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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Terrorismo de Estado e a ditadura militar: golpe de Estado e o caso Riocentro

    "O caso Riocentro foi típico do terrorismo de Estado, planejado pelos militares da conhecida linha-dura do regime ditatorial brasileiro da qual o atual Presidente do Brasil e o seu grupo fardado mais próximo é saudosista", analisa o colunista Roberto Bueno

    (Foto: Reprodução)

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    A ditadura militar brasileira derivada do golpe de Estado de 1964 foi articulada com o alto empresariado nacional, com a grande mídia nacional e setores controlados do Poder Judiciário, todos ancorados pelo poderio do imperialismo norte-americano, disposto a financiar a violência contra a democracia brasileira encarnada no regime progressista de João Goulart. Esta associação para o golpe de Estado logo desembocou no derramamento de sangue de cidadãos brasileiros por parte dos militares e também por gente próxima ao regime distribuída em diversos setores da administração pública e, embora em menor escala, até mesmo de algumas instituições privadas. Dentre elas, o papel de algumas empresas foi sendo desvelado ao longo do tempo, como o caso da fabricante de automóveis Volkswagen, assim como a já mais conhecida participação da empresa jornalística da família Frias, por intermédio de seus veículos impressos, a Folha de São Paulo e a Folha da Manhã, cujos automóveis foram úteis ao regime em ações de inteligência e repressão, assim como os da empresa Ultragás, que sob a presidência do ignóbil Henning A. Boilesen (reconhecido como “plateia” em sessões de tortura) instrumentalizava veículos de transporte de gás da empresa para a fiscalização de pontos específicos de interesse da repressão. 

    As ações de violência durante o regime militar não deixaram de contar com o apoio do grande capital ou, na melhor das hipóteses, com o seu silêncio obsequioso, nada envergonhado, enquanto continuava a drenar volumosas quantias para os seus cofres. O poder civil compactuou com o terrorismo de Estado conduzido pelas mãos militares, prática comum sustentada no apoio do sistema de inteligência do regime, não sem o acobertamento indispensável para obter sustentação na opinião pública. Um dos mais graves casos de violência inscritos na história do Brasil pelos militares foi o caso das bombas que os militares planejaram detonar no Riocentro na noite de 30 de abril de 2021, potencialmente causadoras de milhares de mortes, sobretudo quando somada às outras medidas as para disseminar pânico no vultoso público que assistia show musical multitudinário no grande palco montado no Riocentro.  

    O atentado do Riocentro se insere em contexto de desprezo nutrido pela ditadura militar brasileira não apenas pela vida humana, mas pela massa dos cidadãos que paga o soldo de cada um de seus membros. Este fato histórico a que dedicamos espaço merece ganhar a cada ano renovada atenção e destaque, de sorte que as novas gerações possam acumular conhecimento sobre o real significado da história de intervenções política golpista das Forças Armadas brasileiras na vida nacional que se atribuem papel tutelador da soberania civil. As suas consequências têm sido horrendas para o país, e em 1964 mergulharam-no em terrível e sombria noite, impondo pesadelo que durou décadas, e outras ainda para recuperar-se do grave prejuízo humano, político e econômico para, logo após, mais recentemente, quando medianamente cicatrizadas as feridas, voltar a atacar a pátria, ao tornarem-se fiadoras do golpe de Estado de 2016 e, passo seguinte, através do método de aproximações sucessivas, assumir o poder diretamente em 2018 realizando eleições com triunfo assegurado em ambiente controlado (instâncias eleitorais e exclusão de concorrentes favoritos) e manipulação do processo através de estratégias de propaganda com forte financiamento subterrâneo no país e fora dele.  

    O mundo político brasileiro comprometido com valores democráticos descuidou de sua tarefa de defesa institucional por intermédio da mobilização popular, abrindo brechas para que os ânimos homicidas do Riocentro pudessem voltar à tona, para que os vetustos herdeiros da ânsia de torturar e exterminar o povo brasileiro assumissem o poder, desta feita dando azo ao desejo de matar sob a potencialização do temível vírus gerador da pandemia mundial. É preciso recordar esta tétrica passagem histórica sobretudo para os mais jovens, especialmente quando as instituições não assumem publicamente as suas culpas e nem expõem os crimes cometidos, pois é imperativo não esquecer o significado do governo das armas, no qual a liberdade é miragem, a vida sob censura uma tensão diária, assim como o desatino e o roubo da esperança são a regra, enquanto, em paralelo, a tortura vai sendo constituída como pesadelo útil para o poder atemorizar os defensores da democracia e da ordem constitucional. 

    O terror tão típico das mentes assassinas que habitam o núcleo duro das ditaduras de toda sorte de composição é assaz atraente para perversos dispostos a comissão de toda sorte de brutalidades. Quando corriam os dias da distensão política e, portanto, já entrado o Governo do General João Figueiredo (1979-1985), teve lugar o fato criminoso organizado por forças militares e da inteligência conhecido como atentado do Riocentro. O atentado do Riocentro foi planejado para ser executado na noite do dia 30 de abril de 1981, entrada a madrugada, enquanto estava sendo comemorado do dia do trabalhador com um grande show musical ao qual acudiram milhares de pessoas no Riocentro, em ampla área destinada ao estacionamento de veículos em Jacarepaguá (RJ). Estavam presentes eminentes artistas populares da MPB da época, tais como Gal Costa e Chico Buarque, Gonzaguinha e Alceu Valença. Era o cenário para uma noite de congraçamento popular em tempos todavia muito difíceis sob o regime militar, dias em que a impaciência e a insatisfação política com o militarismo eram flagrantes, após seus tantos insucessos e reiteradas violências. Potencialmente, naquele espaço poderiam ocorrer demonstrações públicas de hostilidades ao regime militar de Figueiredo, personagem que ganhou as manchetes do período ao declarar sua preferência pelo cheiro dos cavalos ao do povo, sentimento este que, aliás, sem qualquer segredo, é compartilhado por proeminentes personalidades do atual governo brasileiro, como é o caso do Ministro Paulo Guedes. 

    O planejamento do atentado do Riocentro envolvia a detonação de bomba para que atingisse a multidão e não apenas causasse susto. Estava em causa, verdadeiramente, a prática de ato criminoso organizado pelo regime militar brasileiro visando expor a situação de morte um número imprevisível de pessoas com o objetivo de, atribuindo a responsabilidade às forças de resistência antiditadura de esquerda, criar condições políticas que viabilizassem condições para angariar apoio popular para o fechamento do regime, já bastante decadente. Era este o segundo momento do desenvolvimento do plano, acusar tais “grupos de terroristas”, que teriam o objetivo seria desestabilizar o Governo militar, argumento que, pensavam as autoridades, persuadiria a população a apoiar o aumento da repressão e, por conseguinte, dar um passo atrás na abertura “lenta, gradual e segura” anunciada ainda pelo ditador Ernesto Geisel (1974-1979) e confirmada por seu sucessor João Figueiredo (1979-1985).  

    O plano do atentado do Riocentro era criminoso, típico de delinquentes, que não deixam de sê-lo por estarem revestidos de autoridade pública. Sob farda ou não, o crime é imputável pelo fato de transgredir as normas de direito, cujo abuso foi flagrante à época mesmo quando os próprios transgressores também detivessem as chaves para a criação do ordenamento jurídico em sua íntegra, sob medida, conforme os seus interesses. Macabro era o plano, e a ideia-base era pavimentar com sangue humano a trilha das condições políticas para instaurar clima de pânico entre a população para criar o clima para perpetrar-se no poder, dando já mostras de que o seu treinamento para matar gente não encontraria fronteira ou limites quando o objetivo visado impusesse o assassinato dos contribuintes e cidadãos que pagam o soldo e vencimentos dos que traem a missão de servir o público.  

    Rigorosamente, o grupo daqueles que desde então foram conhecidos militares “linha-dura” formaram um coletivo que deu sobradas mostras de disposição para utilizar absolutamente quaisquer métodos e praticar quaisquer crimes, contanto que o poder fosse assegurado em suas mãos. Não havia fronteiras de dor e sangue que lhes servisse de limite, afinal, décadas após, diria um político atual que na época não passava de militar mal avaliado – até mesmo pelo comandante do extermínio na época, a quem o classificava como “mal militar” – que o seu treinamento era para “matar pessoas”. Hoje em posição proeminente na República, o tal militar de baixa patente contém em seu prontuário a baixa do Exército por planejar explodir quartéis inteiros com seus companheiros de farda dentro, mas também omissão de que o seu treinamento para matar gente não envolveu diferenciar entre inimigo externo e os cidadãos nacionais. Ao que parece, os nacionais são merecedores do mesmo tratamento homicida segundo a doutrina de segurança nacional, cujos desdobramentos transforma exércitos inteiros em genuínas guardas pretorianas do império capitalista norte-americano em cada país sul-americano. 

    Os militares da “linha-dura” viram frustrar o atentado do Riocentro devido a explosão acidental do artefato em face de má manipulação do agente encarregado da operação, momentos antes de levar a bomba para o local previsto para detonação. A dupla de terroristas militares a mando do Estado chegou ao Riocentro às 20h58m, e pouco após, quando das 21h20m, quando a jovem Elba Ramalho ocupava as atenções no palco, a bomba explodiu ainda dentro do veículo Puma em que os militares ultimavam os detalhes. A explosão vitimou instantaneamente o Sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, deixando semidestroçado o corpo do agente do DOI dentro do veículo Puma, placas OT-0279, em que estava sentado na posição de passageiro, enquanto o Capitão Wilson Luiz Chaves Machado que estava ao volante conseguiu sair do veículo com ferimentos gravíssimos à vista nua, tendo sido Andréa Neves da Cunha, conhecida irmã de Aécio Neves, quem veio a encontrá-lo e prestar primeira atenção a vítima levando-o ao hospital, onde os cuidados possibilitaram que sobrevivesse. 

    Nos momentos seguintes ao atentado a grande imprensa empreendeu a difícil tarefa de tergiversar e ocultar os verdadeiros responsáveis pelo atentado, nenhum deles desarticulado com o regime militar. Não apenas aqueles militares estiveram relacionados ao caso, e na sequência outros nomes começaram a surgir. Além daquela bomba que explodiu no colo do Sargento Rosário, ainda outra estava prevista para explodir na casa de força do Riocentro, mas que, por mau cálculo, não teve carga suficiente para afetar a iluminação do ambiente festivo e, assim, obstar as condições de continuidade do show. Tal explosão ocorreu sem que o público tivesse notícia do sucedido, até que o cantor Gonzaguinha informou o fato, prestando contas de que antidemocratas haviam jogado bombas para amedrontar o público, circunstância que, mesmo sem mencionar nomes, todos já sabiam quem eram os responsáveis. Começavam ali dias bastante difíceis para o regime militar, pois quando o organismo do Estado se move e organiza para exterminar o seu próprio povo isto nada mais indica que a sua falência já ocorreu, seus dias já estão contados, e o rumo para o seu desfecho é inexorável, sendo o banco dos réus o destino provável para os organizadores de mortes e assassinatos. 

    Abertas as investigações do caso Riocentro, e mesmo dispondo de todas as evidências e provas, o Coronel Job Lorena de Sant'Anna entregou relatório cujo eixo era manter a versão do DOI-CODI, que excluía os militares de qualquer envolvimento na ação, optando pela versão de que o Sargento Rosário e o Capitão Machado teriam sido vítimas de “subversivos”. O caso Riocentro seria reaberto tão somente quando era avançado o ano de 1999, portanto, longos 18 anos depois, pelas mãos da Procuradora da República Gilda Berer, tendo sido aberto um novo IPM (Inquérito Policial Militar) sob a presidência do General Sérgio Conforto, que desta vez foi concludente pela responsabilização do falecido Sargento Rosário. Nesta nova etapa de investigações sob o General Conforto, foi confirmado o envolvimento não apenas do Capitão Machado mas também do nome do General Newton Cruz, então Chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações, criado pela lei nº 4.341 em 13 de junho de 1964), assim como do conhecido Freddie Perdigão (posteriormente também apareceria envolvido na morte de Zuzu Angel além de ter seu nome citado pela conexão com a horrenda “Casa de Petrópolis” pelo assassinado “Doutor Pablo”, codinome do Coronel Paulo Malhães), então Chefe da Agência do SNI no Rio de Janeiro, envolvido em diversos casos nebulosos durante a ditadura militar, além de ter sido identificado por muitas vítimas e companheiros como um bárbaro torturador muito atuante nos porões da ditadura sob codinomes como “dr. Nabig” ou “dr. Pereira”, a quem foram atribuídos diversos crimes. 

    Sob todos os ângulos de análise, o Riocentro foi ato terrorista planejado nos gabinetes militares e das autoridades da área de segurança do Estado, e série de evidências se somaram para sustentar esta hipótese, depois plenamente confirmada com a superação do regime militar e daqueles que ocupavam postos-chave e impediam a devida responsabilização dos culpados. Os indícios e provas eram múltiplos, a exemplo de que o veículo Puma tinha placas falsas, e dentro dele havia ainda outra bomba (que não detonou), ademais de granadas, algo inexplicável para quem comparece a um show musical com grande afluxo de pessoas, conjunto de fatos que se pretenderia explicar pela fantasiosa criação de que os militares teriam sido vitimados por militantes de esquerda. 

