Tocantins, o crédito de carbono e o contrato obscuro com uma empresa estrangeira: porta aberta para a corrupção
Governador do Estado vendeu acordo com a Mercuria como grande feito ambiental, mas o caso deve parar no Ministério Público
No dia 7 de junho de 2023, o canal do governo do Tocantins publicou no YouTube vídeo em que relatava a Missão Suíça, chefiada pelo governador Wanderlei Barbosa. De boné, o governador gravou um vídeo naquele país europeu, ao lado do CEO da Mercuria Energy Group, Marco Dunand, para dizer que o Estado havia estabelecido uma parceria com a empresa estrangeira destinada à venda de crédito de carbono.
Um ano e meio depois, em um evento na mesma Suíça, Barbosa parecia um garoto-propaganda ao falar da multinacional.
“O mundo inteiro, os países europeus, talvez eles não tenham feito as políticas de proteção ambiental da forma como nós fazemos. Por esse motivo, as empresas multinacionais com a envergadura, com o tamanho da Mercuria, elas já têm a preocupação ambiental com outros lugares, que possam fazer essa reparação”, disse.
Nos bastidores, ele teria conversado com representantes de outros Estados para intermediar contato com a empresa que tem sede na Suíça, mas com raízes fincadas na Ucrânia e na Polônia, através dos empresários Gregory Jankilevitsch e Wiaczeslaw Smolokowski.
Nascidos na Ucrânia, quando o país fazia parte da União Soviética, Jankilevitsch e Smolokowski emigraram para a Polônia na década de 80, de onde, mais tarde, passaram a intermediar a venda de petróleo russo, commodity que nada tem de pureza ambiental. Esse comércio gerou investigações parlamentares na Polônia, por suspeita de corrupção.
A J&S, empresa criada pelos dois, foi adquirida pela Mercuria, em 2004, que continuou a vender o petróleo russo, sobretudo na Europa Oriental. A empresa é de capital fechado e tem como controladora a holding Oil Trading Ltd, com participação majoritária de Marco Dunand e Daniel Jaeggi
A falta de transparência sobre acionistas minoritários alimenta especulações sobre possíveis interesses ocultos, com ação destinada à lavagem de dinheiro, principalmente porque já respondeu por infrações graves na Polônia.
Entre 2007 e 2008, a Mercuria foi acusada de não cumprir os limites de estoque estratégico de combustível no país do Leste Europeu e teve que pagar multa de mais de 200 milhões de dólares. Com esse histórico, o grupo não é nem de longe a multinacional descrita pelo governador de Tocantins.
A pergunta, então, é: Por que Wanderlei Barbosa se comporta como garoto-propaganda da corporação privada? A assessoria do governador ainda não respondeu a meu pedido de informações, mas sua posição já se tornou pública.
Ele diz que o negócio trará aos cofres do Estado 2,5 bilhões de reais até 2030 e que Tocantins se tornou o primeiro Estado brasileiro a firmar um contrato de crédito de carbono jurisdicional, ou seja, o governo oferece áreas protegidas do território com certificação para serem negociadas no mercado de crédito de carbono.
Algumas emissoras de TV, como a CNN, concederam espaços generosos para o governador fazer essa propaganda, e as vozes críticas no Estado acabaram passando quase despercebidas. É o caso do experiente jornalista Luiz Armando Costa, que em seu blog trata dos bastidores de fatos de interesse público no seu Estado.
Em algumas postagens, ele tratou da falta de transparência do contrato com a Mercuria e da criação do fundo Silvânia, para gerir esses recursos. Segundo uma fonte que o procurou, que conhece bem o universo das finanças públicas, esse fundo não será submetido ao controle do Tribunal de Contas do Estado.
O jornalista também tentou saber o que foi feito com os 14 milhões de dólares que teriam sido adiantados pela Mercuria ao Estado, mas não obteve sucesso. “Não há informação sobre a destinação desses recursos”, afirmou. Para ele, o acordo com a Mercuria pode ser para inglês ver.
Literalmente. É que, na década de 90, ele cobriu a criação de um projeto para preservar florestas, o Centro de Pesquisa Canguçu, com recursos da US Barry, “uma das maiores poluidoras da Europa”. Na abertura, teve até a presença do príncipe Charles, hoje rei da Inglaterra.
“Ganha um doce quem mostrar um benefício ao Estado”, escreveu. “Parecia mais uma pousada para gringos à beira do rio Javaés”, emendou. Segundo ele, o mesmo destino pode ter esse projeto agora, já que o acordo com a Mercuria “é muito obscuro”.
Mas, então, por que o governo tratou esse programa como um grande feito?
“A população não vai ganhar. Mas muita gente vai ganhar dinheiro com esse pioneirismo”, afirmou.
O engenheiro eletricista Paulo Corazzi, especialista em energia renovável, analisou o acordo, através da parte de documentos que se tornou pública, e não viu razões para comemorar. Pelo contrário. Ele disse que a modalidade de crédito de carbono gerado não garante a redução do gás de efeito estufa na atmosfera, já que prevê compensação e não sequestro de carbono.
“Os países ricos compram crédito de carbono aqui para poder poluir lá. Qual a vantagem? Afinal, o planeta é o mesmo”, disse. Para o Brasil, sobretudo o Tocantins, haverá desvantagem econômica e perda de soberania.
“Vou dar um exemplo: com esse contrato, entregaremos para uma empresa estrangeira o direito de fiscalizar nosso território. Isso viola nossa soberania”, observou.
Formado pela Universidade de São Paulo e diretor de uma empresa que participa de projetos de instalação de usinas de geração de energia renovável, como a solar e a hidrelétrica, ele defende que o contrato com a Mercuria seja debatido em audiência no Ministério Público.
Já há entidades que se movimentam para solicitar à instituição que realize essa audiência pública. “Estarei lá, com certeza, para mostrar que esse contrato é lesivo aos interesses do Tocantins”, adiantou. A representação ao Ministério Público só não foi entregue ainda porque o Estado está sem promotor do Meio Ambiente, já que o antigo mudou de posto.
O governo do Estado tem ocupado os generosos espaços da TV corporativa para se apresentar como vanguardista na preservação do meio ambiente. Como discurso, é positivo.
A realidade, porém, pode esconder outros interesses, sobretudo porque, ao que tudo indica, o crédito de carbono pode ser o novo ciclo de riqueza do Brasil, como já foi o pau-brasil, a cana de açúcar, o ouro e o café.
Em vez de uma oportunidade para proteger o planeta, no entanto, esse ciclo pode ser uma porta aberta para a corrupção e a lavagem de dinheiro, com ramificações planetárias. Que a luz do sol, o melhor desinfetante que existe, impeça contratos obscuros.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: