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    Urariano Mota

    Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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    Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos

    As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo

    Ex-deputado federal Rubens Paiva (Foto: Secretaria de Estado da Cultura/SP)

    Hoje pela manhã, enquanto seguia para um médico, disse à senhora  Francêsca:

    - Não me sai da cabeça esta composição de Mozart – e tentei cantarolar, ou assassinar com a voz esta obra-prima 

    Mozart: Eine Kleine Nachtmusik, I. Allegro | New Century Chamber Orchestra

    E continuei: 

    - Isso é bem melhor que Roberto Carlos, não é?

    Ao que ela me respondeu: 

    - É. Aí já seria uma tortura. 

    Aquilo me ficou. Depois, enquanto esperava no consultório, me lembrei de que eu já havia escrito sobre Roberto Carlos e a tortura nos anos da ditadura brasileira. Ao chegar em casa, revi o texto de 2014, que volta à tona com o justo sucesso do filme “Ainda estou aqui’. Aos trechos. 

    Em mais de uma oportunidade já escrevi que podíamos escrever a história política do Brasil a partir do som da sua música popular. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. (Ao que acrescento agora em 2025: assim é com o romance “A mais longa duração da juventude”, onde há discussões homéricas sobre os grandes compositores da música popular).

    Mas jamais poderia imaginar, e aqui mais uma vez a realidade supera o imaginado, que a música popular fosse usada do modo mais vil, como o noticiado na imprensa dos últimos dias. 

    A informação consta de um depoimento escrito pela professora Cecília Viveiros de Castro, que esteve presa nas mesmas instalações que Rubens Paiva. Cecília estava então com 48 anos,. Ela foi detida ao voltar de uma visita ao filho, Luiz Rodolfo, exilado no Chile

    Com ela estava Marilene Corona Franco, cunhada de seu filho. As duas traziam cartas de outros exilados para suas famílias.  No prédio da Aeronáutica, elas ouviram gritos de um preso que estava sendo interrogado. ‘Era a primeira vez que constatava a existência dos horrores da tortura, tão negados pelo governo’, diz.

    Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocavam ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos...”

    A notícia não informa, talvez em nome da objetividade, que o ex-deputado Rubens Paiva foi morto ao som de Roberto Carlos por diferentes razões na escolha das músicas. Tentemos um esboço aqui. Roberto Carlos, o Rei, veio na contramão, contrário à rebeldia política, em real estado de conformismo. 

    A “maioria silenciosa”, nela incluídos os jovens mais alienados do mundo, os pequeno-burgueses que apenas queriam uma razão de se dar bem na vida, em lugar de uma razão de viver, acompanhavam Roberto Carlos na canção “Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui / Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui … / Quem poderá dizer o caminho certo / É você, meu Pai / Jesus Cristo! Jesus Cristo!….”

    As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo. As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem que no tempo da ditadura a música era também uma realização política, a música era uma concreção, o mais próximo de uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude rebelde era um ato inalienável de combate.

    Sei que os fãs do “Rei” vão dizer: “Roberto Carlos não tem culpa dos crimes da ditadura”. É verdade. Mas, por coincidência, a música de Roberto Carlos acabou por ser uma das mais representativas desses anos. O Rei não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Entre outras, o Rei compôs a canção que foi um hino, um gospel de corações vazios, um som sem fúria de negros norte-americanos. O Rei orou “Jesus Cristo, eu estou aqui”. Que profunda ironia para o nome do filme “Ainda estou aqui”.

    É uma perversa vitória do real que esse crime expresse tão cruel o valor da música popular no Brasil. Roberto Carlos e Rubens Paiva, numa estranha associação que eles não queriam. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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