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    Roberto Ponciano

    Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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    Ruda Ricci e a esquerda “cachorro que corre atrás de pneu de caminhão”

    A esquerda vive uma grande crise que não será resolvida com lugares comuns esquemáticos, por nenhum intelectual que cisme de reinventar a roda

    (Foto: Mídia NINJA)

    Num artigo bem ruinzinho e muito maniqueísta, chamado de “a esquerda que não é esquerda”, com citações descontextualizadas de Lênin e de algumas críticas feitas à URSS – sem nenhuma ligação com a classificação que o próprio Rudá inventa, ele divide a esquerda brasileira em esquerda “institucional” e “esquerda social”. 

    Não dá para dizer que o texto tem um viés anarquista, porque seria rebaixar muito à boa crítica feita por Marx a vários textos anarquistas, incluindo o ótimo “Miséria da filosofia”, no qual Marx vai mergulhar em teoria econômica e filosófica, para, no fundo, fazer uma autocrítica de posições anteriores utópicas suas, e dar um golpe mortal às teorias sem nenhuma dialética de Proudhon.

    O texto divide, como Moisés dividiu o Mar Vermelho, e neste ponto é bem messiânico – como se Rudá houvesse acabado de descer do Monte Sinai, destruído o bezerro de ouro e consignado o que é doravante, esquerda e o que não mais o é (obviamente ele se situando dentro do campo do que seria esquerda e sento o mentor desta nova classificação, bem tosca, diga-se de passagem), ou quem poderá ou não ser considerado de esquerda no Brasil, de acordo com o conceito tosco de roda de conversa, sem pretensões de alcançar o poder de Estado (este pecado cruel que deverá lançar os cobiçosos no nono círculo de inferno, enterrados no gelo de cabeça para baixo, ao lado de Judas e Satanás).

    E porque digo que a classificação é bem tosca, porque passa longe dos grandes problemas e discussões da esquerda no século XXI, que estão longe de serem uma divisão estática, não metodológica e não dialética entre o que seja “institucional” e o que seja “social”. Óbvio que a esquerda, e não só a brasileira vive uma grande crise, inclusive de paradigmas, que não será resolvida com lugares comuns esquemáticos, por nenhum intelectual que cisme de reinventar a roda.

    A questão da discussão do espaço subversivo (prefiro esta palavra a social, até porque social não significa absolutamente nada, afinal, o institucional é social também), não institucionalizado (no sentido de não adstrito à disputa estatal e para além do espaço da disputa meramente legal), e do espaço da disputa dentro do aparelho estatal, é discussão ontológica e epistemológica fundadora da teoria da esquerda, e nunca pode ser resolvida com lugares comuns mágicos de 20 linhas.

    A teoria marxista começa com uma crítica visceral e subversiva do Estado burguês, mas de um Estado burguês europeu, voltado para uma revolução industrial que mormente acontece na Europa e nos Estados Unidos e voltado para uma classe operária em crescimento, o sujeito universal, a classe carente universal sem privilégios, capaz de emancipar toda a humanidade:

    “Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.”, 

    O trecho final do Manifesto do Partido Comunista não é um programa, mas é uma declaração de guerra aberta à burguesia, às vésperas da Primavera dos Povos, que sacudiria toda a Europa, de 1848 a 1851, e na qual Engels lutou de armas nas mãos, e na qual Marx teve papel de destaque na disputa ideológica, tendo ambos sido expulsos da Europa continental a partir da derrota da revolução na Alemanha. Obviamente, não dá para olhar para o Manifesto do Partido Comunista e aplicá-lo sem situá-lo no tempo e no espaço para a esquerda no século XXI.

    A crise da esquerda é muito mais profunda e não passa por esta bobageira maniqueísta de “social x institucional”. 

