Torcidas organizadas, Estado, violência e a necessidade de um debate não maniqueísta
"Estamos diante de mais uma oportunidade de agir perante um fenômeno nada simples. Não insistir em repostas padrão, testadas e fracassadas também é necessário"
As cenas de violência que antecederam o clássico carioca Flamengo x Vasco, no domingo 05 de março do presente ano, trouxeram, mais uma vez, as torcidas organizadas (TOs) de times de futebol, para as capas dos nossos jornais.
O senso comum tende a rotular tais organizações como marginais. Este processo, por um lado, vem sendo alimentado pela própria ação das respectivas torcidas, mas muito fortemente pela imprensa e pelo poder público, como o judiciário, o Ministério Público e a Polícia Militar. Trato, neste texto, sobre um pouco da complexidade das TOs, a insuficiência deste tipo de olhar hegemônico e sobre o fracasso persistente das ações estatais.
Na posição de admirador do futebol e curioso sobre o assunto, também integro movimentos de torcedores. Uma coincidência inusitada me levou a vivenciar, de perto, um pouco dos bastidores da confusão fluminense, que agora compartilho de um modo reflexivo.
No dia 01 de março, ocorreu, em Nova Iguaçu, o confronto entre a equipe de mesmo nome da respectiva cidade da baixada contra o colossal Esporte Clube Vitória. A partida válida pela primeira fase da Copa do Brasil acabou, infelizmente, com uma emboscada de torcedores do Vasco contra integrantes da torcida do Vitória e membros de uma TO do Flamengo e aliada do Vitória.
Por conta da participação no jogo, nossa representação de torcedores, fez contato prévio com o policiamento local. No dia da partida, notamos uma baixa presença deste órgão de segurança pública. Algo até razoável, a priori, uma vez que não há histórico de atrito entre as torcidas do Nova Iguaçu e do Vitória. Todavia, após o trágico episódio, concluímos que houve falha no policiamento, à medida que foi compreendida a dinâmica do ataque e percebendo a quantidade de pessoas mobilizadas, no final da partida, de fora do Estádio se deslocando ao nosso encontro.
Posteriormente, as notícias sobre o episódio foram categóricas, na sua maioria, ao apontar que torcidas protagonizaram uma confusão. Porém, vivenciando o processo de perto, ficou evidente que as manchetes foram insuficientes para relatar a dinâmica do confronto.
Voltando ao clássico carioca, do dia 05 de março, muitos grupos de torcedores foram alertados, via redes sociais, sobre a possibilidade de embates entre vascaínos e flamenguistas. No próprio dia da partida, a movimentação na cidade, em múltiplos pontos, evidenciou que a organização dos torcedores para àquele jogo estava vários tons mais acirrados do que o de costume. A tragédia anunciada se confirmou com uma morte, brigas intensas perto do Maracanã, nos sistemas de transporte e em alguns bairros mais distantes, como Madureira.
Rapidamente, as principais TOs do Vasco (Força Jovem) e do Flamengo (Raça Rubro-Negra e Jovem Fla) publicaram, nas redes sociais, notas explicando os procedimentos adotados por eles junto ao Batalhão Especializado em Policiamento de Estádios (BEPE). Houve uma convergência no entendimento de que nos locais onde o BEPE estava próximo, não ocorreram confrontos, mas que os participantes estranharam algumas mudanças na linha de ação do BEPE, como o reposicionamento dos locais de acesso para cada torcida. Também alegaram falta de policiamento, em alguns pontos estratégicos, próximos ao Maracanã. Diante da minha experiência prévia e lendo a situação, tendo a concordar com os discernimentos das torcidas mencionadas.
Vastas imagens mostram uma grande quantidade de torcedores se deslocando com pedaços de pau etc, tendo a escolta da PMERJ, em alguns pontos da cidade e da baixada. À analise disto tudo, nos leva a entender que as falhas na segurança são nítidas. As causas precisam vir à tona.
Um breve histórico jurídico e político faz-se necessário para construir um melhor entendimento das tensões existentes entre poderes públicos e a relação com as Torcidas Organizadas. No ano de 2003, um marco importante virou lei nacional, o Estatuto do Torcedor, que aborda direitos e deveres dos torcedores esportivos. Em 2008, as principais TOs dos quatro grandes locais, criaram a Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro. Algumas interpretações creditam a este fato, assim como ao diálogo estreito entre lideranças das TOs e a PMERJ, uma certa diminuição dos confrontos, por um período.
Em 2016, foi publicado o Guia de Recomendações para Atuação das Forças de Segurança Pública em Praças Desportivas, com intuito de criar normas e procedimentos nos estádios brasileiros. Este documento foi elaborado à base de inúmeras audiências e por meio de estudo de especialistas.
No ano de 2013, torcidas organizadas foram banidas no Rio de Janeiro, mas uma lei aprovada, no ano passado, pela Assembleia Legislativa, anistiou-as. Este ato, contudo, deveria ser atrelado a um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). Tanto a PMERJ, quanto o MP se posicionaram críticos à anistia sistematicamente. O Governador Cláudio Castro, vetou parcialmente a lei 9.883/22. Ao final, a ALERJ examinou novamente a matéria, derrubando o veto de Castro e indicando a necessidade da elaboração do TAC entre as torcidas, MP e a PMERJ.
No dia 13 de março deste ano, foi o judiciário que entrou em cena, vetando as principais TOs no estado por cinco anos e decretando a prisão de suas lideranças. As brigas no clássico, levaram a esta medida, à revelia da recente lei e de todo um diálogo prévio entre outras esferas do Estado.
Talvez estejam aqui alguns elementos da explicação da tensão atual entre as TOs e o poder público local. Ao que aparenta, cada órgão atua de uma forma própria, mas coincidindo na perspectiva do uso do aparato repressivo. Se relacionarmos outros momentos de protagonismo dos poderes públicos, associado à repressão, como a política de guerra às drogas, a arbitrariedade, a infração das leis e o fracasso desta formula, se torna evidente. Todavia, o mesmo caminho é repetido.
A grande imprensa corrobora com esta tônica da marginalização, mas é contraditória no que se refere ao teor futebolístico. Diversas chamadas para jogos são feitos, na televisão, por exemplo, mostrando os cantos das TOs, com direito à imagens, inclusive, nos auges das comemorações, como na hora do gol. Assim, usufruem da festa que estes membros proporcionam nos estádios. Por outro viés, há uma lógica repressiva, em várias outras situações, como uma resposta imediata para a sociedade.
O caminho da construção da mencionada lei da anistia pode levantar boas alternativas, para uma tentativa de lidar com o problema da violência das torcidas, pois envolveu diálogo, audiências etc. Some-se a isso, a abordagem das temáticas machistas, raciais e homofóbicas, tão necessárias de serem repensadas, na sociedade como um todo.
Atrelar a imagem das TOs à marginalidade é um reducionismo infértil. Esta ação não considera a potência destas pessoas, no que se refere à disposição para organizar ações coletivas, desde torcer, até mesmo protestar (de forma unificada) pela democracia, como foi o caso das primeiras grandes manifestações brasileiras, no período de auge da pandemia, em 2020, em pleno governo Bolsonaro.
É necessário considerar a expertise destas pessoas em lidar com as diversas repressões do poder público, inclusive, de setores da sociedade brasileira, que entendem que o padrão de torcedor no estádio deve ser espelhado no europeu. Isto vem se acentuando, desde a arenização dos estádios para a Copa do Mundo de futebol de 2014. Na Copa Libertadores da América, por exemplo, vemos a repetição do modelo de final única em um estádio/país neutro, com preços dos ingressos abusivos. A TO é exatamente uma clara demonstração de antítese a este padrão.
Estudos sobre este fenômeno demonstram como há um conjunto de relações “diplomáticas” entre torcidas. É apontado também que a organização vai muito além da violência, mas tem dimensões altíssimas de disposição, de coletividade, lealdade, de amor ao clube e à própria torcida, sensação de pertencimento. As TOs apresentam um arcabouço de produção cultural, que perpassa desde a musicalidade a um tipo de interação nos estádios e uma forma de vivenciar o futebol. São assim instituições importantes deste esporte e de parte da cultura brasileira, tanto que perduram, apesar de todas tensões.
Não é de se estranhar que grupos associativos liderados amplamente por homens, em um país com tantos traços de violência, como o Brasil, reproduzam nos estádios ou fora deles, a brutalidade. Uma questão primordial necessária é entender a complexidade disto tudo. Estamos diante de mais uma oportunidade de agir perante um fenômeno nada simples. Não insistir em repostas padrão, testadas e fracassadas também é necessário.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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