Um momento Saigon espreita em Cabul
"12 de agosto de 2021 entrará na história como o dia em que o Talibã se vingou da invasão americana e desferiu o golpe que derrubou seu homem em Cabul", escreve o jornalista Pepe Escobar
Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
12 de agosto de 2021. Essa data entrará na história como o dia em que o Talibã, quase 20 anos após o 11 de setembro e a subsequente derrubada por bombardeios americanos de seu domínio (1996-2001), desferiu o golpe decisivo contra o governo central de Cabul.
Em uma blitzkrieg coordenada, o Talibã praticamente tomou três centros de importância crucial: Ghazni e Kandahar na região central, e Herat, ao oeste. Eles já haviam capturado a maior parte do norte. No presente momento, o Talibã controla quatorze (itálicos meus) capitais de província, e esse numero só tende a aumentar.
Logo de manhã cedo eles tomaram Ghazni, situada a cerca de 140 quilômetros de Cabul. A estrada repavimentada está em boas condições. Não apenas o Talibã vem chegando cada vez mais perto de Cabul mas, para todos os efeitos, eles agora controlam a principal artéria do país, a Rodovia 1, que vai de Cabul a Kandahar, passando por Ghazni.
Esse fato, em si, é um divisor de águas em termos estratégicos, que permitirá ao Talibã cercar e sitiar Cabul a partir do sul e do norte simultaneamente, em um movimento de pinça.
Kandahar caiu ao anoitecer, depois de o Talibã conseguir quebrar o cinturão de segurança colocado em torno da cidade, atacando de diversas direções.
Em Ghazni, o governador da província, Daoud Laghmani, fez um acordo, fugiu e logo depois foi preso. Em Kandahar, o governador Rohullah Khanzada – que pertence à poderosa tribo Popolzai – deixou a cidade com apenas uns poucos guarda-costas.
Ele optou por se engajar em um elaborado acordo que convencia o Talibã a permitir que as forças militares remanescentes recuassem para o aeroporto de Kandahar onde seriam evacuadas de helicóptero. A totalidade de seus equipamentos, armamentos pesados e munição seriam entregues ao Talibã.
As Forças Especiais Afegãs representavam a elite das tropas estacionadas em Kandahar. Mas elas protegiam apenas algumas localidades específicas. Agora, sua missão talvez seja a de proteger Cabul. O acordo final entre o governador e o Talibã deve ser firmado em breve. Kandahar de fato caiu.
Em Herat, o Talibã atacou a partir do leste, enquanto o notório ex-chefe guerreiro Ismail Khan, à frente de sua milícia, comandou uma fortíssima ofensiva a partir do oeste. O Talibã, progressivamente, tomou o quartel-general da polícia, "libertou" prisioneiros e sitiou a sede do governo da província.
Fim de jogo: Herat também caiu, e o Talibã agora controla a totalidade do Afeganistão Ocidental, até as fronteiras com o Irã.
Um remix da Ofensiva do Tet
Os analistas militares vão se divertir loucamente desconstruindo esse equivalente talibã à Ofensiva do Tet de 1968, no Vietnã. Inteligência obtida por satélites talvez tenha sido de grande utilidade: foi como se toda a movimentação em campo de batalha tivesse sido coordenada a partir de cima.
Mas houve algumas razões bastante prosaicas para o sucesso do ataque além de perspicácia estratégica: corrupção no Exército Nacional Afegão (ENA); total desconexão entre Cabul e os comandantes de linha de frente; falta de apoio aéreo americano; a profunda cisão política em Cabul.
Paralelamente, o Talibã há meses vem secretamente estabelecendo contatos por meio de conexões tribais e laços familiares, oferecendo um acordo: não lutem contra nós e serão poupados.
Acrescente-se a isso que pessoas ligadas ao governo de Cabul têm o profundo sentimento de terem sido traídas pelo Ocidente misturado ao medo da vingança talibã contra os colaboracionistas.
Um enredo secundário muito triste, daqui por diante, será o desamparo da população civil que se vê presa em cidades agora controladas pelo Talibã. Os que conseguiram fugir antes do ataque são agora as novas PDI (pessoas deslocadas internamente) afegãs, como as que criaram um campo de refugiados no parque Sara-e-Shamali, em Cabul.
Em Cabul, correm rumores de que Washington havia sugerido ao Presidente Ashraf Ghani que renunciasse, abrindo caminho a um cessar-fogo e à criação de um governo provisório.
Oficialmente, o que se sabe é que o Secretário de Estado Antony Blinken e o chefe do Pentágono Lloyd Austin prometeram a Ghani "continuarem comprometidos" com a segurança do Afeganistão.
Há informações de que o Pentágono planeja reenviar ao Afeganistão tropas de 3.000 homens, entre eles fuzileiros navais, além de outros 4.000 à região, para evacuar a Embaixada dos Estados Unidos e cidadãos norte-americanos que ainda estejam em Cabul.
A suposta oferta a Ghani, na verdade, teve origem em Doha – e veio de pessoas ligadas a Ghani, segundo confirmado por mim junto a fontes diplomáticas.
A delegação de Cabul, liderada por Abdullah Abdullah, presidente de algo chamado Alto Conselho para a Reconciliação Nacional, com mediação de Catar, ofereceu ao Talibã um acordo de divisão de poder, contanto que eles ponham fim ao ataque. Não há menção à renúncia de Ghani que, para o Talibã, é a condição número um para qualquer negociação.