    Em primeiro lugar, a crise da esquerda tem um aspecto ontológico e epistemológico ligado à diminuição e mesmo ao desaparecimento da classe operária fabril em vários países. A teoria de emancipação marxista é construída em cima não do termo “trabalhadores”, péssimas traduções do Manifesto Comunista trazem o termo trabalhador, em lugar do termo proletário, é não é uma questão aqui de vaidade de briga por conta de uma tradução. Marx e Engels sabiam porque e para quem estavam escrevendo, e usaram proletário para determinar uma fração de classe citadina e fabril.

    Michel Lowy tem um ótimo e metodológico livro chamado “A teoria da revolução no jovem Marx”, no qual ele passeia pela juventude de Marx e vai mostrando, com dialética, dentro da ideia marxista, como Marx é tanto criador quanto criatura de sua teoria. O largo contato com os movimentos conspiracionistas e radicais dos trabalhadores franceses e ingleses (inclusive suas insuficiências que levarão Marx, por exemplo, a distinguir artesãos de proletários fabris) levaram ambos, Marx e Engels a criar uma teoria revolucionária de uma vanguarda proletária fabril em formação, que durante décadas colocará a burguesia em pé e tomará de armas para assaltar o poder, com sucesso ou não, não só na Europa, como em países periféricos do mundo.

    A primeira grande crise teórica ontológica e epistemológica da esquerda atual (e não só no Brasil) se dá pela extinção gradual da classe operária fabril. O processo de automação e robotização das fábricas reduz o tamanho e a proporção da classe industrial fabril e sua importância estratégica na luta. Isto é algo que muda drasticamente a teoria, porque, muitos partidos, movimentos e teóricos, em lugar de seguir a primeira lei da dialética que preconizava Lênin, para casos concretos, soluções concretas, metamorfoseiam uma teoria que foi de vanguarda e de luta para uma classe operária nascente e crescente, para uma fábula de recriações e renascimentos de movimentos que não vão renascer ou ser refundados, porque simplesmente a história não se repetirá. 

    Uma das reações a esta crise do mundo real é a reificação mitológica e fabulosa da teoria marxista, transformando tudo em crises de direção, em problema moral e ético, e conclamando a refundações de tempos passados, o que transforma a dialética num monte de juízos morais com nenhum sentido ou validade para servir de teoria revolucionária para o capitalismo do século XXI. No fundo, a pseudoteoria “social” x “institucional” do Rudá é mais uma destas fábulas que não querem descer ao fundo do problema, para o qual, há falsas soluções.

    Umas das “soluções” é a deserção da luta ou o abandono do sujeito coletivo, como fazem intelectuais de uma nova esquerda pós estruturalista pelo mundo, como Slavoj Žižek (indo cada vez mais para a direita), Antonio Negri, Badiou e, no Brasil, a cópia muito mal feita dela, a última coca cola do deserto pós estruturalista, Vladimir Safatle (o sujeito que equaciona seu discurso para detonar Venezuela, Cuba e Nicarágua). 

    Óbvio que aderir ao discurso pós estruturalista baseado na “crise da razão” não é uma solução real e não constrói alternativas nem intelectuais, muito menos para o movimento social. Vide o tremendo fracasso do movimento “ocuppying”, sem pauta, sem direcionamento, avesso a coletivos “hierarquizados” e que, não era necessário ter 3 neurônios para prever, iria do nada ao lugar nenhum, porque no fundo, se baseia numa crítica moralista à política (assim como o texto do Rudá) e segue sem um norte ou um objetivo final.

    A segunda crise ontológica e epistemológica da esquerda está ligada à primeira, e tem que ver com a derrota da União Soviética na luta de classes internacional. Veja, eu utilizar a palavra derrota e não fracasso tem um porquê, aqueles que falam em fracasso negam a originalidade, a importância, o alcance e os efeitos duradouros e permanentes da Revolução Bolchevique de 1917 em todo o mundo. Seja para aqueles que negavam completamente que a URSS fosse um país socialista, seja para aqueles que aderiam à Terceira Internacional, quase como uma mitologia, sem nenhum viés de crítica, seja para aqueles que faziam o balanço do prós e contras das revoluções socialistas, a derrocada do socialismo no Leste Europeu colocou o movimento social progressista no mundo inteiro contra as cordas.

    Para aqueles que nunca viram na União Soviética qualquer traço de socialismo e chegaram a festejar a “queda da burocracia stalinista”, o efeito é tão avassalador e destrutivo quanto para aqueles que defendiam a infalibilidade do Partido Comunista. O fato é que a derrota do Bloco Socialista fez regredir a luta de classes em todo o mundo e provocou o recuou não só de vários partidos comunistas (alguns extintos inclusive) mas da luta revolucionária e dos avanços sociais e políticos em 5/5 do planeta terra. 

    Mas outro paradigma foi quebrado, o da inevitabilidade do socialismo e de sua “necessidade histórica”. Paradigma que já está no próprio Marx e, principalmente em Engels, e no qual não só toda a linha ortodoxa da Terceira Internacional acreditava (ou segue acreditando), assim como a maior parte dos movimentos marxistas trotskystas no mundo. O marxismo é uma superestrutura viva. Pelas leis da dialética propostas pelo próprio Marx, toda teoria caduca e morrerá, isto inclui, também o marxismo, superada na teoria e ou na realidade por alguma superestrutura superior no sentido de fazer a crítica e a interpretação do mundo.

    A posição deste que ora escreve o texto é que não, o marxismo longe de ter sido superado, só o será quando morrer junto com o objeto de sua crítica furiosa: o capitalismo. Sartre, que não era marxista, no sentido estrito, escreveu um texto em que defendia que o marxismo era a “única filosofia viva”, porque era a única que dava conta de ser a crítica totalizante do capitalismo. 

    Todas as críticas que pretensamente tentaram colocar por terra o marxismo, da fenomenologia ao estruturalismo e ao pós-estruturalismo, carecem de falhas gnoseológicas tão gritantes (que não são o objeto de análise deste estudo) que fingem superar o marxismo quando voltam para posições filosóficas que sequer são pré hegelianas, são pré kantianas: confundir ser e essência, superar a distinção entre ser e essência (entre o que vem anteriormente: a realidade ou o pensamento), com uma confusa dialética de noumos, ou de ser essente, na qual o discurso dá conta de toda a realidade, sem precisar prová-la em termos de práxis, é, no fundo, e sempre, abrir portas para a obscuridade e para o pensamento metafísico. 

    Nada depois da dialética marxista deu uma contribuição decisiva gnoseológica para o pensamento humano. O que não significa que não se deva ler, compreender e até entender contribuições que possam aprofundar a práxis, e inclusive, a crítica da práxis os autores que margeiam ou mesmo se opõe ao marxismo.

    A decisão de muitos teóricos foi de jogar a criança fora junto com a água suja do banho. Em lugar de fazer uma crítica árdua e necessária das lutas e revoluções reais, desde a Comuna de Paris, até a experiência socialista do Leste Europeu, passando pelos processos de emancipação e descolonização na América, Ásia e África, ficou mais fácil e menos trabalhoso culpar a dialética, apostar na “crise da razão”, e migrar para teorias “não totalizantes” que são ineficazes porque se propõe a serem ineficazes, não cuidam da questão mais importante, que é como derrotar globalmente o capitalismo.

    Da crítica correta de um certo messianismo e fatalismo no marxismo. Que já existia em Marx, como herança positivista e hegeliana, e, ainda mais em Engels, principalmente se partindo de “A dialética da natureza” e da ideia de se comparar organismo sociais a organismos biológicos complexos. Óbvio que esta proposição é falha, ver a ótima crítica de Sartre a esta ideia que dá margem à reificação do marxismo (Crítica da razão dialética), em que pese a falha metodológica sartreana de confundir materialismo dialético (e condená-lo) com materialismo histórico. 

