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      Renê Guedes

      Engenheiro, pós-graduado em economia, especialista em planejamento e execução estratégica pela Universidade de Grenoble e London Business School, cinéfilo por vocação e crítico de cinema.

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      The Apprentice (O Aprendiz) | 2024: Trump e a construção do Glutão Social

      O filme do iraniano Ali Abbasi é menos sobre eventos e mais sobre formação. Trump não é apresentado como exceção, mas como produto

      The Apprentice (Foto: Reprodução)

      The Apprentice, novo filme do iraniano Ali Abbasi, parte de uma premissa arriscada: contar a origem de Donald Trump como empresário e, de quebra, sugerir os primeiros traços do político que viria a reconfigurar a política estadunidense à sua imagem e vaidade.

      O resultado é surpreendentemente consistente — especialmente para um projeto que, à primeira vista, poderia ter resvalado na paródia ou no panfleto.

      Abbasi conduz o filme com firmeza. Sua Nova York dos anos 70 é uma paisagem suja, instável, decadente. A câmera trêmula e a fotografia saturada ajudam a construir uma atmosfera decadente, que reflete não apenas a cidade em colapso econômico, mas também um país à deriva, ainda digerindo a crise do petróleo, o esgotamento do modelo econômico do pós-guerra e o fracasso traumático da Guerra do Vietnã.

      É nesse cenário em decomposição que conhecemos um jovem Trump: ambicioso, vaidoso, inseguro e obcecado por reconhecimento.

      A narrativa é estruturada em torno da relação entre Trump e Roy Cohn, advogado implacável e figura-chave para o entendimento da mentalidade de poder nos EUA do pós-guerra. Jeremy Strong, como Cohn, domina as cenas com uma frieza calculada. O Filme sempre cresce quando Cohn (Jeremy Strong, muito bem) está em cena.

      Cohn não é apenas um tutor, mas um arquétipo — foi assessor direto do senador Joseph McCarthy durante a famigerada caça aos comunistas nos anos 50, e seguiu até o fim da vida posicionado como um radical conservador, ao mesmo tempo em que escondia sua homossexualidade num ambiente onde o poder se nutria da repressão.

      É Cohn quem introduz Trump às “regras do jogo” — um jogo cínico, sem escrúpulos, onde vencer vale mais do que qualquer princípio. A parceria entre os dois é tratada com ambiguidade: há ali admiração, cálculo, conveniência, e uma certa transferência de valores entre gerações que, de alguma forma, define muito do que viria a ser o trumpismo.

      Sebastian Stan aposta numa interpretação marcada por gestos e exageros visuais, quase uma caricatura — e isso funciona. O exagero, nesse caso, não é um defeito, mas uma escolha coerente com o personagem retratado.

      E, a medida que o filme avança, a interpretação de Stan vai carregando mais nos maneirismos de Trump, seja nos gestos, seja na voz e nas falas cheias de palavras repetidas e vazias. De certa forma, é um “filme de origem de um supervilão”, como pontuou muito bem o crítico Chico Fireman. Como na cena, quase uma paródia, onde Trump se encontra com um político e este inspira a criação do slogan icônico do movimento MAGA: “Make America Great Again“.

      O filme é menos sobre eventos e mais sobre formação. Trump não é apresentado como exceção, mas como produto — fruto direto de uma elite paranoica, moldada por um anticomunismo visceral e uma fé quase religiosa na superioridade moral do capitalismo americano.

      A América do filme é um lugar de promessas ilimitadas — mas só para os bilionários e os seus lugar-tenentes.

      Há algo de faminto no jovem Trump retratado aqui. Não é apenas ambição. É um apetite pelo acúmulo: de dinheiro, de poder, de fama, de controle. Um glutão social, que consome ambientes, pessoas, símbolos — e os regurgita em forma de paródia quase involuntária.

      De certa forma, o filme vai construindo passagens que revelam o monstro. E, ainda que ele não faça explicitamente a pergunta, fica óbvio como o diretor – um estrangeiro – fica estarrecido de como aquela sociedade, supostamente civilizada e desenvolvida, pariu politicamente um Trump.

      Importa também destacar uma cena problemática no meio da narrativa: uma representação gráfica de estupro conjugal envolvendo Ivana Trump. A sequência, desnecessária e incômoda, quebra o equilíbrio do filme ao optar por um realismo brutal que nada acrescenta à construção do personagem ou à narrativa geral. É um momento que destoa do tom do restante da obra — mais insinuativo, mais analítico — e que poderia (ou deveria) ter sido evitado.

      Ainda assim, The Apprentice acerta ao explorar o lado caricato e monstruoso do personagem, com a sua superficialidade brutal, que é produto e retrato do seu tempo.

      The Apprentice estreou recentemente no catálogo da Prime Video.

      Trump, Trumpismo, cinema, crítica

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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