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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    Rússia-China dirigem a cena do Talibã

    Nem Moscou nem Pequim têm qualquer ilusão quanto a que o Ocidente já esteja empregando táticas de Guerra Híbrida para desacreditar e desestabilizar um governo que nem ainda foi formado e sequer começou a trabalhar

    (Foto: Reuters)

    Por Pepe Escobar, para o The Saker

    Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

    A primeira entrevista coletiva do Talibã após o terremoto geopolítico que foi o momento Saigon deste fim de semana, conduzida pelo porta-voz Zabihullah Mujahid foi, por si só, um ponto de virada.

    O contraste com aquela entrevista coletiva repleta de jornalistas zangados que teve lugar na embaixada talibã em Islamabad, depois do 11 de setembro e antes do início dos bombardeios americanos, não poderia ser mais gritante, mostrando que temos agora um animal político totalmente novo.

    Mas há coisas que não mudam nunca. A tradução para o inglês continua sendo atroz.

    Aqui vai um resumo das principais declarações talibãs, e aqui (em russo), um apanhado bastante detalhado.

    Estes são os pontos principais:

    • Não haverá problemas para mulheres que queiram estudar até o nível superior e continuar a trabalhar. Elas apenas terão que aceitar usar o hijab (como em Catar e no Irã). Não será exigido o uso de burkas. O Talibã insiste que "todos os direitos das mulheres serão garantidos dentro dos limites da lei islâmica". 
    • O Emirado Islâmico "não ameaça ninguém" e não tratará ninguém como inimigo. Da máxima importância é que a vingança - um ponto essencial do código Pashtunwali – será abandonada, o que não tem precedentes históricos. Haverá uma anistia geral - inclusive para pessoas que trabalharam para o sistema anterior alinhado à OTAN. Os tradutores, por exemplo, não serão perseguidos e não precisam abandonar o país.
    • A segurança das embaixadas estrangeiras e das organizações internacionais "é uma prioridade". As forças especiais de segurança do Talibã protegerão tanto os que saírem do Afeganistão quanto os que ficarem. 
    • Um governo islâmico forte e inclusivo será formado. "Inclusivo" é linguagem em código para a participação de mulheres e de xiitas. 
    • A mídia estrangeira poderá continuar seu trabalho sem ser perturbada. O governo do Talibã permitirá críticas e debates públicos. Mas "a liberdade de expressão", no Afeganistão, deverá estar alinhada aos valores islâmicos". 
    • O Emirado Islâmico do Talibã deseja o reconhecimento da "comunidade internacional"- linguagem em código para a OTAN. Seja como for, grande parte da Eurásia e do Sul Global irá reconhecê-lo. É importante observar, por exemplo, a integração cada vez maior da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) - o Irã está prestes a se tornar membro pleno e o Afeganistão é observador -  com a Organização de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN): a maioria absoluta da Ásia não irá repudiar o Talibã. 

    Para que conste oficialmente, eles declararam também que o Talibã tomou a totalidade do território afegão em apenas onze dias, o que é bastante preciso. Eles ressaltaram que têm "relações muito boas com o Paquistão, a Rússia e a China". Mas o Talibã não tem alianças formais e não faz parte de nenhum bloco militar-político.  Eles, terminantemente, "não permitirão que o Afeganistão se converta em santuário para terroristas internacionais". Isso é código para o ISIS/Daesh.

    Sobre a importantíssima questão ópio/heroína: o Talibã proibirá sua produção. Então, para todos os fins práticos, o caminho de rato da heroína controlado pela CIA está morto.

    Por mais surpreendentes que sejam essas declarações, o Talibã nem chegou ainda a entrar em detalhes quanto aos acordos de desenvolvimento econômico e de infraestrutura – uma vez que eles irão precisar de uma grande quantidade de novas fábricas, de muitos empregos e de melhores relações comerciais por toda a Eurásia.  Isso será anunciado mais tarde. 

    O russo com quem se pode sempre contar 

    Nos Estados Unidos, observadores perspicazes vêm comentando, meio que de brincadeira, que o Talibã, em uma única sentada, respondeu a mais perguntas da mídia americana que o Presidente dos Estados Unidos desde janeiro.  