    Aliás, Engels aplicou mal à dialética não à gnoseologia propriamente dita em “A dialética da natureza”, mas muito mais ao materialismo histórico, incorrendo num erro duplo, um o da inevitabilidade da revolução, o outro a reduzir o elemento individual na revolução quase a zero, o que deu forças a que vulgarizações de marxistas muito menores do que Marx e Engels, que estes vulgarizadores negassem a importância de direitos e garantias individuais, a partir de uma visão estreita e pseudocoletivista do texto.

    É importante deixar aqui umas linhas: Marx e Engels são gigantes! Mas é óbvio que toda filosofia tem suas aporias, os fundadores do marxismo também tinham as suas, muito por conta de uma parte de uma herança hegeliana na qual uma astúcia da história vai emergir sempre. Ora, se o socialismo é uma necessidade histórica e é inevitável, caímos num sério risco de incorrer numa espécie de culto ateu socialista e num culto ateu do devir.

    Mas o marxismo é uma superestrutura viva. Estas aporias foram visíveis para continuadores do pensamento dialético. Destaco alguns: muito se fala de Rosa Luxemburgo e sua famosa frase “revolução ou barbárie”, Rosa prenunciou que a confiança “inabalável” na revolução era mais fé que razão e dialética. Foi uma das primeiras, mas não ficou sozinha ao diagnosticar que havia uma aporia na teoria. 

    Gramsci, num texto sobre o messianismo revolucionário, detecta a mesma falha e mostra que, se de um lado, a ideia de que o socialismo é inevitável (o mundo está em progresso, dos modos de produção menos desenvolvidos aos mais desenvolvidos), isto é um ato de fé que pode ser interessante à militância em momentos de crise e abjuração, mas que pode dar o efeito contrário, de messianismo e conformismo, ou mesmo de se abster de lutar e organizar, já que existe uma astúcia e um deus ex machina que nos trará, de alguma forma o socialismo.

    Ainda nesta linha, é fundamental lembrar Walter Benjamin, com suas “Teses sobre a história” e com a figura do anjo da história olhando para trás, para todos os desastres e catástrofes, sem nenhuma fé cega no futuro. Assim também Lukács, que vai abjurar do seu livro “História e consciência de classe”, por ver nele uma espécie de mitologia da classe operária, a qual superava o fetichismo e a alienação pelo simples fato de pertencer ao partido comunista (qualquer semelhança com a tolice do Rudá da “esquerda social que representa a esquerda de verdade pelo simples fato de existir” não é mera coincidência).

    A crise de paradigma da esquerda, da qual coloquei, acima, dois dos três pés do tripé: (1. extinção do operariado fabril e crise de representação; 2. queda da União Soviética e crise teórica referencial), ainda tem uma terceira perna e muito ativa nos dias de hoje (da qual participa o Safatle e todos os “pós modernosos”), é a chamada “crise da razão”.

    Se até o fim o início da Segunda Guerra Mundial se tinha uma fé quase inabalável na Razão, e se o marxismo é, ao fim e ao cabo, um sucedâneo de movimentos culturais baseados na Razão que vão em crescente dialética: Renascimento, Cartesianismo, Iluminismo, Jacobinismo, Racionalistas Ingleses, Hegelianismo, até chegar a Marx, todos estes movimentos têm, em comum, acreditar na Razão, com exceção do solipsismo de Berkeley. Mesmo aqueles que “duvidam da Razão”, duvidavam, na verdade, de uma tradição de discurso racional que não precisava ser provada. A ideia de progresso era algo que não podia ser colocada em dúvida, muito menos a Razão instrumental.

    A Segunda Guerra mundial colocou tanto a ideia de Progresso, quanto a de uma ascensão a formas superiores de organização da humanidade em xeque. O fascismo, o nazismo, o genocídio de 70 milhões de vidas; foram o progresso e a ciência a serviço do horror e do terror. Os campos de concentração eram organizações “racionais” de moer carne humana, de fazer salsicha de gente. Uma das reações foi uma crise da Razão, que já existia mesmo antes da Segunda Guerra mundial, mas que ganha vulto e hegemonia com ela. 

