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    Marcia Tiburi

    Professora de Filosofia, escritora, artista visual

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    Sobre o banimento

    "Um país que não se importa com seus exilados poderá afirmar que restabeleceu a democracia?", escreve a colunista Marcia Tiburi ao citar Wyllys como exemplo

    Jean Wyllys (Foto: Reprodução)

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    Notas marginais sobre a figura do Homo Sacer

    Para Sílvio Almeida, Flávio Dino e Manuela D’Ávila

    1. “Homo sacer” é um termo latino da lei romana arcaica bastante popularizado nas últimas décadas, a partir dos livros do filósofo italiano Giorgio Agamben[1]

    Homo sacer traduz-se por "homem sagrado". A definição de um etimólogo chamado Festus é constantemente citada: um homo sacer é aquele que o povo julgou por um crime grave. Ele não será sacrificado em rituais legais, mas aquele que o matar não será condenado por homicídio. Logo, se alguém matar um homem que é um “sacer”, ele não será considerado um assassino.

    O paradoxo está em matar uma pessoa sem se tornar um assassino por ter feito isso. Evidentemente, “assassino” é apenas uma convenção que legitima a decisão soberana sobre a vida de alguém. Essa decisão pode ser de um tirano ou do povo soberano agindo de maneira tirânica. 

    2. O tirano pode ser qualquer um que detenha o poder. Pode ser o rei, o imperador, o presidente, o ministro, o miliciano que comanda um território, o pai de família (afinal, legítimo portador do “pater potestas” que, em sociedades patriarcais continua valendo) ou qualquer outro que tenha o gládio ou a arma na mão. Pode ser o neoliberal dono do capital que define a desigualdade como pano de fundo de toda ação econômica e, assim, define (sem definir) quem poderá alimentar-se ou não, ter acesso à saúde ou não, enfim, sobreviver ou não, sempre protegido pela ideia de acaso e de uma inculpabilidade que os poderosos garantem para si mesmos. 

    Soberano pode também ser o povo, a multidão revolucionária sobre a qual fala Antonio Negri, ou a massa fascista guiada digitalmente nas atuais meio-democracias do mundo, dentre as quais o Brasil. O soberano sempre será aquele que governa – mesmo que não seja o governante político, mas, é preciso repetir, mesmo que seja o governante econômico como é o neoliberal e seu poder parasitando o estado no mundo disneyficante chamado mercado - ou aquele que detém alguma forma de poder e, portanto, a liberdade que os subalternos, os súditos, os carentes de poder – inclusive evidentemente o econômico cada vez mais concentrado - em geral, não têm. 

    A condenação como “sacer” protege o condenado do sacrifício humano, ele não está sujeito à pena de morte legal, mas está privado de todos os direitos cívicos. Ele perde a sua cidadania. Ou seja, tendo sido de alguma forma protegido pela lei ao ser marcado como “sacer”, pois justamente por isso não foi sumariamente morto, ele é, ao mesmo tempo, desprotegido pela lei. A lei que não quer matá-lo num ritual como a pena de morte, o torna matável por qualquer um. No Brasil, a ausência de uma lei marcial, implica que estão todos autorizados a matar e deixar morrer. E não há quem possa defender o “homo sacer” dessa posição, até porque todos – o povo, a massa, assim como os donos do poder em geral – estão contra ele. E, nesse caso, ele foi lançado no que se chama “estado de exceção” por tudo e por todos. 

    3. Homo sacer é aquele que, tendo sido marcado como tal, não vale mais nada em termos sociais. Ninguém quer ter contato com esse corpo que sobra e que representa o que Walter Benjamin já chamava de “vida nua” ou “mera vida” antes de se suicidar em 1940 fugindo de nazistas. Em termos simples, isso quer dizer que o corpo está vivo, mas já não faz parte da sociedade. O homo sacer é lançado fora. Chutado para fora da lei e da cidadania, resta-lhe, se tiver a sorte de sobreviver – pois ele esta lançado ao acaso -, vagar e cuidar da própria vida, vale repetir, caso tenha sorte de sobreviver, pois a matabilidade é a categoria que pesa sobre ele. 

    Agamben fala da vida nua como vida biológica (ele cita a palavra grega Zoè) que sobrevive em total ruptura com a dimensão política e cultural da vida (a vida que os gregos definiam como bios). Quando a filósofa Hannah Arendt fala sobre o refugiado em As Origens do Totalitarismo nos anos 50, é a esse corpo desprotegido que ela se refere, considerando que ela mesma viveu nos EUA em exílio da sua Alemanha natal pelo resto de sua vida depois de ter passado por um campo de concentração. 

    Em resumo, como “vida nua”, o homo sacer está sujeito à soberania do estado de excepção que implica a sua matabilidade como uma consequência. Embora a sua vida biológica possa continuar, ele já não tem qualquer existência política.

    4. Nas sociedades feudais, o rito pelo qual alguém se torna “sacer” foi perpetuado através do banimento. O banimento tem uma estrutura complexa. O banido pode ser o desterrado, o corpo privado de um lugar que seria seu por direito, por exemplo um território, mas pode também ser um campo, um grupo, um sistema e, tendo em vista a lógica da ideia do banimento, quem já foi barrado numa festa ou em um clube, em um shopping center ou um restaurante, para mencionar as vítimas de racismo, entende a lei da violência simbólica. O banimento político implica que alguém é lançado fora da sociedade e deve viver à margem. Se alguém matá-lo, não será considerado assassino, não será julgado e não será punido. Genocídios em geral, de populações inteiras e de jovens negros e povos indígenas, se valem dessa logica. Por isso, os culpados do genocídio dos Yanomami esperam não ser punidos.

    Nessa condição, o homo sacer como vida nua, caso sobreviva, será silenciado e apagado. 

    A decisão soberana define que ele estará à mercê do acaso. Em termos muito simples, isso quer dizer que, exposto à matabilidade, se ele conseguir escapar, o problema é dele. Lançado na zona de exceção da lei, ele já não importa. Condenado a não existir para a lei, a não existir para a sociedade, a não existir para a cultura, se ele conseguir existir, será por acaso e isso não importara a ninguém, pois ele foi banido e ser banido significa ser excluído e abandonado. 

    5. Nas sociedades machistas, o feminicídio transforma toda mulher em matável, desde que seu assassino alegue a legítima defesa da honra ou qualquer outro motivo. Mulheres sempre foram matáveis, assim como os pobres, os escravizados, os corpos marcados pelos preconceitos capacitistas em seu amplo espectro, enfim, os carentes de poder em geral. A soberania que define quem vai viver e quem vai morrer no projeto bio e tanatopolítico do patriarcapitalismo arcaico sempre racista é originária nesse sistema que preside todas as formas de governo e subgovernos em nossas sociedades meio-democráticas.

    6. Nas sociedades digitais alguém se torna “sacer” quando sua reputação é assassinada, sem que seus assassinos possam ser condenados. Por isso, os assassinos de Marielle Franco precisaram contar com o assassinato de sua reputação no mundo virtual, para além de matar seu corpo. Dou o exemplo de Marielle porque ela não teve a chance de escapar. 

    7. Agamben percebeu que o estatuto do 'homo sacer' é semelhante ao do refugiado político e do deportado. Os judeus que chegavam aos campos de concentração, eram antes privados da sua cidadania. O paradoxo que se estabelece é o seguinte: através da lei, a sociedade faz do indivíduo um homo sacer, mas o processo de exclusão dá-lhe uma identidade, a do exilado que é uma identidade negativa. 

    O exílio também é um estatuto complexo e sobrecarregado de confusão. As pessoas que se encontram morando nas ruas de seu próprio país sem teto e sem ter o que comer, foram deportadas de um sistema econômico e vivem à margem do totalitário realismo capitalista que lança corpos na rua como se isso fosse uma escolha dessas pessoas. Viver na rua é uma forma de exílio. O raciocínio capitalista que culpa a vitima também esta presente no argumento de quem culpa um exilado de seu exilio através da ficção do “auto-exílio”.

    As pessoas que vivem nas ruas, enquanto tem a sorte de se manter vivas, meramente vivas ou “nuamente vivas”, perderam sua cidadania. Por exemplo, o que um projeto como o do Padre Júlio Lancelotti faz é atender a esses corpos excluídos do sistema, enquanto são produzidos pelo sistema e, portanto, parte do sistema. Esses corpos são colocados a habitar a zona de exceção pela qual não podem ser mortos, mas ao mesmo tempo podem ser mortos por qualquer um, sem que o seu matador se torne um assassino legalmente. A justiça do estado de exceção soberano é a justiça que promove a matabilidade dos corpos enquanto lava as mãos. 

    8. Quando Agamben se refere ao estatuto do refugiado, ele está falando do sujeito que consegue sobreviver quando, na verdade, deveria ter sido morto. Theodor Adorno já falava disso nos anos 60 a sinalizar para a condição dos condenados à morte pelo nazismo que se exilaram e, à revelia da pena de morte do Estado nazista contra eles, seguiram vivendo no exílio. Como foi colocado no início desse texto, mesmo quando o Estado não manda matar, deixar ao acaso, lançar no abandono, deixar à mercê, é também lançar à morte pela falta de proteção. Trata-se da morte pelo acaso que não terá culpados. Em todos os regimes autoritários assassinam-se pessoas indesejáveis e também os líderes de lutas ecologistas, feministas, LGBTs e populares que são mortos por defenderem direitos humanos.  

    9. Em certos países como o Brasil, a ameaça de morte foi sendo naturalizada nos últimos anos. Muitos “homo sacer” vem sendo mortos, comprovando o que está na base da tese de Agamben: quem não é homo sacer, é potencial assassino protegido pelo paradoxo do assassino. Quem deixa morrer é o assassino que não deixa dizer seu nome. Assim, isso vale mais ainda para o Estado. 

    O estatuto dos refugiados, asilados e exilados implica a privação dos direitos de cidadania. Mesmo quando conseguem assegurar algum tipo de direito em países que recebem pessoas nessas condições, elas vivem o banimento cultural, linguístico e todos os demais banimentos que dizem respeito à perda do pertencimento. Cada ser humano é mais que um corpo meramente vivo. Cada pessoa é um corpo integrado ao seu mundo. O direito ao pertencimento está em jogo nos direitos humanos emergentes. Ninguém que conheça os arcanos da democracia é capaz de negar que se trata também de pertencimento quando se fala de exílio. 

    Os chamados direitos inalienáveis do ser humano, se não são direitos dos cidadãos de um Estado, de nada valem. Os direitos humanos e os direitos civis precisam estar interligados. Direitos humanos são concebidos como uma base para direitos civis, mas na figura do homo sacer, a privação desses direitos transforma os seres humanos desprovidos de sua cidadania, em corpos “selvagens” que podem ser exterminados em massa, simplesmente matáveis nas ruas, ou excluídos de um país ou de um território – ou de um campo – que seria seu de direito. Agambem junto com Arendt defenderá que o respeito pelos direitos humanos é essencial para a garantia dos direitos civis. Quem sabe da importância da ética na política, não será capaz de apagar esse fato.  

    10. Agambem dirá que, a relação de excepção é uma “relação de bando”. E bando significa sobretudo, “lado”. Como ele diz: “aquele que foi colocado de lado não está simplesmente fora da lei, nem é indiferente a ela, mas é abandonado por ela, ou seja, está exposto e em perigo no limiar onde a vida e a lei, o exterior e o interior, se confundem.” 

    Quando alguém é colocado na posição de bando é porque um outro bando se formou. Ou seja, se alguém é posto de lado é porque se criou um lado. Evidentemente, esse processo implica a estrutura do paradoxo que favorece sempre quem tem poder contra quem não tem poder. 

    Na relação de bando, não se pode dizer literalmente se alguém está fora ou dentro da ordem legal. O estado de exceção implica o apagamento desses limites. Nesse sentido, Agambem explicará que a razão pela qual as locuções italianas "in bando", "a bandono" significam originalmente tanto “à mercê de” como “à sua própria vontade”, “à sua própria discrição”, “livremente”, como na expressão italiana “corriere a bandono". Em termos simples isso significa que ninguém ira se responsabilizar, muito menos os culpados. E que aqueles que perpetuam esse estado de coisas, se tornam novos culpados, signatário do poder que se vale da irresponsabilidade para se manter no seu lugar. 

    Ele também vai nos lembrar que “banido” e “bandito” tem tanto o valor de excluído, posto de lado (escluso, messo al bando...) como o de “aberto a todos”. Ou seja, exposto a qualquer um, o que, sobretudo hoje em dia, vale tanto para a vida concreta, quanto para a vida virtual. 

    11. Hoje, há diversos exilados fora do Brasil sendo protegidos por instituições estrangeiras, entre as quais me incluo. Um governo democrático terá que se ocupar dessas pessoas que querem voltar ao país, mas continuam sendo ameaçadas. Um país que não se importa com seus exilados poderá afirmar que restabeleceu a democracia? 

    Pedir que os exilados passem a ser protegidos por seu próprio país no momento em que ele retoma a democracia não é pedir nada fora do aceitável. 

    [1] Sobre o filósofo, é interessante lembrar que sua teoria já foi usada contra ele. No Brasil, um fascista que consegue ter acesso a livros o citou de modo distorcido. A lógica do fascismo é a distorção e eu mesma, que fui uma das primeiras, senão a primeira, a falar sobre fascismo e discurso de ódio no Brasil, continuo exilada de meu país e sendo chamada de fascista pelos fascistas que eu denunciei. Assim, desde que minha imagem foi sequestrada e segue sendo conspurcada por fake News e montagens canhestras, descobri que tenho uma existência espectral, percebi que sou, hoje, eu mesma um “homo sacer”. Por isso, ao escrever esse texto, não posso esconder que sou objeto da minha já antiga investigação (falo disso pelo menos desde um livro publicado em 2011 chamado Olho de Vidro), como vejo também meu amigo Jean Wyllys a quem não posso deixar de citar, e há vários outros para citar, pois vivemos em tudo, situações muito parecidas: somos protegidos por instituições e não somos protegidos em nosso próprio país. Boa leitura a quem tiver paciência.  

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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