Um brilho de esperança
"O Chile parece ter tomado, depois de décadas entre horror e timidez (com a volta da democracia), aquilo que Salvador Allende previu em seu último discurso, enquanto o Palacio de la Moneda era bombardeado pelas tropas pinochetistas: Se abrirán las grandes alamedas", escreve o jornalista Eric Nepomuceno
Por Eric Nepomuceno, para o Jornalistas pela Democracia
O fim de semana trouxe um retrato de avessos que acontecem nas nossas comarcas da América Latina. E nada mais doloroso que traçar um paralelo entre o que viveu o Chile no sábado e no domingo, e o que vivemos dia a dia neste país cada vez mais destroçado.
O Chile até hoje se mostrou uma sociedade basicamente conservadora, com tendências liberais. E se em algum momento saltou esse muro – Salvador Allende, 1970 – logo depois saltou de volta dos avanços e reformas para instaurar a mais sangrenta ditadura da história do país e uma das mais perversas da nossa história latino-americana.
Desde a renúncia de Augusto Pinochet, em 1990, o país tratou de buscar o delicado equilíbrio entre governos mais progressistas e outros, que buscaram outra mescla, entre liberalismo e conservadorismo. E assim chegamos à vez dos reacionários de estirpe.
Sebastián Piñera, o atual presidente, é um exemplo acabado daquilo que de pior existe no reacionarismo chileno. Tratou de recuperar parte dos anos pinochetistas, principalmente no que se refere às políticas econômicas e suas trágicas consequências sociais.
Acontece que o tempo passa, inexorável, e com ele surgem novas gerações. E essas gerações podem, ao defrontar-se com um panorama crescente de injustiças e distâncias sociais perversas, buscar outro rumo.
Foi o que começou a acontecer em 2019, com multidões de jovens tomando as ruas. O resultado saltou das urnas neste fim de semana.
No sábado, foram eleitos os integrantes da nova Constituinte, cujos trabalhos devem começar em junho. Pasmem: até hoje, passados 41 anos desde que foi imposta e 30 depois do fim da ditadura, a Constituição chilena continua sendo a determinada pelo sanguinário Pinochet.
E tudo – até a divisão de escaninhos pré-estabelecida – significa uma virada radical no panorama. Não apenas foi determinada paridade entre homens e mulheres (78 deles, 77 delas), como pela primeira vez se reconheceu o direito dos mapuches, o mais importante povo originário, serem representados por eles mesmos na elaboração da nova Constituição.
A grande surpresa: a maioria é formada por independentes, ou seja, não necessariamente alinhados com os partidos tradicionais. Os da esquerda, aliás, também alcançaram um número muito significativo de cadeiras.
A direita foi congelada. Não terá como vetar o que for decidido pela maioria, já que não alcançou o número mínimo de vagas.
Em outras palavras: mesmo que apareçam divisões na maioria, ainda assim a direita não terá como impedir o que seja decidido, tamanha a distância entre independentes e esquerda tradicional, em um lado, e a direita em outro.
Domingo, foi a vez de escolher prefeitos, vereadores e – pela primeira vez desde a independência, algo difícil de entender – governadores. Até agora governadores eram indicados pelos presidentes.
E aí, outro baile. A esquerda ganhou desde cidades simbólicas, como Viña del Mar, até a própria capital, que pela primeira vez elegeu alguém do Partido Comunista. E mais: uma mulher, e jovem.
Em Recoleta, importante subúrbio ao norte de Santiago, se reelegeu, com 64% dos votos, o também comunista Daniel Jadue. Se já era considerado candidato de peso para as eleições presidenciais previstas para novembro, passou a ser de muito peso.
Enfim, o Chile parece ter tomado, depois de décadas entre horror e timidez (com a volta da democracia), aquilo que Salvador Allende previu em seu último discurso, enquanto o Palacio de la Moneda era bombardeado pelas tropas pinochetistas: Se abrirán las grandes alamedas.
Nesse mesmo fim de semana, o que vimos por aqui?
Gente do chamado agronegócio desfilando feito boiada.
Seria apenas patético, se não fosse também criminoso incentivar a aglomeração cujo objetivo era pedir um autogolpe que incluísse, claro, o fechamento do STF.
Acontece que as grandes alamedas, as nossas, continuam vivas. E algum dia serão abertas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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