    É bom lembrar que Husserl, um dos criadores da fenomenologia, era um alemão conservador pró Bismarck, que nunca se posicionou contra o nazismo até ser alcançado por seus tentáculos, e que Heidegger foi um nazista ativo e reitor de universidade com discurso de posse pró Hitler, saudou o nazismo como salvador da civilização ocidental e do progresso. O que quero dizer com este parágrafo, que não devemos ler nem um e nem outro e a partir deste fato não estudar e não discutir o existencialismo? 

    Bem, esta seria a posição de um materialismo vulgar e preguiçoso (que, aliás, continua em voga nos dias de hoje), obviamente que a resposta é não, a citação é colocada para mostrar que o ataque à Razão era anterior ao nazismo e que o nazismo inclusive serviu-se dele em suas teses. 

    Mas o fato é que, inclusive nas universidades brasileiras, as teses pós modernas estão em voga e são as aceitas de maneira hegemônica, assim, o marxismo é descartado como algo ultrapassado, uma teoria fabulosa “positivista” que tentar dar conta da realidade. O que não se nota nesta crítica é que, ao se negar as grandes narrativas e a crítica da realidade por uma teoria narrativa do discurso, a realidade não deixa de existir.

    O marxismo é um modo eficaz de crítica e de abordagem do mundo porque não nega a existência material deste mesmo mundo, e não retira sua realidade ou unidade de um consenso, ou de uma coerência interna do discurso. Está, aliás, é uma discussão que sequer é nova, opôs Sócrates, Platão e Aristóteles aos sofistas. A pergunta se a matéria precede ou não a essência não pode ser elidida por nenhum truque de prestidigitação, em que a realidade do discurso tem uma realidade própria para além do mundo.

    Símbolos são sempre símbolos de algo real. Fora do mundo real são uma fantasmagoria tão grande quanto o saci, o boitatá ou a mula sem cabeça. Habermas dizia que a falha da arqueologia do saber de Foucault é que ao reduzir a verdade a um discurso de poder, a verdade simplesmente desaparecia. Efetivamente que sempre há uma disputa pela verdade, pelos modos e meios pelos quais ela é dita. Mas quando a tese 2 sobre Feuerbach deixa de ser parâmetro e paradigma: 

    “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.”

    Quando o critério da materialidade da verdade desaparece, toda a verdade desaparece e toda discussão é, no fundo, escolástica.

    O interessante é que Habermas viu a falha ontológica e como girava em falso a teoria de Foucault, mas nunca com a sua própria teoria comunicativa – que abriu mão da questão da práxis, da qual Adorno e Horckeimer nunca abriram mão –, e também girava em falso por não propor nenhuma prova ontológica, mas apenas uma teoria de “consenso” (o Adão e Eva é um consenso entre criacionistas e nem por isto deixa de ser falso, e também é um discurso de poder e nem por isto deixa de ser uma mentira).

    De qualquer maneira temos o triplé:

    1. Crise de representação dos partidos socialistas, social democratas e comunistas e das bases de representação dos movimentos populares com a automação e a diminuição e mesmo desaparecimento em certos países da classe operária fabril;

    2. Crise ontológica com a derrota do campo socialista, recuo do movimento social no mundo inteiro (estando ligado ou não à Terceira Internacional), pondo em xeque a autoridade dos sujeitos coletivos;

    3. Crise epistemológica com a pós modernidade e crítica à Razão, o fim das “grandes narrativas” e da práxis como critério da verdade.

    Estamos no centro destas 3 grandes crises e nem começamos a sair delas. Na verdade, a primeira, com um proletariado difuso, amorfo, em trabalhos não formais, apenas começou e sequer organizamos respostas a ela.