    Além deste conjunto de elementos, havia a informação casualmente registrada por garçons durante o dia em um restaurante que suspeitaram da reunião de um grupo de homens armados lendo um mapa. Chamada ao local, a polícia identificou os presentes como agentes do DOI e militares do CIEX (Centro de Informações do Exército). Havia planejamento e método, e a provocação de mortes e assassinatos pelo regime não era casual, senão projeto. Entre as providências para a boa e segura execução do plano, estava a substituição do chefe da segurança do Riocentro precisamente naquele dia de realização do evento, mas também do policiamento, que tinha sido conveniente desativado, algo inexplicável justo em noite de alto afluxo de pessoas, algo que, ordinariamente, demanda aumento de policiamento e não o seu completo cancelamento, exceto se os planos não envolvessem a segurança do público. Era este o caso do regime que não se organizava para proteger e salvar vidas, mas para exterminá-las. 

    O caso Riocentro foi típico do terrorismo de Estado, planejado pelos militares da conhecida linha-dura do regime ditatorial brasileiro da qual o atual Presidente do Brasil e o seu grupo fardado mais próximo é saudosista. O propósito final da ação violenta daquele grupo era corroer e finalmente impedir o processo de “abertura lenta, gradual e segura” que havia sido anunciado pelo General Ernesto Geisel como norte político para a sua administração, muito embora logo fosse perceptível tratar-se apenas de estratégia política para assegurar as bases autoritárias do regime sem que a ala radical ganhasse mais espaços no poder. O caso Riocentro foi a gota d´água que impôs limitação às ações terroristas da ditadura militar, pois em face da configuração da opinião pública, qualquer outro movimento identificável de violência terrorista dos militares teria sido fatal e certamente abreviado o regime. 

    Era assim neutralizada uma das armas mais sujas do poder ditatorial militar para a disputa política, ou seja, o Estado dispor de seus órgãos e recursos humanos para assassinar os seus cidadãos. O terrorismo de Estado pode ganhar diversas formas e faces, todas elas horrendas como as de seus capitães. Este deve ser sempre o objeto de primeiro combate por parte das forças democrático-populares, pois quando segmentos sociais reagem contra o arbítrio e a força crua do Estado, logo, é possível impor insuportáveis custos políticos à covardia transformada em poder sob as vestes do manto jurídico da legalidade mal composta traduzida no massacre de cidadãos. É este modelo de Estado, terrorista e torturador, que Bolsonaro e o séquito de militares de duvidosa formação intelectual e compromisso com a legalidade constitucional vem comemorando incessantemente a cada fatídico dia 31 de março de 2019, data marcada pela lembrança de torturas indescritíveis, ignomínia de toda sorte e sangue sendo jorrado de vítimas da covardia cuja comissão mesmo os mais sombrios humanos duvidariam. A democracia brasileira já perdeu quando ouvimos a primeira manifestação de torturadores e todos os que subverteram a ordem constitucional de 1964 sem que lhes fosse imposta qualquer punição, mas o campo para reação visando sua reconstrução permanece aberto.

    A dança sombria e funesta à beira do abismo não deu ainda seu passo conclusivo e, enquanto o ébrio e genocida dançarino não é contido, resolve ele arriscar seu derradeiro passo tentando um duplo twist, armado, de previsível desfecho, insistindo no convite à morte e ao extermínio da população, com a mesma ansiedade tanatológica que moveu os organizadores do Riocentro. O genocida e sua missão não encontra ponto de contenção, senão quando é travado por forças superiores. O ânimo genocida esteve sempre residiu em potencial nas ações do conjunto de personalidades que elogiam o ódio à vida e o desejo do extermínio e pautam a conjugação de ambos como guia para as suas opções políticas. 

    Neste final de mês de abril de 2021 quando testemunhamos mais de 401 mil mortos e o altíssimo risco às vidas de outras dezenas de milhares de brasileiros, número que pode facilmente alcançar a casa da ceifa de centenas de milhares de vidas, até aqui tão somente foi explicitado o compromisso com a promoção da morte como forma política que habita mentes que aliam o desprezo pela população brasileira a ocultos interesses econômicos cobertos pela bandeira imperial. Como naquela sombria quadra histórica da ditadura militar de 1964, desde o Planalto Central emanam sinais de morte e extermínio que não serão contidos senão sob força contrária de que apenas o povo dispõe. Tristes os criminosos que traem a pátria e pavimentam seus interesses particulares com o sangue de centenas de milhares sob a expectativa de que a impunidade lhes fará do futuro um lugar de regozijo. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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