The Apprentice (O Aprendiz) | 2024: Trump e a construção do Glutão Social
O filme do iraniano Ali Abbasi é menos sobre eventos e mais sobre formação. Trump não é apresentado como exceção, mas como produto
The Apprentice, novo filme do iraniano Ali Abbasi, parte de uma premissa arriscada: contar a origem de Donald Trump como empresário e, de quebra, sugerir os primeiros traços do político que viria a reconfigurar a política estadunidense à sua imagem e vaidade.
O resultado é surpreendentemente consistente — especialmente para um projeto que, à primeira vista, poderia ter resvalado na paródia ou no panfleto.
Abbasi conduz o filme com firmeza. Sua Nova York dos anos 70 é uma paisagem suja, instável, decadente. A câmera trêmula e a fotografia saturada ajudam a construir uma atmosfera decadente, que reflete não apenas a cidade em colapso econômico, mas também um país à deriva, ainda digerindo a crise do petróleo, o esgotamento do modelo econômico do pós-guerra e o fracasso traumático da Guerra do Vietnã.
É nesse cenário em decomposição que conhecemos um jovem Trump: ambicioso, vaidoso, inseguro e obcecado por reconhecimento.
A narrativa é estruturada em torno da relação entre Trump e Roy Cohn, advogado implacável e figura-chave para o entendimento da mentalidade de poder nos EUA do pós-guerra. Jeremy Strong, como Cohn, domina as cenas com uma frieza calculada. O Filme sempre cresce quando Cohn (Jeremy Strong, muito bem) está em cena.
Cohn não é apenas um tutor, mas um arquétipo — foi assessor direto do senador Joseph McCarthy durante a famigerada caça aos comunistas nos anos 50, e seguiu até o fim da vida posicionado como um radical conservador, ao mesmo tempo em que escondia sua homossexualidade num ambiente onde o poder se nutria da repressão.
É Cohn quem introduz Trump às “regras do jogo” — um jogo cínico, sem escrúpulos, onde vencer vale mais do que qualquer princípio. A parceria entre os dois é tratada com ambiguidade: há ali admiração, cálculo, conveniência, e uma certa transferência de valores entre gerações que, de alguma forma, define muito do que viria a ser o trumpismo.
Sebastian Stan aposta numa interpretação marcada por gestos e exageros visuais, quase uma caricatura — e isso funciona. O exagero, nesse caso, não é um defeito, mas uma escolha coerente com o personagem retratado.
E, a medida que o filme avança, a interpretação de Stan vai carregando mais nos maneirismos de Trump, seja nos gestos, seja na voz e nas falas cheias de palavras repetidas e vazias. De certa forma, é um “filme de origem de um supervilão”, como pontuou muito bem o crítico Chico Fireman. Como na cena, quase uma paródia, onde Trump se encontra com um político e este inspira a criação do slogan icônico do movimento MAGA: “Make America Great Again“.
O filme é menos sobre eventos e mais sobre formação. Trump não é apresentado como exceção, mas como produto — fruto direto de uma elite paranoica, moldada por um anticomunismo visceral e uma fé quase religiosa na superioridade moral do capitalismo americano.
A América do filme é um lugar de promessas ilimitadas — mas só para os bilionários e os seus lugar-tenentes.
Há algo de faminto no jovem Trump retratado aqui. Não é apenas ambição. É um apetite pelo acúmulo: de dinheiro, de poder, de fama, de controle. Um glutão social, que consome ambientes, pessoas, símbolos — e os regurgita em forma de paródia quase involuntária.
De certa forma, o filme vai construindo passagens que revelam o monstro. E, ainda que ele não faça explicitamente a pergunta, fica óbvio como o diretor – um estrangeiro – fica estarrecido de como aquela sociedade, supostamente civilizada e desenvolvida, pariu politicamente um Trump.
Importa também destacar uma cena problemática no meio da narrativa: uma representação gráfica de estupro conjugal envolvendo Ivana Trump. A sequência, desnecessária e incômoda, quebra o equilíbrio do filme ao optar por um realismo brutal que nada acrescenta à construção do personagem ou à narrativa geral. É um momento que destoa do tom do restante da obra — mais insinuativo, mais analítico — e que poderia (ou deveria) ter sido evitado.
Ainda assim, The Apprentice acerta ao explorar o lado caricato e monstruoso do personagem, com a sua superficialidade brutal, que é produto e retrato do seu tempo.
The Apprentice estreou recentemente no catálogo da Prime Video.
Trump, Trumpismo, cinema, crítica
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: