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    Marilena Chauí

    Marilena Chaui é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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    Refazer o país

    "A tarefa do novo governo será enorme, difícil, e exige que a esquerda encontre seus pontos em comum", escreve Marilena Chauí

    Luiz Inácio Lula da Silva em ato na Zona Sul de SP (Foto: Divulgação / Ricardo Stuckert)

    Por Marilena Chauí 

    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    A tarefa da esquerda

    Há uma visão ideologizada e, por tanto, ilusória, de que a pluralidade da esquerda representa uma crise. Eu penso que, pelo contrario, a multiplicidade enriquece a concepção da esquerda. Sem apagar as diferenças, nem pretender uma falsa unidade, a reunião periódica das esquerdas, em determinadas circunstâncias, é essencial. Há momentos em que um setor paralisa e outros procedem. De vez em quando o PT se paralisa, mas isso é compensado por inovações do PSOL.

    Tenho insistido de que, pelo menos no primeiro ano de governo, tem que haver uma reunião, uma perspectiva comum, porque o governo vai enfrentar uma dificuldade gigantesca. Vai ter que refazer o país.

    Há 33 milhões de desempregados no Brasil, 30 milhões de pessoas passando fome. Não há condição de pensar num plano econômico e de restruturação se a esquerda não operar em conjunto. Porque a oposição que vai ser feita, tanto pela direita como pelo centro, vai ser gigantesca.

    A tarefa é enorme, difícil, lenta, e exige que a esquerda encontre seus pontos comuns.

    Cinco pontos em comum

    Será preciso recuperar uma proposta contra a economia neoliberal. É preciso recuperar o papel do fundo público e dirigi-lo a atender os direitos sociais. O fundo público tem que assumir novamente seu papel de garantia desses direitos.

    Um segundo ponto é retomar aquilo que foi característica importantíssima do primeiro governo Lula: as conferências nacionais. O PSOL denomina de “consulta contínua às bases”. É necessária a retomada, num nível mais intenso, das conferências nacionais. O Poder Executivo e uma parte do Legislativo devem estar em contacto permanente com as demandas sociais.

    Um terceiro ponto comum é a ideia de uma reconfiguração do Legislativo. Não sei se vai ter êxito, nem se será possível, mas é preciso encaminhar, logo no início, uma reforma política.

    Um quarto ponto é o lugar proeminente da educação, a retomada da educação contra o desmonte do que foi trazido pela doutrina difundida por Olavo de Carvalho. Não houve um Ministro de educação deste governo que se salvasse. Não houve intervenção sobre a docência, mas houve no financiamento das pesquisas, nas escolhas dos Reitores, um desbaratamento total das faculdades técnicas (uma ideia muito cara à Dilma Rousseff).

    Um quinto ponto é a questão de gênero. Não pensava ser possível, no Brasil, o machismo exposto nas formas mais perversas como nestes últimos cinco anos. Não é só a questão do machismo. É a da sexualidade, de gênero, das mulheres.

    A agenda anticomunista

    A agenda anticomunista esvaziou e eles pegaram uma carona na agenda do Donald Trump, que também se esvaziou.

    A desmontagem dessas duas perspectivas faz com que a extrema direita caminhe em direção ao totalitarismo (não ao fascismo), por meio das Igrejas evangélicas, que desbarata a classe trabalhadora, toma o precariado para si e impede uma organização da base social. Esse é o projeto: impedir a organização da base social, da classe trabalhadora. Esse é o programa do movimento “Escola sem partido” e era a plataforma do Olavo de Carvalho.

    Ao mesmo tempo, o percurso politico vai ser o da ameaça contínua da derrubada do governo, de intervenção no Legislativo e de ameaça de golpe quase cotidiana. Eu temo o que possa acontecer de outubro ou novembro até primeiro de janeiro, quando o novo governo toma posse. Não é só a ameaça de golpe, mas também a possibilidade do assassinato do Lula. Tem voluntário à beça para fazer isso.

    A vitória de Lula

    Essa é a única possibilidade que temos de refazer o país. Por um lado, ela representa uma exigência social e política de encontrar uma barreira para a extrema direita e para as formas mais perversas do neoliberalismo.

    Eu vejo Lula como um estadista. Ele representa a percepção do Brasil na América Latina e no mundo; do nosso papel, que aparece com a criação do Mercosul e logo se desenvolve com nossa presença em grupos como o G-20 e o G-8, em nossa política externa de afirmação e não de subordinação.

    Em termos populares, é a esperança de retorno dos direitos sociais, de recomposição da economia e da educação, que precisa ser refeita de cima abaixo.

    Ele vai ter que negociar muito e não é por acaso que escolheu como candidato a vice-presidente o ex-governador Geraldo Alckmin. O vejo capaz de perceber quais são as negociações que garantirão direitos à sua base social. Não é uma negociação para se manter no poder, é uma negociação na qual certas exigências básicas terão que ser negociadas. Ele é capaz de fazer isso.

    Lava Jato

    Fui contra essa operação desde o primeiro instante, quando ainda aparecia como algo honesto. Nunca deixei de relacionar o timing da aparição do projeto com as dificuldades da economia, na época do governo de Dilma Rousseff. Havia dificuldades no manejo da economia, com a troca de ministros e a Lava Jato funcionando. Dilma Rousseff é uma mulher de princípios que não negocia. Não era desconhecido, no país, o antagonismo entre ela e o Michel Temer. Ela tolerou aquele vice, mas não o deixava participar em nada do governo.

    A Lava Jato me fazia recordar a figura do Carlos Lacerda. Em instante nenhum considerei que havia seriedade na Operação Lava Jato. Pesquisei um pouco a formação e o trabalho dos principais agentes da Lava Jato. Eles não eram expressão do que havia de excelente no mundo jurídico brasileiro. Eram figuras inexpressivas.

    Considerei a Lava Jato como emissária do Departamento de Estado norte-americano. A vi como uma operação política. Isso logo tornou-se uma evidência enorme. O fato de ter como alvo a Petrobras (e sabemos o que quer dizer isso), indica que havia alguma coisa por trás.

    As Forças Armadas

    O golpe de 1964 ocorreu sob o guarda-chuva da Aliança para o Progresso, da política do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e do governo Kennedy. Militares brasileiros, educados nos Estados Unidos, trouxeram a ideia de que Cuba era uma ameaça, vieram com um projeto, logo adaptado à realidade brasileira.

    No início do governo do Marechal Castelo Branco (1964) e no período final da ditadura militar, com o general Golbery do Couto e Silva, eles tinham uma ideia do que era o Brasil, do que devia ser a América Latina e do que deviam fazer. A resposta armada da esquerda ao governo militar provoca algo não previsto: o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968. Após esse Ato foi preciso reelaborar o projeto, e isso é o que o Golbery tentou fazer. Havia no governo gente bem formada, informada, com projetos. Não é o que temos agora.

    Hoje temos na ativa as Forças Armadas tradicionais, mas destituídas de um projeto nacional. Do lado do Executivo temos simplesmente uma apropriação econômica dos recursos do Estado. Jair Bolsonaro absorveu, no Poder Executivo, um setor das Forças Armadas. Há quase dez mil militares no governo. Os militares se viram numa posição de poder sobre o mundo civil e, mediante uma corrupção sem fim, a possibilidade de ficarem ricos.

    Se houver golpe será feito por esse grupo que se encravou no poder do Estado e que não quer perder os privilégios que conseguiram.

    (Texto estabelecido a partir de entrevista concedida ao jornalista Gilberto Lopes.)

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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