Rússia e Irã estão construindo rota comercial que desafia sanções
As duas nações estão investindo mais de US$ 20 bilhões para facilitar a passagem de mercadorias pelas vias fluviais e ferroviárias
A Rússia e o Irã estão construindo uma nova rota comercial transcontinental que se estende da borda leste da Europa até o Oceano Índico, uma passagem de 3.000 km que está além do alcance de qualquer ingerência ocidental.
Os dois países estão gastando bilhões de dólares para acelerar a entrega de carregamentos ao longo dos rios e ferrovias ligadas pelo Mar Cáspio. Os dados de rastreamento de navios mostram dezenas de navios russos e iranianos — incluindo alguns que estão sujeitos a sanções — que já percorrem a rota.
É um exemplo de como a competição entre os países imperialistas e o bloco euro-asiático está remodelando rapidamente as cadeias de comércio em uma economia mundial que parece se fragmentar em blocos rivais. A Rússia e o Irã, sob a tremenda pressão das sanções, estão se voltando um para o outro — e ambos estão olhando também para o Leste. O objetivo é proteger os laços comerciais da interferência ocidental e construir novos laços com as economias gigantescas e em rápido crescimento da Ásia.
Rotas comerciais da Rússia para a Ásia: Novas rotas através do Irã pouparão milhares de quilômetros
“Trata-se de estabelecer cadeias de suprimento à prova de sanções ao longo de todo o processo”, diz Maria Shagina, especialista em sanções e política externa russa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, sediado em Londres.
O corredor comercial emergente permitiria que a Rússia e o Irã cortassem milhares de quilômetros das rotas existentes. Em sua extremidade norte está o Mar de Azov, delimitado pela Península da Crimeia, a costa sudeste da Ucrânia — incluindo o porto de Mariupol, ocupado pela Rússia — e a foz do rio Don.
No início deste mês, listando os avanços de seu país com a guerra na Ucrânia, o Presidente Vladimir Putin disse que o Mar de Azov “se tornou um mar interno” para a Rússia.
De lá, as redes fluviais, marítimas e ferroviárias se estendem até os centros iranianos no Mar Cáspio e, por fim, no Oceano Índico. Putin também assinalou a importância dessa extremidade do corredor.
Em setembro, no Eastern Economic Forum, o presidente russo sublinhou a necessidade de desenvolver a infra-estrutura naval, ferroviária e rodoviária ao longo da rota que “proporcionará às empresas russas novas oportunidades de entrar nos mercados do Irã, Índia, Oriente Médio e África, e em troca facilitará o abastecimento desses países”.
Shagina estima que a Rússia e o Irã estão investindo até US$ 25 bilhões no corredor comercial continental, ajudando a facilitar o fluxo de mercadorias que o Ocidente quer parar. “Os dois países estão jogando um jogo de gato e rato”, diz ela. “Eles vão explorar todas as brechas para transportar armas, entre outros produtos proibidos”.
Além de eventuais negócios envolvendo armas entre ambos os países, existem razões econômicas imperiosas para a nova rota de transporte.
Os navios que navegam nos rios Don e Volga tradicionalmente comercializam energia e commodities agrícolas — o Irã é o terceiro maior importador de grãos russos — mas o leque de produtos deve ser ampliado. Os dois países anunciaram uma série de novos negócios que abrangem mercadorias, incluindo turbinas, polímeros, suprimentos médicos e peças automotivas. A Rússia também fornece combustível nuclear e componentes para o reator do Irã em Bushehr.
A Rússia precisa compensar a súbita ruptura de seus laços comerciais com a Europa, que antes da guerra era seu maior parceiro comercial, bem como encontrar soluções para as sanções dos EUA e da União Europeia.
“Com o fechamento das redes europeias de transporte, elas estão focadas no desenvolvimento de corredores comerciais alternativos que sustentem a volta da Rússia ao Oriente”, diz Nikolay Kozhanov, um especialista do Golfo pérsico na Universidade do Qatar que serviu como diplomata do Kremlin em Teerã de 2006 a 2009. “Você pode impor controles sobre as rotas marítimas, mas as rotas terrestres são difíceis de serem observadas. É quase impossível rastrear todas elas”.
Há muitos obstáculos e tanto a Rússia quanto o Irã estão investindo pesado para superá-los. A Rússia está planejando investir US $1 bilhão para melhorar a navegabilidade através do Azov, em direção ao rio Don e através do canal ligado ao Volga. Centenas de navios por dia viajam pela passagem que liga os mares Negro e Cáspio, com engarrafamentos de trânsito que se acumulam rotineiramente em torno dos pontos mais estreitos.
Isso alarma os EUA e seus vassalos, pois eles procuram bloquear as transferências de drones iranianos e outros suprimentos militares que eles afirmam estarem ajudando a guerra do Kremlin na Ucrânia.
“É uma área que estamos observando cuidadosamente, tanto essa rota quanto, de modo mais geral, a conexão irano-russa”, disse o principal responsável pelas sanções da administração Biden, James O'Brien, depois de anunciar novas punições na semana passada que visam os executivos das ferrovias russas. “Estamos preocupados com qualquer esforço para ajudar a Rússia a fugir das sanções”.
