabou. Estamos enfrentando o fim do velho mundo, e teremos que lutar para criar o que vem a seguir.”
E então é hora de ir embora. Nós nos abraçamos. Prometo enviar livros para ele. Aqueles de nós que estamos na sala de visitas somos enfileirados e escoltados pelos guardas através de uma série de portas trancadas até o pátio da prisão.
Roger está pagando um alto preço pela sua resistência, pela vida moral.
Henry David Thoreau se recusou a pagar um imposto sobre a propriedade para protestar contra a invasão dos EUA ao México, que ele condenou como um esforço para tomar território para expandir a escravidão. Ele foi preso e encarcerado por evasão fiscal em 1846.
“Eu digo, quebre a lei,” Thoreau escreveu em seu ensaio “Desobediência Civil.” “Deixe a sua vida ser uma contra-fricção para parar a máquina. O que eu tenho que fazer é ver, de qualquer forma, que não me rendo ao erro que condeno.”
Ralph Waldo Emerson, o filósofo transcendentalista cuja palestra na Escola de Divindade provocou indignação entre o clero e levou a Universidade de Harvard a não convidá-lo de volta para falar por mais trinta anos, visitou Thoreau na prisão.
“Henry, o que você está fazendo aqui dentro?” Emerson perguntou.“O que você está fazendo aí fora?” Thoreau respondeu.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: