Sobretaxar as Big Techs para financiar a soberania informacional
"Mesmo na era digital, o Brasil segue dependente de plataformas estrangeiras que controlam nossos dados e lucram sem contribuir proporcionalmente"
Por Reynaldo Aragon e Sara Goes - A cada clique, a cada busca, a cada post compartilhado, o Brasil transfere poder, dados e recursos a corporações que operam acima das leis nacionais, sem prestar contas, sem contribuir de forma justa e sem compromisso algum com o desenvolvimento do país. Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft, Uber, Airbnb: as Big Techs lucram bilhões por ano com os dados, a atenção e o comportamento da população brasileira, mas operam com um modelo de negócios blindado por brechas legais, regimes fiscais favoráveis e acordos internacionais assimétricos. O resultado é conhecido: dependência estrutural, submissão algorítmica e ausência de soberania informacional. A saída exige ousadia — e começa por um passo decisivo: sobretaxar as plataformas e utilizar esses recursos para financiar um novo projeto nacional baseado na autonomia digital, na ciência pública e na justiça informacional.
Essa medida, já adotada em países da União Europeia como França, Itália e Espanha, deve ser adaptada à realidade brasileira não apenas como reação à ofensiva tarifária dos EUA, mas como eixo de um projeto estratégico de reconstrução soberana. No centro da disputa está o futuro do país enquanto sujeito autônomo na era da informação. E é aí que a sobretaxação se revela não como punição, mas como ferramenta de redistribuição histórica: cobrar de quem lucra com nossa sociedade para financiar a infraestrutura que permitirá que essa mesma sociedade seja livre.
Uma colonização silenciosa: dados, algoritmos e desinformação
O Brasil é hoje uma das maiores potências em engajamento digital do mundo, mas atua como um “colaborador não remunerado” da indústria global de dados. Produzimos conteúdos, interações, mapas comportamentais, preferências de consumo e rastros de navegação — convertidos em lucro por empresas estrangeiras. Esse fluxo constante de riqueza informacional, não tributado proporcionalmente, drena a capacidade do país de construir sua própria infraestrutura. Ao mesmo tempo, permite que algoritmos opacos, geridos fora do território nacional, moldem o debate público, incentivem a radicalização política e disseminem desinformação em escala industrial.Essa é a essência da nova forma de colonialismo: um controle invisível, algorítmico, econômico e cultural. E o Estado brasileiro, até hoje, respondeu com tímidas tentativas de regulação, travadas sistematicamente por lobbies poderosíssimos. A chamada “bancada do like” e a Frente Parlamentar da Cibersegurança (FrenCyber), operam como escudos legislativos das plataformas, defendendo interesses corporativos em nome da “liberdade de expressão”, enquanto o país afunda em assimetrias tecnológicas, científicas e políticas.É nesse cenário que a proposta de criação de um Fundo Nacional de Soberania Informacional, abastecido com recursos oriundos da taxação das Big Techs, ganha centralidade estratégica. Trata-se de um gesto claro: quem lucra com o Brasil deve financiar o futuro do Brasil.
Plataformas nacionais: o iFood e o lobby antirregulação
A discussão sobre a necessidade de tributar e regular as Big Techs não pode ignorar o fato de que parte das plataformas brasileiras também opera à margem de compromissos éticos, fiscais e sociais com o país. O caso do iFood é emblemático. Embora sediada no Brasil, a empresa adota uma lógica de negócios tão predatória quanto as multinacionais, aproveitando-se da ausência de regulamentação firme para explorar trabalhadores por meio de algoritmos opacos, driblar obrigações trabalhistas e pressionar parlamentares contra qualquer iniciativa que aponte para maior controle público. O iFood tem atuado ativamente nos bastidores do Congresso Nacional, financiando eventos, institutos e campanhas de marketing que se disfarçam de “inovação” enquanto atacam direitos elementares da classe trabalhadora.
Em 2021, veio à tona que a empresa mantinha relações com agências de marketing político para manipular o debate público nas redes, influenciar a percepção sobre projetos de lei e criar uma imagem pública de empresa progressista enquanto sabotava projetos regulatórios em curso. Isso mostra que o problema não é apenas geopolítico ou internacional — é sistêmico, e envolve também elites empresariais locais que se alinham ao modelo de desregulamentação agressiva e colonização digital, mesmo operando em território nacional. Enfrentar esse modelo exige coragem para regular tanto as gigantes estrangeiras quanto as plataformas brasileiras que se beneficiam da mesma lógica de impunidade e extração sem contrapartida.
De onde vem e para onde vai: o poder dos bilhões digitalmente arrecadáveis
Estudos baseados em modelos europeus sugerem que uma tributação progressiva e específica sobre lucros e operações das Big Techs no Brasil pode gerar entre R$ 10 e R$ 15 bilhões por ano — valor que representa não apenas um alívio fiscal, mas uma oportunidade única de investimento estruturante. A diferença está em como esse recurso será aplicado: de forma estratégica, transparente e orientada à transformação do país em uma potência digital soberana.
1. Defesa cibernética e infraestrutura estratégica
O fundo pode financiar a expansão da infraestrutura crítica brasileira em áreas como satélites nacionais, cabos submarinos próprios, data centers soberanos, programas de vigilância cibernética democrática e sistemas de defesa digital integrados. É urgente desenvolver softwares de monitoramento com código aberto, protocolos nacionais de segurança informacional e infraestrutura digital de uso civil e militar, reduzindo a dependência de tecnologias de países centrais.
2. Fortalecimento do Gov.br e de plataformas públicas
Hoje o Brasil já conta com o Gov.br, uma plataforma robusta, segura e com hospedagem em território nacional. Com os recursos da sobretaxação, o Gov.br pode se transformar em uma alternativa viável às Big Techs, ampliando seus serviços, democratizando o acesso a dados públicos, integrando sistemas educacionais, culturais e de saúde — e ainda operando redes sociais públicas, transparentes e descentralizadas.
3. Apoio massivo à Ciência Nacional e à IA Pública
O Brasil precisa investir em inteligência artificial soberana, com algoritmos auditáveis e voltados para o bem comum. Isso implica fomentar laboratórios de IA em universidades públicas, com acesso a dados anonimizados e seguros, livres da lógica extrativista. Os recursos podem financiar projetos de pesquisa multidisciplinar, incubadoras tecnológicas, editais para inovação em software livre e programas permanentes de proteção dos direitos digitais dos cidadãos. A produção científica brasileira, hoje sabotada por cortes orçamentários, seria reerguida como pilar de uma nova era tecnocientífica nacional.
4. Educação midiática, pesquisa aplicada e intervenções tecnocientíficas
Não há soberania informacional possível sem uma população crítica, consciente e tecnicamente preparada para habitar — e disputar — o território digital. Por isso, os recursos oriundos da taxação das Big Techs devem ser direcionados a investimentos pesados em pesquisas aplicadas e intervenções científicas estruturadas, com foco em modelos tecnocientíficos voltados ao combate à guerra híbrida, guerra cognitiva, desinformação, manipulação algorítmica e desagregação social. Isso inclui desde o desenvolvimento de metodologias avançadas de letramento midiático e digital, aplicadas em todos os níveis de ensino, até a estruturação de políticas públicas baseadas em evidências, capazes de fortalecer a resiliência social frente às operações informacionais.
Essas iniciativas devem integrar universidades, centros de pesquisa, coletivos e instituições públicas em redes colaborativas de produção de conhecimento e ação concreta. O país pode criar editais permanentes para desenvolvimento de plataformas educativas abertas, jogos interativos, sistemas de monitoramento de desinformação, simulações comportamentais baseadas em ciência de dados e inteligência artificial voltadas à soberania informacional. O objetivo não é apenas formar cidadãos críticos, mas construir uma inteligência coletiva nacional capaz de intervir de forma soberana, estratégica e tecnicamente qualificada no ambiente informacional contemporâneo.
5. Apoio a movimentos de ciberativismo, internet livre e software livre
Coletivos como o Transparência Hacker, comunidades GNU/Linux, projetos do Debian Brasil, redes do Mastodon, PeerTube, Gnome, FeliciLab e universidades públicas que já atuam em soberania informacional devem ser reconhecidos como ativos estratégicos nacionais. O fundo pode financiar o desenvolvimento de plataformas federadas, infraestruturas de dados descentralizadas, repositórios públicos, sistemas de certificação digital e projetos comunitários que conectem territórios a redes seguras e éticas, sem intermediação predatória das Big Techs.
6. Comunicação pública e soberania cognitiva
Parte dos recursos deve ser destinada à criação de uma infraestrutura pública de comunicação voltada à soberania cognitiva. Isso inclui plataformas públicas de vídeo, áudio e rede social, sustentadas por código aberto e governança descentralizada, bem como o fortalecimento de veículos de comunicação independentes que resistem à desinformação e promovem jornalismo de interesse público. Esses sistemas precisam operar fora da lógica do capital de vigilância e devem estar a serviço da pluralidade, da diversidade cultural e da democracia.
Projeto de País ou submissão permanente?
O enfrentamento político é inevitável. As corporações que dominam a economia da atenção e da vigilância têm aliados em todos os níveis do Estado. Mas é precisamente por isso que a proposta de sobretaxação precisa ser acompanhada de narrativa estratégica, apoio social e base técnica sólida. Não se trata de guerra ideológica — trata-se de justiça fiscal e defesa do interesse nacional.
O Brasil precisa decidir se continuará como colônia de dados, produtor passivo de valor para plataformas globais, ou se irá construir sua própria arquitetura informacional, científica e cultural. A disputa pelo futuro já está em curso — e se dá em linhas de código, termos de uso, decisões algorítmicas e acordos internacionais. Ou nos impomos como sujeitos históricos desse processo, ou continuaremos sendo objeto das vontades alheias.
A hora de agir é agora. E quem deve financiar essa virada histórica são justamente aqueles que mais lucraram com a nossa submissão digital.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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