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      Luis Cosme Pinto

      Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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      Segunda-feira

      Em vez da crônica da semana, um conto de amor. Ágatha foi cupido de um namoro impossível

      Gata Ágatha (Foto: Sergio FC)

      Segunda-feira o melhor dia. Melhor que o domingo para descansar, melhor que o sábado para se cansar, melhor que a sexta para sonhar.

      Na segunda, Tércio só levanta quando o sono acaba. Na segunda, Tércio pedala e ouve Lulu Santos; bebe vinho e também água de coco. Vai ao cinema vazio e com desconto, saboreia o virado à paulista na hora que o estômago pede, descobre sebos, conversa com sua gata.

      Tércio é cabelereiro e folga às segundas.

      Problema, só um: a segunda é dia antissocial. A maioria não se diverte, só trabalha.

      Tudo mudou quando apareceu Afrânio. Na verdade, os dois apareceram um pro outro.

      Afrânio é peixeiro. Descama, tira espinhas, faz filés. É feirante na barraca da Selma. Acorda às três da madrugada para encontrar robalos, atuns, sardinhas, polvos. A rotina só muda uma vez por semana.

       “A segunda é o domingo do feirante”, costuma repetir.

      Naquela quinta-feira, horário da xêpa, Tércio não quis pescada, muito menos salmão ou xerelete, pediu uma cabeça graúda.

      - Você tem de garoupa?

      - Claro, é pra sua gata?

      - Como sabe?

      - Sabendo...

      Nunca mais faltaram cabeças. A gata Ágata desandou a crescer. Se não vinha garoupa, Afrânio oferecia - e Tercio aceitava - bochechas de corvina, cabeça de tainha, guelras de anchova.

      Ágatha lambuzava bigodes e beiços a petiscar cartilagens e chupar espinhas sem nunca engasgar.

      Malandra é a Ágatha, brincava o Afrânio. Ah, o Afrânio.

      Um dia, Tércio não apareceu, tampouco na semana seguinte. Afrânio, que sempre foi homem de ação, não titubeou. Rodou, assuntou no bairro e logo tocou o interfone do apartamento 36 para ouvir a voz já conhecida.

      - Foi a dengue, justificou Tércio.

      Afrânio trazia rabo de tilápia, manjuba fresca, posta de cação. Agatha, que andava cabisbaixa, pulou do sofá e abandonou o telejornal, saudosa das delícias do mar.

      - Como você ficou sabendo o meu endereço, Afrânio?

      - Sabendo...

      Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto
      Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto(Photo: Reprodução)Reprodução

       Afrânio sabia sabendo, não explicava muito, ao contrário do tagarela Tércio. Um pragmático, outro sonhador; um ateu, outro religioso; um preto, outro branco. E foi assim, de diferença em diferença, que os dois descobriram o que tinham de igual.

      Sempre às segundas, um encontro. Passeio no largo do Arouche, compras no brechó da Lola. Tércio lia Jorge Amado para Afrânio, que traduzia o basquete para Tércio, que  cozinhava moela de frango pra Afrânio, que pedia para Tércio cortar as costeletas retas e  deixar “redondinho” na nuca. Afrânio prendeu os quadros pra Tércio, que ensinou Afrânio a baixar aplicativos.

      Tercio sorria pra Afrânio, que gargalhava pra Tércio. Riam do quê? “De bobeira”, falavam juntos e riam mais. Felizes.

      Na noite de uma segunda-feira de outono. Tércio contava de seu longínquo noivado. Escolhia palavras na tentativa de impressionar Afrânio.

      Afrânio contou do casamento que ia mal, mas que Sandra era boa mãe, ótima nora e que ele ia esperar os filhos crescerem um pouco mais para decidir o futuro.

      - Falta coragem, sabe Tércio?

      - O nome disso não é coragem, é tesão, admiração, interesse. É isso que falta, Afrânio. Isso tudo você perdeu pela Sandra. Perdeu porque não gosta mais. Há quanto tempo vocês não transam, não conversam de verdade, olho no olho?

      - Nem sei.

      Tércio sentiu nos seus cabelos as mãos quentes de Afrânio, que desceram pelo pescoço, depois costas e então o aperto faminto – corpo grudado com corpo –  amoleceu de vez a alma.

      Beijo sôfrego, molhado. Afrânio, que delícia, pensava Tércio, imprensado contra a parede.

      Nunca senti isso, era o que encalorado Afrânio experimentava entre o latejar dos músculos e o disparar do peito.

      Ninguém sabe quanto durou o beijo, que nenhum dos dois queria terminar.

      Afrânio se afastou, rubro.

      - Tércio, tenho que ir embora! O pessoal tá me esperando em casa. Desculpe. Faço tudo errado. Foi mal.

      “ Desculpe do quê? Volta aqui”. Era o que diria Tércio, mas Afrânio já estava na porta, abriu e sumiu.

      O primeiro beijo foi também o último.

      Tércio, 44 anos, solteiro, gay, zagueiro vigoroso.

      Afrânio, 42 anos, pai de 3 filhos, hétero, casado.

      Tércio não voltou à feira, Afrânio nunca mais tocou o interfone. Ágatha, a gata, virou comedora de ração.

      Anos depois, Tércio jura que já esqueceu de Afrânio, mas também esqueceu do amor.

      - Eu desaprendi o que é se apaixonar. Eu não sei mais me aproximar de alguém com quem eu poderia me relacionar. Não sinto mais vontade. Não é só medo de encontrar alguém, é um pavor do que pode acontecer depois. Ou não acontecer, sabe? O pior dia é a segunda, quando tenho mais tempo pra pensar. Jamais imaginei que ia torcer para terça-feira chegar.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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