    Por esta razão qualquer resposta esquemática moralista e tola com a do Rudá Ricci passa ao largo do problema. Óbvio que não negamos a questão da burocratização. É uma questão que está no cerne do marxismo, enquanto Hegel defendia a burocracia como quem “portava a verdade do Estado”, que por sua vez era portador da Razão universal que estava acima dos interesses de classe. Marx fez uma crítica impiedosa do Estado mas viu na burocracia um organismo à parte que criava inclusive interesses colidentes com as classes em luta. Sem entender esta oposição de Marx a Hegel, não se entende como Marx vai elucidar o napoleonismo, a primeira grande explicação dialética de como uma casta burocrática pode se apossar do Estado, e se colocar como um pelego diante de classes em luta, que não tem como se enfrentar abertamente num dado momento.

    Com o “18 Brumário Luis Bonaparte”, Marx abre a crítica dialética do Estado, seguindo na linha de “O príncipe de Maquiavel”. Alias, em toda a trilogia sobre a luta de classes na França, descendo em detalhes sobre as frações de classe, interesse colidentes e movimentos. Marx não se baseia em nenhuma linha moral anterior sobre “institucional e social” (que vão se confundir todo o tempo).

    Podemos seguir em Gramsci, e sua análise pormenorizada de que os sujeitos coletivos vão se permear e entrar em disputa dentro de um Estado capitalista moderno, Gramsci é o primeiro grande marxista a observar que o Estado não só é um órgão de dominação de classe, mas também o mediador da luta de classes. Assim, dá contribuições muito fundamentais ao marxismo, como o partido da classe avançada como O Príncipe moderno (o sujeito coletivo em disputa dupla, por dentro por sua hegemonia, por fora, na luta hegemônica pelo Estado). A ideia de hegemonia e de disputa de hegemonia é o primeiro fio condutor de uma esquerda que não abjura da luta de classes, mas que não tem uma revolução premente no horizonte. 

    Lembrar que revolução não é um movimento da vontade de intelectuais, é uma possibilidade histórica cujos componentes não são dispostos de antemão, só porque um partido ou um professor universitário se auto-considera revolucionário, por ter hegemonia no DCE da UFRJ ou da UFF, ou porque dissertam em alemão sobre revolução, tomando um chope gelado na praça São Salvador.

    A questão de reforma ou revolução no capitalismo do século XXI é bem mais complexa que um texto moralista de segunda linha, que quer elevar uma esquerda que não consegue 1% de representatividade no voto, como fiador metodológico de quem doravante poderá ser considerado esquerda ou não. 

    É óbvio que há burocracias e burocratas, é óbvio que tem que se lutar dentro dos partidos de viés progressista e socialista para que estes sejam permeados pela luta de classes e não pela conciliação, mas também é óbvio que a bobageira moralista que apenas quer carimbar como “autêntica” uma esquerda que fala para dentro, produz mais papers acadêmicos que lideranças políticas e faz mais sucesso na classe média que na periferia.

    É o tipo de texto lacrador, que não coloca nenhum problema ou questão real, feito apenas manter fiel esta mesma pequena massa de leitores, que se satisfaz com seu próprio narcisismo de se achar revolucionários, sem conseguir organizar ou filiar 3 pessoas em qualquer organização política. 

    É a esquerda que tem complexo de cachorro que corre atrás de pneu de caminhão, e não quer ter responsabilidade de gerir o Estado, enfrentar a ameaça fascista real que paira no Brasil (ou a “enfrentam” apenas com textos de “alcance revolucionário” e palavras de ordem, ou organizando pequenos coletivos para catarse coletiva em rodas de conversa). 

    Quando o caminhão para (quando a possibilidade de gerir o Estado se apresenta), esta esquerda faz igual ao cachorro na rua: senta e pede para o caminhão andar de novo, porque só quer latir, não quer nunca estar na condução.

     

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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