    O que essa primeira coletiva revela é o quão rapidamente o Talibã vem aprendendo com Moscou e Pequim a lidar com mídia e relações públicas, dando ênfase à harmonia étnica, ao papel das mulheres, ao papel da diplomacia e desativando com um único movimento a histeria que corre solta por todo o OTANistão.

    O próximo e explosivo passo nas guerras de relações públicas será anular a ligação fatal e sem nenhuma prova entre o Talibã e o 11 de setembro. Depois disso, o rótulo de "organização terrorista" irá desaparecer, e o Talibã, como movimento político, será plenamente legitimado.  

    Moscou e Pequim vêm tendo uma atuação meticulosa como diretores de cena da reinserção do Talibã na geopolítica regional e global. O que significa que, em última análise, a OCX vem assumindo a direção de cena de todo o processo, aplicando o consenso alcançado após uma série de reuniões ministeriais e de lideranças que levaram à convocação de uma cúpula de máxima importância a ser realizada no próximo mês de setembro em Dushanbe.

    O principal ator com quem o Talibã vem conversando é Zamir Kabulov, o envido especial do presidente russo ao Afeganistão. Em um outro desmentido da narrativa do OTANistão, Kabulov confirmou, por exemplo, que "não vemos nenhuma ameaça direta a nossos aliados da Ásia Central. Não há qualquer fato que prove o contrário".

    O Beltway vai ficar estarrecido quando souber que Zabulov revelou também que "há muito vimos conversando com o Talibã sobre as perspectivas de desenvolvimento após eles tomarem o poder, e eles confirmaram repetidamente que não têm qualquer ambição extraterritorial, que eles aprenderam a lição de 2000".  Esses contatos foram estabelecidos "ao longo dos últimos sete anos". 

    Zabulov enumera diversas pérolas sobre a diplomacia Talibã: "se compararmos a capacidade de negociação de colegas e parceiros, concluímos que há muito o Talibã vem se mostrando muito mais acessível que o governo fantoche de Cabul. Partimos da premissa de que os acordos têm que ser implementados. Até agora, no que diz respeito à segurança da embaixada e à segurança de nossos aliados da Ásia Central, o Talibã vem respeitando todos os acordos".

    Fiel à sua adesão ao direito internacional, e não a uma "ordem internacional baseada em regras", Moscou tende sempre a enfatizar a responsabilidade do Conselho de Segurança da ONU: "Temos que assegurar, como condição, que o novo governo esteja disposto a se comportar, como costumamos dizer, de forma civilizada. Quando essa percepção se tornar generalizada, então o processo [de remover a qualificação do Talibã como organização terrorista] irá começar". 

    Então, enquanto Estados Unidos-União Europeia-OTAN fogem de Cabul em espasmos de pânico auto-infligido, Moscou pratica - o que mais seria? - diplomacia. Zabulov: "O fato de termos, com antecedência, preparado terreno para conversas com o novo governo do Afeganistão é uma vitória da política externa russa". 

    Dmitry Zhirnov, embaixador russo no Afeganistão, vem trabalhando incessantemente com o Talibã. Ontem ele se reuniu com um funcionário graduado da área de segurança do Talibã. O encontro foi "positivo, construtivo... O movimento Talibã tem uma postura muito amigável, a melhor possível com relação à Rússia... Ele chegou sozinho em um único carro, sem guardas". 

    Nem Moscou nem Pequim têm qualquer ilusão quanto a que o Ocidente já esteja empregando táticas de Guerra Híbrida para desacreditar e desestabilizar um governo que nem ainda foi formado e sequer começou a trabalhar. Não é de admirar que a mídia chinesa venha descrevendo Washington como um "vilão estratégico".  

    O que importa é que Rússia-China estão muito à frente nessa corrida, cultivando  raias paralelas de diálogo diplomático com o Talibã. É sempre importante lembrar que a Rússia abriga 20 milhões de muçulmanos, e a China, pelo menos 35 milhões. Eles serão conclamados a apoiar o gigantesco projeto de reconstrução afegã - e a plena inserção daquele país na Eurásia. 