Robert Malley, o enviado do governo Biden ao Irã, diz que qualquer novo corredor de comércio precisa ser examinado, como parte do que se tornou sua principal prioridade: parar os carregamentos de armas entre os países. “Essa é uma decisão extraordinariamente prejudicial e imprudente que eles tomaram”, diz Malley. “É importante colocar o holofote nisso, para tentar mostrar ao mundo que eles não podem se esconder”.
Obviamente que o combate ao comércio de armas entre Rússia e Irã, em meio a guerra da OTAN na Ucrânia, é a prioridade “número um” da administração de Biden quando falamos desses novos corredores. No entanto, quase tão importante quanto a guerra em solo ucraniano, é a guerra comercial impulsionada por Washington para sufocar as economias russas e iranianas.
O Canal Don-Volga é um trecho de 101 quilômetros de passagens feitas pelo homem e reservatórios naturais que ligam os dois rios em seu ponto mais próximo. O gelo frequentemente bloqueia o tráfego durante os meses de inverno.
A pouca profundidade de algumas partes da hidrovia restringe o tamanho das embarcações que transportam produtos, como grãos, a cerca de 3.000 toneladas de capacidade. A modernização do canal poderia permitir a passagem de navios com o dobro desse tamanho.
A Rússia está finalizando regras que dariam aos navios do Irã o direito de passagem nas vias fluviais dos rios Volga e Don, de acordo com a Agência de Notícias Marítimas do Irã. Dados de movimento de navios já mostram pelo menos uma dúzia de navios iranianos, alguns operados pelo IRISL: Grupo de Linhas Marítimas da República Islâmica do Irã (sancionado pelos EUA), navegando entre a costa do Mar Cáspio e os principais portos do Rio Volga.
Atividade de navios entre a Rússia e o Irã: Navios de propriedade da Islamic Republic of Iran Shipping Lines (IRISL)
A IRISL, sediada em Teerã, fez um investimento de US $10 milhões em um porto ao longo do Volga, informou no mês passado a semi-oficial Agência Iraniana de Notícias do Trabalho (Iranian Labour News Agency). O objetivo é quase dobrar a capacidade de carregamento no Porto Solyanka, na cidade russa de Astrakhan, para 85.000 toneladas por mês.
Dentro de suas próprias fronteiras, o Irã está despejando dinheiro em terminais onde a carga pode ser lançada de navios e em ferrovias que atravessam o país do Cáspio até o Golfo Pérsico. Está também expandindo uma rede ferroviária que já percorre cerca de 16.000 quilômetros.
As delegações comerciais estão se deslocando entre o Irã e a Rússia com crescente frequência — e o comércio também está aumentando. Oficialmente, o comércio aumentou em quase 50% até agosto deste ano. O valor anual provavelmente excederá em breve US$ 5 bilhões. Há um “caminho claro” para chegar a 40 bilhões de dólares uma vez que um acordo de livre comércio esteja em vigor, disse Sergey Katyrin, o chefe da Câmara de Comércio e Indústria da Rússia, em uma conferência em Teerã no mês passado.
A rede ferroviária em expansão do Irã: A Rússia está enviando grãos para a Índia através do porto iraniano em Bandar Abbas
Para o Irã, o giro no sentido russo tornou-se mais urgente em meio a esforços vacilantes para restaurar o acordo de 2015 com as potências ocidentais, em especial os EUA, que levantaram as sanções em troca de restrições ao programa nuclear do país. O apoio de Teerã a Moscou, juntamente com sua resistência frente às operações ocidentais travestidas de protestos, que visam a mudança de regime, conseguiram ampliar o abismo já existente entre o OTANistão e Teerã.
As autoridades iranianas dizem estar totalmente concentradas no que chamam de “o eixo oriental” — eliminando quaisquer planos para reavivar os laços econômicos com a Europa e, em vez disso, perseguindo uma série de acordos comerciais e energéticos com a Rússia, China e nações da Ásia Central.Sob o radar dos governos ocidentais, um esforço conjunto vem sendo feito há anos para unir todo esse território eurasiático. A China e a Rússia já são membros da Organização de Cooperação de Xangai, um órgão de segurança-economia que está fazendo do Irã seu nono membro. A China e o Irã estão ambos próximos de se tornar membros da União Econômica Eurasiática, o que tornará possível o livre comércio entre os países. Outra instituição que liga as economias da região (e além dela) é o grupo BRICS. Inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia e China, agora também inclui a África do Sul e está pronto para expandir-se ainda mais com a organização do BRICS+.
Tanto para a Rússia quanto para o Irã, a Índia é um nó crucial nas redes que eles estão tentando construir.
Um primeiro carregamento de 12 milhões de toneladas de grãos russos com destino à Índia já atravessou o Irã, informou no mês passado a semioficial Mehr News Agency. Os fluxos comerciais podem aumentar se o Irã conseguir conectar o inacabado e muito adiado complexo portuário Chabahar no Oceano Índico (um projeto no qual a Índia investiu) com sua rede de trens de longa distância. Chabahar tem sido até agora isento de sanções dos EUA, mas pode atrair um novo olhar de Washington.
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