A troica ampliada, em Doha, vem trabalhando sem parar. Os Estados Unidos têm o objeto inamovível Zalmay Khalilzad que, na década de 2000, era conhecido pelo apelido jocoso de o "afegão de Bush". Os paquistaneses têm o enviado especial Muhammad Sadiq e o embaixador em Cabul, Mansoor Khan.
Os russos têm o enviado do Kremlin ao Afeganistão, Zamir Cabulov. E os chineses têm um novo enviado ao Afeganistão, Xiao Yong.
Rússia-China-Paquistão, nas negociações, vêm seguindo o quadro de referência da Organização de Cooperação de Xangai (OCX): os três países são membros permanentes. Eles colocam ênfase em um governo de transição, na divisão do poder e no reconhecimento do Talibã como uma força política legítima.
Alguns diplomatas já insinuam que, caso consigam derrubar Ghani em Cabul, quaisquer que sejam os meios, os talibãs serão reconhecidos por Pequim como os governantes legítimos do Afeganistão - algo que criará uma nova e incendiária frente política na confrontação com Washington.
Nas atuais circunstâncias, Pequim vem apenas incentivando o Talibã a firmar um acordo de paz com Cabul.
A charada pashtun
O primeiro-ministro paquistanês Imran Khan não mediu palavras ao entrar briga. Ele confirmou que as lideranças do Talibã disseram a ele que não haverá negociação com Ghani no poder – mesmo depois de ele ter tentado persuadir os talibãs a tentarem um acordo de paz.
Khan acusou Washington de só ver o Paquistão como "útil" quando se trata de pressionar Islamabad a usar sua influência sobre o Talibã para negociar um acordo – sem levar em conta a "bagunça" que os americanos deixam atrás de si.
Khan, mais uma vez, disse que "deixou muito claro" que não haverá bases militares americanas no Paquistão.
Aqui vai uma ótima análise de o quão difícil é para Khan e para Islamabad explicar para o Ocidente, e também para o Sul Global, o complexo envolvimento do Paquistão com o Afeganistão.
Os pontos principais são bastante claros:
1. O Paquistão quer um acordo com divisão de poder, e vem fazendo todo o possível para alcançá-lo em Doha, com a troica ampliada.
2. Uma tomada do poder pelo Talibã levará a uma nova leva de refugiados e pode incentivar jihadis de tipo al-Qaeda, TTP (o Talibã paquistanês) e ISIS-Khorasan a desestabilizarem o Paquistão.
3. Foram os Estados Unidos que legitimaram o Talibã ao firmar com eles um acordo durante o governo Trump.
4. E, em razão da retirada caótica, os americanos viram diminuída sua influência - e a do Paquistão - sobre o Talibã.
O problema é que Islamabad simplesmente não consegue passar essas mensagens.
E há também algumas decisões estarrecedoras. Tome-se a fronteira Afeganistão-Paquistão entre Chaman (no Baloquistão paquistanês) e Spin Boldak (no Afeganistão).
Os paquistaneses fecharam seu lado da fronteira. A cada dia, dezenas de milhares de pessoas, em sua imensa maioria pashtuns e baloques de ambos os lados, cruzam a fronteira, indo e vindo, seguindo um mega-comboio de caminhões que transportam mercadorias do porto de Karachi até o Afeganistão, que não tem saída para o mar. O fechamento de uma fronteira comercial de tamanha vitalidade é uma proposta insustentável.
Tudo o que foi dito acima leva ao que pode ser visto como o problema supremo: o que fazer com o Pashtunistão?
O cerne absoluto da questão, quando se trata do envolvimento paquistanês no Afeganistão e da interferência afegã nas áreas tribais paquistanesas é a criação totalmente artificial do Império Britânico, a Linha Durand.
O pior pesadelo de Islamabad seria uma nova partição. Os pashtuns são a maior tribo de todo o mundo e vivem de ambos os lados da fronteira (artificial). Islamabad simplesmente não pode admitir uma entidade nacionalista no comando do Afeganistão porque isso fatalmente irá fomentar uma insurreição pashtun no Paquistão.
E isso explica por que razão Islamabad prefere o Talibã a um governo nacionalista afegão. Em termos ideológicos, o conservador Paquistão tem posturas não muito diferentes das do Talibã. E em termos de política externa, o Talibã no poder se encaixa perfeitamente na imutável doutrina da "profundidade estratégica" que opõe o Paquistão à Índia.
A postura do Afeganistão, ao contrário, é clara. A Linha Durand divide pashtuns que vivem em ambos os lados de uma fronteira artificial. Qualquer governo nacionalista afegão, portanto, jamais abandonará seu desejo de um Pashtunistão maior e unido.
Como o Talibã, na verdade, é um aglomerado de milícias comandadas por chefes guerreiros, Islamabad aprendeu com a experiência a lidar com eles. Virtualmente todos os chefes guerreiros - e todas as milícias - no Afeganistão são islâmicos.
Até mesmo o atual esquema de Cabul é baseado na lei islâmica e busca orientação junto a um conselho de ulemás. São poucos os ocidentais que sabem que a lei Sharia é a tendência predominante na atual constituição afegã.
Fechando o círculo, em última análise todos os integrantes do governo de Cabul, das forças armadas e também grande parte da sociedade civil são originários da mesma estrutura tribal conservadora que deu origem ao Talibã.
Além do ataque militar, o Talibã parece estar ganhando a batalha interna de relações públicas devido a uma equação simples: eles retratam Ghani como um fantoche da OTAN e dos Estados Unidos, um lacaio de invasores estrangeiros.
E traçar essa distinção no cemitério dos impérios sempre foi uma proposição vitoriosa.
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