    Os chineses anteviram o que iria acontecer 

    O Chanceler chinês Wang Yi anteviu esses acontecimentos com semanas de antecedência. O que explica a reunião de Taijin, em fins de julho, quando ele recebeu uma delegação de talibãs de alto escalão, chefiada pelo Mulá Baradar, conferindo a eles total legitimidade política. Pequim já sabia que o momento Saigon seria inevitável. Daí a declaração ressaltando que a China esperava "desempenhar um papel importante no processo de reconciliação política pacífica e de reconstrução no Afeganistão.

    O que isso significa na prática é que a China será parceira do Afeganistão nos investimentos em infraestrutura por intermédio do Paquistão, incorporando o país na ampliação do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), que irá diversificar os canais de conectividade com a Ásia Central. O corredor das Novas Rotas da Seda, indo de Xinjiang ao porto de Gwadar, no Mar Arábico, irá se ramificar: a primeira ilustração concreta é a construção chinesa da ultra-estratégica rodovia Peshawar-Cabul.

    Os chineses estão também construindo uma grande rodovia através do geologicamente espetacular e deserto corredor de Wakhan, ligando Xinjiang à província de Badakhshan, que incidentalmente está agora sob total controle talibã. 

    O trato é claríssimo: o Talibã não poderá dar santuário ao Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM) nem interferirá em Xinjiang.

    O combo comércio/segurança, ao que tudo indica, será vantajoso para todas as partes. E nem começamos ainda a tratar dos futuros acordos que permitirão que a China explore as imensas riquezas minerais do Afeganistão.

    Mais uma vez, o Grande Quadro indica que a dupla-hélice Rússia-China, conectada a todos os "istãos"  e também ao Paquistão, vem traçando um plano de jogo/mapa de percurso para o Afeganistão. Em seus muitos contatos com russos e chineses, o Talibã pareceu ter plena compreensão de como se beneficiar de seu novo papel no Novo Grande Jogo.

    O Novo Eixo do Mal ampliado 

    Táticas imperiais de Guerra Híbrida fatalmente serão usadas para se contrapor a esse cenário. Tome-se a primeira proclamação de uma "resistência", a Aliança do Norte, em tese liderada por Ahmad Masoud, filho do lendário Leão do Panjshir, morto pela al-Qaeda dois dias antes do 11 de setembro. 

    Conheci pessoalmente o pai de Masoud – um ícone. Pessoas que conhecem de perto a situação afegã dão informações nada lisonjeiras sobre o filho de Masoud. Mas ele já se converteu no queridinho dos europeus woke, e chegou a posar para uma foto glamorosa para a AFP, receber uma visita de última hora do filósofo e escroque profissional Bernard-Henri Levy, e lançar algo parecido com um manifesto, publicado em diversos jornais europeus, exibindo os chavões "tirania", "escravidão", vendeta", "nação martirizada", "Cabul grita", "nação acorrentada" etc.

    O esquema todo cheira ao estratagema "o filho do Xá [do Irã]". Masoud filho e sua mini-milícia estão completamente cercados nas montanhas do Panjshir e não conseguiriam arregimentar os menores de 25 anos, dois-terços da população afegã, cuja principal preocupação é encontrar empregos reais na economia real que vem nascendo. 

    As "análises" woke do OTANistão não se qualificam sequer como irrelevantes: elas insistem que o Afeganistão não é estratégico e perdeu até mesmo importância tática para a OTAN. É um triste espetáculo que ilustra o quanto a Europa ficou para trás na corrida, encharcada de neo-colonialismo de marcas do tipo Fardo do Homem Branco quando nega a importância de uma terra dominada por clãs e tribos.

    É de se esperar que a China seja uma das primeiras potências a reconhecer formalmente o Emirado Islâmico do Afeganistão, juntamente com a Turquia e, mais adiante, a Rússia. Já aludi ao futuro Novo Eixo do Mal: Paquistão-Talibã-China. O eixo será fatalmente ampliado para abranger a Rússia e o Irã. E daí? Perguntem ao Mulá Baradar: ele não liga a mínima.  

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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